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Comprei desprevenidamente este dicionário Francês-Esperanto e Esperanto-Francês, verdadeiramente de bolso, numa bancada de alfarrabista do Príncipe Real. Pequeno, já gasto, apresentando-se como listagem de radicais (donde mais "Radikaro" que "Vortaro"), recorda ainda o tempo em que uma incursão no Zubrowka estava muito além do experimentar um "luxury vodka of multiply rectified spirits infused with Bison grass native to the Bialowieza forest, home of the european bison; W. Somerset Maugham said that drinking Zubrovka is as delightful as listening to music in the moonlight" como se diz em inglês no polonês local próprio, que é o
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Mas adiante! "Le temps passe" (e com ele nós próprios e todos os Zubrowkas deste mundo que, permanecendo para sempre na memória com os atributos que tiveram e que têm, ganham o gosto-valor do passado que começam a ser). Descobri depois, com alguma frustação de pesquisador sem objecto, que o(s) anterior(es) proprietário(s) do actualmente meu "Radikaro" nada tinham deixado da sua presença salvo um carimbo, mas ao menos este muito significativo: o carimbo redondo de "Shakespeare and Company -Sylvia Beach Whitman - Foundation - Kilometer Zero Paris", a tão lendária pequena e desarrumada livraria que fica perto do Petit Pont e por onde transitaram e certamente sentaram o trazeiro nos desfiados sofás todos os avatares das literaturas europeias e americanas passadas, presentes e futuras, deixando ou não um outro qualquer sinal da sua presença (também ali, tudo e todos importando, ninguém se importaria com isso). Pois por tal atributo, vejamos, o meu "Radikaro", comprado que foi por tuta e meia, aquiriu valor, o que é um facto raro nos hoje-em-dia em que vivemos, entendam estes ou não Esperanto, e mesmo constituinte de um potencial risco, dada a tendência recente em considerar tributável qualquer virtualidade escondida.
Reproduzo agora o título da 1ª página do livro:
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"Dictionnaire
Français - Esperanto
et
Esperanto - Français
Radikaro
Précédé d'un
Résummé de la Grammaire
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Préface
de
Th. Cart
Professeur agrégé de l'Université
Membre du "Lingva Komitato"
- - - «» - - -
Paris
Presa Esperantista Societo
33, Rue Lacèpède,33
1908
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Tous droits réservés"
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e, deixando lá-mais-pró-Verão a súmula gramatical das páginas xiii a xvii (pois é, basta ao Esperanto poder aprender-se em 5 páginas aproximadamente A6), escrita por C. Dieterlen, volto-me agora para o tal Prefácio, que testemunha o período neonatal de explosivo sucesso da língua universal, quando se poderia pensar que esta saberia ultrapassar fronteiras, divulgar culturas, estreitar amizades e vencer as reservas furiosas que lhe votavam os detentores de uma hegemonia linguística (ao tempo os Francófonos... ainda sem poderem adivinhar o que lhes iria suceder uns cinquenta aninhos depois já que "quem com ferro mata... com ferro morre!") Aí vamos, mas com um final aviso: o texto de pag. iii a ix do meu "Vortaro" (= dicionário) exige uma leitura adequada à época em que foi escrito. Não se pense pois na actualidade de algumas afirmações, ainda que se possa acreditar na permanência de muitas outras:
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"PREFÁCIO
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"Ni fosu nian sulkon!
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Os autores e colaboradores deste Dicionário pediram-me para escrever o seu prefácio. Faço-o da melhor vontade, até porque isso vem dar-me uma excelente oportunidade para expor, a propósito do Esperanto, alguma ideias que me parecem oportunas e que não são mais do que as tantas vezes já expressas pelo próprio Dr. Zamenhof.
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Uma ideia que hoje frequentemente assalta um certo número de iniciados cultos - para quem uma lingua só existe a partir do dia em que começam a aprendê-la - refere-se à consideração do Esperanto como uma língua que, ao sabor das suas próprias preocupações teóricas, lhes desse o direito de sistematicamente a poderem modificar, e esse sentimento surge quase fatal nos que dedicaram especial atenção à questão duma língua internacional, seja porque inventaram uma, seja porque durante muito tempo estudaram as soluções propostas.
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Contudo, provenha a ideia deles ou de outros, quem assim pensa labora num grave erro.
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O Esperanto, ao contrário do que esses imaginam, não é "uma língua para fazer", pois é "uma língua já feita" - e eu não digo "acabada" porque nenhuma língua o é, e esta menos até que qualquer outra. Não é um "projecto de língua", mas sim uma língua viva, empregue por milhares de homens que a lêem, a escrevem, a falam e que só conseguem relacionar-se através dela, que consideram que ela lhes pertence e que não dão a ninguém o direito, nem actualmente reconhecem o poder, de dela dispor a seu talante.
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Procurar saber desde quando o Esperanto é usado torna-se uma questão secundária, pois que o valor de um instrumento de comunicação, como é uma língua, não depende minimamente da respectiva antiguidade e porque o Esperanto se mostra, sem contestação, bem superior a muitos dialectos várias vezes seculares.
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Pelo facto de estar vivo, o Esperanto é tão lógico como qualquer vivente pode ser. Não se lhe deve pedir mais que isso. Ao querer fechá-lo nos quadros rígidos duma lógica rigorosa -- apenas acessível a uma minoria "bem pensante" -- ir-se-á criar uma língua possivelmente útil para um elenco limitado de sábios e pouco mais, mas que se mostrará certamente morta para os cidadãos de instrução média de muitas nações, aos quais foi especialmente destinada [1].
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Pelo facto de estar vivo, o Esperanto evoluirá. Evoluirá como evoluem todas as línguas vivas e do mesmo modo que estas, até possivelmente de forma mais rápida.
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Receia-se que essa evolução livre e natural permita prever um grande perigo para o Esperanto, através de uma crescente complicação e de uma anarquia futura.
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Tal risco é puramente imaginário. Não há qualquer razão para admitir que, ao contrário das outras línguas, o Esperanto se vá complicar [2], desde que se mantenha fiel aos seus princípios essenciais que são os estabelecidos na obra "Fundamento de Esperanto". A necessidade de se manter entendido pelo conjunto dos Esperantistas é uma outra garantia contra fantasias individuais e "deformadoras". Em última instância, a Comissão de Linguística ("Lingva Komitato"), depois de algumas hesitações desculpáveis porque íniciais, cumprirá cada vez melhor as suas funções que são, por um lado, conservar intactos os princípios em que a língua se baseia e, por outro lado, enriquecê-la, consagrando-lhe, após rigoroso controlo, os contributos fornecidos, no domínio da Gramática e do Vocabulário, por um conjunto cada vez mais importante de obras literárias, científicas e lexicográficas [3].
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O presente Dicionário, introdução necessária ao "Grande Dicionário" publicado pela mesma Editora, é um dos trabalhos lexicográficos que se oferecem ao estudo do "Lingva Komitato".
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Os autores esforçaram-se por permanecer muito sóbrios quanto á adição de novos radicais; consideram, de facto, que uma lingua internacional não deve aspirar a traduzir toda e qualquer feição de cada uma das nossas línguas nacionais através de radicais especiais. Um dos méritos do Esperanto é que, mesmo com um vocabulário restrito, poderá, através de afixos e de composição, exprimir qualquer ideia com precisão suficiente. Não se deve inclusivamente esquecer que a possibilidade duma certa imprecisão é uma condição própria de qualqer língua falada: alguns sufixos de sentido muito geral e vago ("a^jo"," ilo"), que foram erradamente criticados, constituíram verdadeiros elementos de sucesso. São vantagens sérias que se devem conservar no Esperanto, mesmo que ao preço de alguns sacrifícios [4].
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Talvez se possam criticar, nesta obra, vários erros de tradução. Tomem-se como inevitáveis, sobretudo num primeiro trabalho. Não os encontramos também, todos os dias, nos nossos dicionários de alemão ou de inglês, em que são menos desculpáveis?
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Poderá surpreender uma certa falta de homogeneidade entre as diferentes partes. Infelizmente esse é um defeito inerente a todos os trabalhos realizados em colaboração quando não podem ser sujeitos a uma revisão, sempre tão trabalhosa que, pela sua natureza, leva a quase indefinidamente atrasar a apresentação da obra.
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Finalmente, notar-se-ão por certo, aqui e além, singularidades na disposição tipográfica, que se apresenta mais prática que sistemática. Essas singularidades, perceptíveis a quem leia o dicionário, passarão quase despercebidas para quem o consulte e que constiruirá uma larga maioria; compensam-se também pelas suas enormes vantagens e permitem apresentar uma quantidade consideravelmente maior de palavras sem que o preço de venda se torne muito elevado.
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Estamos convencidos, quanto a estas imperfeições, que serão desculpadas pelo mundo esperantista, que prefere usar o Esperanto ao gosto de o discutir: de facto não serão prejudiciais à propagação da língua, enquanto que a publicação do presente livro, preenchendo uma necessidade que se sentia de há muito, pode dar uma grande contribuição para a favorecer.
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Solicitamos, além disso, as amáveis observações dos críticos e dos Esperantistas em geral. Só progressivamente se pode atingir uma perfeição relativa. A colaboração do público estudioso torna-se aqui uma absoluta necessidade. Permitimo-nos esperar que não deixe de corresponder à nossa boa vontade e que, aprovando o nosso esforço, nos ajude a fazer sempre melhor.
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Este é o mais forte desejo dos autores e editores deste Dicionário.
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21 de Novembro de 1907
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Th. Cart
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[1] Um estudo muito interessante poderá incidir sobre os "ilogismos" comuns num grande número de línguas e que, por isso mesmo, não são linguisticamente "ilogismos". Porque o princípio do internacionalismo, condição essencial desta utilidade comum, prevalece sobre qualquer outro, o Esperanto não deve procurar rectificar essas situações (v. P. Fructier, Sintakso, Antaüparolo).
[2] Ver The British Esperantist, 1907, Agosto; Lingvo Internacia, 1907, pag.422.
[3] Apresentamos seguidamente, como formulações bem precisas, as sábias instruções do Dr. Zamenhof para orientar a evolução natural da língua:
1. Até à adopção oficial do Esperanto pelos governos, o único livro obrigatório e com autoridade absoluta é a obra intitulada "Fundamento de Esperanto" (Declaração de Bolonha).
2. Os avisos e deliberações do Lingva Komitato, presidido pelo Dr. Zamenhof, não têm carácter imperativo, mas devem ser tidos em séria consideração por todos os Esperantistas.
3. Porque o Esperanto é uma língua viva, nenhuma palavra, nenhuma construção poderá ser recomendada pelo "Lingvo Komitato" sem que o seu uso fosse previamente testado em termos de utilidade e valor prático. Qualquer forma de proceder que desta diferisse seria revolucionária e, porque se trata de uma língua que vive, linguisticamente não-científica.
É preciso ainda recordar que o que está aqui em vista é a língua comum e a língua literária: o vocabulário técnico tem as suas regras próprias e será sempre, em alto grau, artificial, convencional e susceptível de revisão.
[4] Ver, a propósito do sufixo "a^jo", a nota tão sugestiva e justa do Dr.Zamenhof na "Revuo", 1907, p.374. "Se convém permanecer reservado na adição de radicais e de sufixos, também não haverá melhores razões para, como foi proposto, introduzir novas preposições sob o pretexto de que certas locuções francesas são difíceis de se exprimir em Esperanto: procurar uma outra forma é sempre possível, senão fácil."
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Tradução (algo livre) do "blogisto"
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As notas [1] e [2] estão, como (1) e (2), na pag v do original;
a nota [3] é a nota (1) da pag. vi;
a nota [4] é a nota (1) da pag. vii
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"Ni fosu nian sulkon !" = Abramos o nosso trilho !