Uma breve nota de abertura, pelo bloguista:
Se para um blog acabamos por transportar bocados de nós mesmos, vividos ou sonhados, a verdade é que há recantos da minha biblioteca que não tenho ousado trazer para aqui, no receio de me tornar supinamente chato com uma desusada insistência no valor (certamente inflaccionado) de alguns dos meus jardins secretos no mundo do papel e das coisas que vêm (ou não vêm) impressas. Assim, não falei aqui (ou creio que não terei demasiadamente falado), da área de SF (Ficção Científica), ou da área de Policiário, ou ainda da área da Literatura e Poesia Erótica, que disso também gosto e muito, já que quanto à Pintura das mesmas bandas mandei de longe pequenos lamirés, oportunamente a desenvolver se tal me der na bolha. Aliás há quem na “net” o tenha feito e bem — mesmo sem colocar no canto superior a tal bolinha vermelha de afasta-pudibundos, como na TV.
Por isso fiquei encantado quando, de Santa Catarina, onde neste momento o calor aperta (em contraponto com os frios invernais que nos chegam e que me recordam que um dos meus outros sonhos, que provavelmente nunca realizarei, é passar um Natal numa praia da Austrália, eu, que odeio praias e para mais praias com tubarões…), a Urda me enviou com nota de MUITO BOM o conto “Ah! Mariana...” de Mauro C. B. Camargo (de nome completo Mauro César Bruginski Camargo), autor paranense que eu desconhecia, e que de facto achei merecer totalmente o referido encómio.
Em contacto com o Autor pedi-lhe duas coisas: que me deixasse publicar o conto neste blog e que me desse uma pequena descrição de si próprio. Amavelmente atendido nestes dois pedidos é pela sucinta (mas já bibliograficamente rica) biografia recebida que vou começar. Usarei aqui, como no conto, as palavras e a grafia do Autor, apreciando na grafia e na expressão a diferença, a riqueza, a dimensão e o colorido que a nossa língua comum permite descobrir. Chamo a atenção, no conto, para o hábil contraponto de tempos e situações e para o grácil (e realista) domínio do diálogo de uma forma que saudavelmente invejo... mormente porque nunca fui capaz de conseguir.
.
Segue a descrição do Autor por si próprio:
Com a devida vénia, transcrevo:
“Nasci em Rebouças, uma pequena cidade do Estado do Paraná, em 1962. Cursei a Faculdade de Odontologia na cidade de Ponta Grossa, onde concluí o curso no ano de 1984. Fiz especialização em Endodontia em Florianópolis no ano de 1990. Atualmente trabalho como dentista e resido no Estado de Santa Catarina, vizinho do Paraná, ambos no Sul do Brasil, na cidade de Balneário Camboriú, que é uma das cidades balneário mais agitadas do país, que fica distante 70 km de Florianópolis (a capital do Estado) e 70 Km de Blumenau (onde mora a Urda). Tenho um filho de 18 anos que cursa a Faculdade de Desenho Industrial. Tenho 3 romances publicados (A Ilha de Alor, 1997: Bala, perdida?, 2001 e Ana Cabeluda do Pano na Cabeça, 2003. Está para sair o quarto romance no ano de 2007: Paris, setembro de 1893. O meu site que está abaixo, está para ser feito faz 3 anos, e nunca dá tempo. A correria por aqui é sempre grande e sobra pouco tempo para a literatura, infelizmente.”
&, agora, o conto!
"
Ah! Mariana...
O trânsito estava lento na entrada da Consolação naquele horário e eu já sabia que ia demorar a chegar; já havia avisado Mariana para tentar ter calma, apesar da situação. Foi uma pena deixar a palestra no meio, mais pena ainda foi deixar ao meio os discretos olhares daquela advogada recém aprovada na ordem, que o Dr. Antonio Arruda havia me apresentado como filha do Dr. César Almeida, como se este fosse um velho conhecido. Sabe lá quem é o Dr. César Almeida! Mas não era para o presidente da convenção que eu ia admitir isso.
— Alô... Mariana... em meia hora eu retorno, agora não posso, estou numa convenção da OAB... onde? No Anhembi... sim, eu sei que é longe da tua casa... o quê? Diga que isso é brincadeira... faz quanto tempo?... está bem, vou tentar chegar rápido...
Lá ficou o olhar de abismo da Dra. Ana Isabel Almeida, que parecia me fazer cair no vazio cada vez que me olhava, com um discreto sorriso, durante a palestra. Parecia que seus olhos estavam constantemente úmidos e a boca naturalmente entreaberta, o que lhe dava a adorável aparência de fingida fragilidade, pronta a ser usada no momento adequado.
O táxi tentava ziguezaguear pela rua, mas, naquele horário, era impossível ir mais rápido e fiz questão de tranqüiliza-lo. Eu também precisava um tempo para me preparar e encontrar outra vez Mariana. Ah, Mariana!
— Veja Júnior, não são bonitos?
— Esses pelinhos?
— O nome certo é pêlos pubianos. Já começaram a nascer faz um tempo e agora é um tufinho... veja como são douradinhos... e macios, passe a mão aqui... isso, devagar...
Com certeza eu já devia ter tido outras ereções, mas foi bom guardar na lembrança essa, como a primeira:
— Nossa! Júnior, como ele tá grande! Fazia tempo que eu não via ele... deixa eu ver direito, abaixa essa sunga...
Ah, Mariana! A linda Mariana! Que brincadeiras deliciosas!
O táxi bateu de leve em outro táxi e logo virou confusão. Pensei em pagar e apanhar outro, mas, que diferença ia fazer? Para chegar na Faria Lima, em Pinheiros, teria que ter paciência e ela também.
— Alô, Mariana... olha, o trânsito está muito lento... como você está?
— Como você quer que eu esteja? Acabei de matar uma pessoa...
Eu não deveria estar lembrando coisas tão doces numa situação como essa, me senti culpado. Será que ela lembrava do caso Maria Tereza? É claro que ela lembrava, achou muito engraçado o fato de eu ficar excitado diante de uma situação trágica. Mal sabe ela o quanto paguei ao psicanalista pra tentar fazer de conta que isso era normal.
Os dois motoristas nervosos voltaram para os seus carros e o trânsito liberou um pouco, mas, dois semáforos depois, era a vez de um ônibus acertar a traseira de uma Van de turismo.
Será que eu ia ficar excitado de novo? Ainda mais com Mariana, que sempre me deixou maluco. Maria Tereza estava com o avental todo manchado de sangue, mas sem roupa nenhuma por baixo e, no seu estado de choque, pouco se importava se o avental estava aberto ou não. Como foi difícil disfarçar aquela ereção!
— Vamos Júnior, eu roubei a chave do sótão... não tenha medo, a empregada colocou uma lâmpada nova lá, não vai estar escuro... quero te mostrar uma coisa...
Ela queria me mostrar o seu colibri. Havia feito uma tatuagem perto dos seus dourados e macios pelos pubianos, que pareciam um tufo de flores onde a avezinha mergulhava seu bico longo... Ah, Mariana! Como brincamos naquele tempo. Na época era uma grande aventura, um pecado a ser escondido, daqueles de ruborizar na frente do padre antes da Páscoa, quando ele perguntava no confessionário se a gente tinha pecado. Inventávamos angélicas mentiras. Nos dias de hoje seriam brincadeiras da primeira meia hora. Levamos anos fazendo aquilo.
— Olha Junior... ta vendo isso aqui? Preste atenção... não parece um pintinho? Isso é o meu clitóris...
—... e pra que serve isso?
— Tenha calma, um dia você vai descobrir.
Ela queria se fazer de muito esperta, por ter dois anos a mais, mas era tudo um disfarce. No dia em que realmente quase aconteceu, assustada me disse que ainda era virgem. Aprendia as coisas proibidas numa enciclopédia do sexo que sua mãe guardava a sete chaves, mas ela tinha a cópia de todas. Era esperta, mas no fundo, tão ingênua como eu:
— Não Júnior, não coloca...
— Por que eu não posso?
— Ninguém pode... ainda... não Júnior, pare... ai, ta doendo...
Ela me empurrou com força e se abraçou às próprias pernas. Estava quente no sótão naquela tarde de verão. Estávamos suados depois das tantas sacanagens, que com o tempo perderam a ingenuidade inicial e já se repetiam há alguns meses. Beijos molhadíssimos, na boca, nos seios... em tudo, mas...
— Eu ainda sou virgem.
— O quê? E o Agnaldo...
— Não fez um décimo do que você já fez comigo...
Todos diziam que éramos quase irmãos. Ela não desgrudou de mim desde que nasci. Nossas mães eram as melhores amigas das melhores amigas e ela virou minha boneca viva, que me entretia e cuidava.
O dia não estava quente e a conhecida garoa paulistana fazia tudo parecer um pouco mais caótico do que realmente era. Pela janela do carro, riscada por gotas escorridas, eu via a cidade concreto e sua gente: apressados de todos os tipos, carrões com seus insufilmes, mendigos sob as marquises dividindo as ruas com uma imensa população de invisíveis que, como dizia MV Bill, de uma hora pra outra aparecem na janela do nosso carro com um 38 e ganham inesperada e insólita visibilidade. A cidade me lembrava da mãe de pano e da mãe de arame. Há muito tempo, na época dos esconderijos e pequenos pecados com Mariana, eu vi na televisão uma experiência feita não sei onde, em que dois macaquinhos recém nascidos foram tratados em salas diferentes sendo que, em uma delas havia uma macaca mãe feita de pano, e na outra era feita de arame. Com o passar do tempo o macaquinho criado junto com a mãe de arame tornou-se muito mais irascível, enquanto que o da mãe de pano, dócil.
São Paulo era uma imensa mãe de arame, e concreto, principalmente para os invisíveis, e uma mãe de pano para uma minoria, que parecia flutuar acima do concreto. Um moleque passou como um raio pelo lado do carro, talvez vivendo seus parcos momentos de visibilidade, e no apartamento na sobre loja da esquina, uma mulher gritava loucamente com o marido. O taxista parecia um homem bomba, pronto para cometer um atentado urbanista. E Mariana me esperava em desespero, havia cumprido a promessa feita na semana passada, na qual não acreditei. Pensei que havia mudado, mas continuava a mesma da adolescência: falava, e fazia.
Disse que mataria o pit bull do policial aposentado que morava na frente do ponto de ônibus e que já a havia atacado várias vezes, sempre parando com o assobio do dono, a menos de dois metros dela. Fez aula de tiro, comprou uma mira de longo alcance e... bum! Do sótão dava pra ver os fundos da casa do ex-policial. Foi o maior rebu: polícia pra todo lado, sirenes e desconfiança, e ela andando de um lado para outro, dando informações, dizendo que havia ouvido o tiro... Ah, Mariana! Depois me deu um beijo demorado, pra comemorar, e outras brincadeiras.
Nunca falávamos em sentimentos e eu tinha certeza que ela sabia da minha paixão indomável, mas nunca comentava.
— Não Júnior, é perigoso... a filha de uma amiga da mãe ficou grávida virgem, só por brincar assim... vai casar no fim de semana...
— Olha o que eu tenho pra você...
— Como é que você conseguiu uma?
— Roubei do meu pai, ele tem um monte, nem vai perceber.
Hoje a gente compra camisinha em qualquer lugar. Naquela época era complicado. Aquela a gente usou muitas e muitas vezes. Lavava, passava um talquinho e enrolava de novo. Fiquei deprimido quando rasgou.
— Ai... pára... só até aí... você prometeu... não entra mais... isso, goza... com camisinha é melhor, não fico toda melada... ué!... ta escorrendo... o que aconteceu?
Exatamente naquele mês, ela que era um reloginho, atrasou 12 dias. Já tínhamos escolhido até os nomes: Marina ou Victor; era uma maneira de aliviar o desespero que passamos, mas o fato também contribuiu para mostrar a mim mesmo o quanto gostava de Mariana: por mais que estivesse desesperado, no fundo gostava da possibilidade de ficarmos juntos para sempre. Para sempre... sempre acaba. Acabou no décimo terceiro dia, num modess encharcado de sangue.
Parece que o taxista falou que mais uma quadra e o trânsito liberava. Já fazia quase uma hora que havia saído da convenção e eu nem queria imaginar o que iria encontrar na casa de Mariana, mas não sabia se era por causa dela, ou por minha causa. Tive até vontade de ligar para o psicanalista e dizer que estava acontecendo de novo.
Mais uma vez paramos e na minha frente se repetiu o desfile de aflições paulistanas. O táxi estava bem próximo ao meio fio e encostado na parede de uma banca de revistas, não tão protegido da chuva, havia um velho esticado, talvez morto, talvez dormindo. Todos passavam, inclusive eu (como vou ajudar alguém, se uma cliente acabou de cometer um crime?). Logo acima da banca, a porta de um café elegante abria-se para casais descolados entrarem para o happy hour. Aquela porta era o muro alto que a tudo proibia, onde toda maçã caía. Aqueles insufilmes, cordões de isolamento, seguranças, coberturas e mansões: visíveis muros altos proibindo as maçãs e os sonhos dos invisíveis. E o dono nem via!
Maria Tereza percebeu. Foi constrangedor, mas percebeu. Quando a polícia tentou tirar ela do consultório do Dr. Jaime houve um empurra-empurra, devido a aglomeração na sala de espera; ela deu um passo para trás e encaixou em cheio. As eternas calças sociais dos advogadas não são nem um pouco discretas. Virou o rosto entre o aturdimento e o espanto. Não tinha como sair daquela posição, sem que os policiais na sua frente dessem um passo à frente. Mais alguns segundos e o orgasmo seria inevitável. Foi a gota d’água; fugi da idéia até aquele dia, mas, mesmo assim, havia guardado o cartão do Dr. Euvaldo Antonetto, hoje meu psicanalista.
Maria Tereza era enfermeira chefe do hospital e mantinha um caso semi-secreto (como todos) com o Dr. Jaime, há anos. Ficou maluca quando descobriu que havia sido traída, ainda mais com quem: a própria esposa dele. Ele jurara pra Maria Tereza que não dormiam juntos mais e só não se separavam devido a ela ser depressiva e a filha autista. Naquela manhã Dr. Jaime esqueceu o celular no quarto de um paciente que recebera alta e a enfermeira que achou, até pra se fazer entender que sabia de tudo, pediu para que Maria Tereza o devolvesse. No grande corredor ela resolveu vasculhar o celular:
Noite maravlhosa.... melhor org d minha vida... te amo...
Na sala de espera do Dr. Jaime havia um quadro com fundo de veludo preto e um bisturi no centro, além de uma placa de prata; homenagem do hospital ao eminente Dr. Jaime Voutersk. Foi a arma do crime. Maria Tereza entrou na sala no final de uma consulta e tirou a roupa na frente do sorridente médico:
— Você e suas loucuras...
Foram as últimas palavras dele. Ela vestiu o grande avental branco sobre o corpo nu e sentou na mesa de consultas, com as pernas abertas. Ele foi, e não voltou mais. Uma eminente enfermeira chefe, um eminente médico, um eminente delegado, um eminente criminalista, uma eminente ereção.
Creio que num primeiro instante ela pensou que fosse meu celular, mas só num primeiro instante, não havia como se enganar. Quando tivemos algum espaço, voltei a colocar a pasta na frente do corpo e pensar na minha última crise de fígado, uma das poucas coisas que funcionavam em emergências. Muitas vezes percebi que ela teve vontade de me perguntar alguma coisa sobre aquilo, mas nunca falou nada, e até hoje ela é um dos meus maiores sonhos eróticos que, como diz Dr. Euvaldo, não devo lutar contra.
Só não é maior que o sonho com Mariana. Nunca aconteceu por completo. O pai de Mariana foi transferido para uma agência da Caixa Econômica aqui da capital e ela deixou Sorocaba aos 17 anos, dois anos antes de mim. Embora tenhamos nos vistos nas férias, e feito longas e deliciosas brincadeiras, nunca aconteceu.
— Não, atrás dói...
— Como você sabe?
— Não interessa como eu sei, atrás não... mas eu tenho uma recompensa pra você....
Ah, Mariana! Que recompensa!
Quando passei no vestibular pra direito e vim morar a três quadras da casa dela, pensei que era a solução do destino. Mas o destino, que grande farsante! Depois de tantas tentativas sem conseguir passar em medicina, ela passou em Odontologia, em Curitiba. Nos vimos algumas vezes, porém, nos dois últimos anos da faculdade não nos encontramos e, quando isso aconteceu, ela me abraçou apertado e disse no meu ouvido:
—Tenho uma coisa pra te contar...
—Você não é mais virgem...
— ...vou me casar.
Um trovão retumbou no mesmo instante que eu lembrava da sentença que mudou para sempre meu destino emocional, como aconteceu naquele dia: uma grande tempestade arrasou minha cidade interna, tão arduamente construída, só pra Mariana morar.
O trovão foi seguido de outro, e outro, e a chuva que era fina, caiu agora vigorosa, enquanto o táxi entrava na Faria Lima e o meu celular tocava:
— Alô!
— Que pena que você fugiu...
— Quem está falando?
—Ana Isabel...
—Como você conseguiu meu telefone?
—Estou atrapalhando alguma coisa?
—Não, estou num táxi, chegando na casa de uma... cliente.
—Uma emergência...
—... sou criminalista, nem sempre dá pra marcar para amanhã.
— E vai estar com a noite toda ocupada... quer dizer, nós estamos indo jantar, pensei que gostaria de ir junto...
— Devo me liberar logo, em que restaurante vocês vão?...Antiquárius... Ah! Sim, uma ótima escolha (ai, meu bolso!)... tão logo eu me libere eu ligo, está bem, obrigado pelo convite...
Nossa! Assim eu até pareço um advogado! Parecia que estava tratando com uma cliente. Pensei em ligar de novo, mas o táxi acabara de parar no n.o 780, enquanto o mundo parecia se dissolver do lado de fora.
— É melhor esperar um pouco Doutor, com essa chuva não dá pra descer. Não tem problema, vou parar o taxímetro.
A casa de Mariana era cercada por um imenso muro branco, com um pequeno portão de madeira no meio, embaixo de um toldo amarelo. Um muro, que protegia um bosque chamado Mariana, uma maçã chamada Mariana, um sonho chamado Mariana. Uma assassina, chamada Mariana. Ah! Mariana...
Não fui ao seu casamento. Fiquei cinco anos sem vê-la, sem nenhum contato, até que o farsante destino intrometeu-se no meu caminho. Aquele tal de Nando, indicado pelo Felício, era filho de quem? Da Carmem, melhor amiga e confidente de quem? Mariana. O Nando havia saído bêbado de uma festa: cinco da madrugada e um Audi 0 km por ter passado no vestibular e, num ponto de ônibus, três invisíveis; mas os invisíveis também morrem. E o pai ainda comentou:
— Ainda bem que tinha seguro.
Caralho! Seguro não devolve a vida pra ninguém! Pensei até em não aceitar o caso, mas foi ela quem veio falar comigo em meu escritório. Acabamos passando a tarde juntos e várias outras depois disso. Reatamos a amizade, mas sem contato físico que fosse além de um rápido roçar de rostos, embora ela sempre deixasse um cantinho do lábio no caminho.
— Eu quero segurar ele pra você...
— Como assim?
— Enquanto você faz xixi. Quero fazer pontaria no vazo...
— Tá louca?
— Vocês nunca acertam... quero ver se é mesmo difícil... não sei porque vocês não fazem xixi sentado, como a gente.
Ah, Mariana! Riu muito quando contei o motivo de ter ido no psicanalista. Ficou curiosa para conhecer Maria Tereza, isso por que não contei sobre a Vitória, sobre a Elisa, sobre a Cidinha, sonhos eróticos menores, mas que haviam provocado ereções trágicas também. Contou sobre o marido, também dentista, e suas crises de ciúme. No início não falou mal dele, mas, no último mês, começara a reclamar.
— Por que você não se separa? Estão bem de dinheiro, não têm filhos... o que a impede?
Ela não respondeu. Acho que não sabia, ou até pareceu que nunca tinha pensado a sério no assunto. Há uma semana ela apareceu com uma marca roxa no braço. Falou que se acontecesse aquilo de novo ela o mataria, e agora ela estava lá dentro, com o Dr. Eurico esticado no carpet do quarto. Tão logo apanhei o táxi no Anhembi liguei para ela novamente para pedir mais detalhes e dizer para não fazer nada até eu chegar. A chuva começava a acalmar e era hora de eu entrar, abraçá-la, acalmá-la, e chamar a polícia.
— E nós acabamos nunca transando... ou melhor, você nunca me penetrou...
Confesso que fiquei um pouco constrangido com a espontaneidade dela. Parecia que havia esquecido do tempo e falava como no nosso tempo, sem pudores, sem frescuras. Não respondi, apenas sorri, porém, sob a mesa acontecia uma rápida revolução. Ela sabia disso, riu e falou:
— Ficou duro, não é? Eu nem preciso matar alguém pra ele ficar duro...
Ah! Mariana... malvada Mariana!
—Acho que já dá pra descer Doutor... dá pra chegar até o toldo sem se molhar.
Mesmo a chuva tendo acalmado, me molhei bastante. Respirei fundo e toquei a campainha. Quase no mesmo instante a fechadura do portão destravou e o celular tocou novamente:
— Está chovendo muito, mudamos de restaurante, estamos indo no Massimo...
Meu bolso continuava doendo. Quando cheguei na porta ela estava entreaberta. Entrei e não a vi. Não sabia que quadro iria encontrar, porém, o que encontrei foi bem mais surpreendente do que eu esperava: ela estava usando um grande jaleco branco, manchado de sangue, quase todo aberto na frente, preso apenas por um botão e sem roupa por baixo. Maldita! Não tivesse cometido um crime... dava quase pra dizer que estava fazendo de propósito. Mas dentistas usam jalecos brancos, embora costumem usar roupas por baixo.
Ela estava na suíte e, numa mesa um Alma Viva e duas taças. Devia estar louca. Os olhos vermelhos e molhados. Seu corpo aparecendo e desaparecendo.
— Onde ele está?
Ela apontou a porta fechada do banheiro, porém, quando fui abri-la, ela gritou:
— Não! Não quero mais vê-lo... ele está horrível...
— Com o quê você o matou?
Ela puxou uma toalhinha branca e ao lado da garrafa do Alma Viva apareceu uma pistola automática. Eu sabia que ela ainda atirava em academias e era entendida em armas, e seu corpo aparecia e desaparecia.
— Você já está preparada? Podemos chamar a polícia? Conversamos enquanto eles vêm.
— Ainda não... não, Júnior, ainda não...
Somente ela me chamava de Júnior. Falou chorando, sentada na cama, com as pernas abertas, me deixando ver seus lindos, dourados e macios pelos pubianos, e o colibri que eternamente os sugava. Levantou soluçando e veio em minha direção. Seu abraço foi apertado e quente. Imediatamente ela percebeu o que estava acontecendo e apertou as pernas um pouco mais entre as minhas. Estava realmente louca.
Aquele abraço foi se prolongando. O jaleco havia se aberto ainda mais quando ela andou rápido na minha direção. Os invisíveis sonhavam com maçãs pelas ruas e os velhos mendigos morriam sob os viadutos e marquises. Ana Isabel pedia um Dom Perignon no Massimo e eu tinha uma inabalável ereção, encostado em Mariana, com seu jaleco sujo de sangue, com o Dr. Eurico morto atrás da porta do banheiro.
— Ele está enorme... não, você não pode chamar a polícia agora... não agora... nós nunca... não, agora você não pode chamar a polícia... nossa, como ele está enorme!
Ela virou de costas e encostou novamente em mim, fazendo com que a abraçasse.
Quantas sessões haveria ainda de pagar ao psicanalista? Era impossível resistir. Quantos anos esperando? Senti como se ambos estivéssemos perdendo uma virgindade remota; como se rompêssemos um hímen atemporal:
sinto o cheiro quente do amor
atrás da tua orelha
aperto minhas mãos
um pouco abaixo dos teus seios
e trago todo teu corpo junto ao meu
levanto tua coxa com a minha
e deslizo minha mão segura ao botão
indefeso da tua louca vontade
abro-o, e encontro os pelos macios do teu sonho
mas antes de desafiar teu sexo úmido
viro-a para mim
e encontro o delicioso desespero dos teus olhos
beijo teu lábio, o de baixo
o de cima
e deslizo minha língua atônita ao redor da tua boca
ofegante por mim
afasto o tecido injusto que me rouba teu seio
ah! Que me olham
e as mãos encontram livre a trilha do fogo
que corre atrás do teu corpo
no longo caminho da nuca
ao vale quente das tuas pernas...
elas se dobram
e eu a derrubo mansa
ao chão do meu destino...
Penetrei Mariana. Finalmente perdemos nossa virgindade, de forma trágica, ali mesmo, no carpet do quarto. Éramos íntimos e não éramos. Enquanto gozávamos como dois desesperados, os dois celulares tocaram, o meu e o dela. No meu devia ser a Ana Isabel.
Enquanto ela olhava o visor do dela e sorria, falei:
— Devemos chamar a polícia...
— Não precisa.
— Como assim? Você sabe que é a melhor forma... vamos alegar legítima defesa, seu braço ainda está roxo...
—Você não vai ver quem te ligou?
—Por que? Isso não é importante agora... temos um morto aqui.
Parecia que as coisas tentavam se reorganizar na minha mente todas ao mesmo tempo e isso criava ainda mais confusão. Como ela podia estar tão calma?
—Veja quem ligou.
Não conhecia o número, mas havia um sinal de mensagem de voz na secretária eletrônica. Enquanto ouvia a mensagem a confusão dos pensamentos atingia o nível máximo, como uma fornalha pronta para explodir. Fui até a porta do banheiro e a abri, enquanto apertava a tecla para ouvir novamente a mensagem:
“—Dr. Gustavo, aqui é o Dr. Eurico... foi minha mulher que me deu seu número e pediu para que eu ligasse... nós estamos nos separando... ela disse que o senhor é um ótimo advogado...”
—Você mentiu pra mim...
— Não, eu não menti... não totalmente... a única mentira foi dizer que ele estava no banheiro. Eu matei realmente o Eurico... aqui dentro.
— Então por que armou tudo isso.
Ela riu. Ah! Mariana... Ela riu e veio em minha direção, me abraçou e disse:
—Apenas estou ajudando seu psicanalista... realizei o seu maior sonho erótico... além do mais, já merecíamos isso há muito tempo... eu sempre fui apaixonada por você...
— Ei! Espera aí! EU sempre fui apaixonado por você...
— Mas demorei muito a descobrir isso. Só descobri agora, quando nos reencontramos. Nunca falei da minha paixão pensando que você me via apenas como amiga. Uma amizade com quase sexo.
— E foi por isso que resolveu se separar? Por minha causa, ou devido aos ataques de ciúmes dele?
Ela soltou-me e foi na direção da mesa. Encheu as duas taças com o Alma Viva, fazendo-o cintilar sua cor rubi na frente da vela que havia acendido, depois virou e falou:
— Não. Não foi por sua causa. Na verdade os ataques de ciúmes eram meus. Nunca fui de mentir... talvez omitir, mas não mentir. Descobri que ele tem um caso com a advogada que contratou há algum tempo, para defendê-lo num processo trabalhista...
Sentei na beirada da cama. Um trovão trouxe mais uma pancada de chuva. Algum velho mendigo deve ter morrido; algum invisível apareceu, de repente; Paixão perdida no tempo. Tesão reencontrado. Vingança. Devolveu a traição na mesma moeda advocatícia. Alguma maçã deve ter caído, e o dono não viu. Indicou a mim. A mãe de arame continuava perturbando. A chuva alagava as ruas, as almas.
Mais tarde, com um táxi novamente me esperando no portão, ainda perguntei pra ela:
— Será que eu conheço essa advogada?
— Ela é quase uma recém formada... uma tal de Ana Isabel... não vem ao caso...
Quando ela falou o nome eu já começava a descer a escada do jardim. Olhei para ela tomado de um turbilhão de dúvidas instantâneas. A esperta Mariana! A maquiavélica Mariana! A vingativa Mariana! Continuei descendo, lento. Virei-me novamente e perguntei:
— Você conhece um advogado chamado Antônio Arruda?
Ela não respondeu, apenas riu de canto de lábio e me lançou aquele conhecido olhar moleque, que nunca perdera.
Ah! Mariana...
Mauro C. B. Camargo
http://www.maurocamargo.com.br/
"
Uma nota muito mais tardia (2006.12.16 às 23:25 GMT), mas necessária: por erro de correcção automática, que passou despercebido, o nome do Autor no título e na assinatura final saiu Mário e não Mauro. A correcção está feita, é mesmo Mauro... e o Mauro que me desculpe.