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Ontem, no Correio cá do subúrbio, encarei uma recordação dos meus tempos de "primária" no então Colégio Externato de Gaia. Era meu (excelente) Professor o Senhor Carlos Alves Teixeira, natural, creio, de S. Simão, Murtosa, e que muito boas recordações deve ter deixado a muita gente. Eu, por mim, fui um ingrato: nunca mais o visitei. Aliás fui um ingrato com várias pessoas e em várias coisas e, se isso me pesa, já não vai a tempo de qualquer reparação. Nem eu, narigudo como sou, seria propenso a isso. Mas adiante... Pois nos correios cá da área duas senhoras fadigavam-se a preencher os impressos (hoje muito simplificados) de um registo com aviso de recepção. Tinham dúvidas...
E eu recordei como o Sr. Carlos Alves Teixeira tinha o cuidado de passar pelos correios e de trazer uma molhada de impressos, tantos quantos os alunos da classe, e nos punha um dia a escrever um telegrama (lembrando que cada palavrinha ou sinal pagava, que convinha suprimir as que não eram precisas mas sem prejudicar a inteligibilidade do texto e que, nas palavras muito compridas, havia que contar as letras), outro dia a preparar um vale, outro dia a preencher um boletim de registo e um aviso de recepção, que era vermelho ou castanho, escrito em Português e em Francês e donde constava, nesta última língua, que eu ainda não percebia e que já muitos, por aí, deixaram de perceber, uma expressão a que eu achava muita graça "Biffer la raison inutile" ). Recordo ainda o nosso primeiro encontro com o papel selado (havia papel selado azul com o escudo da República em selo branco no meio de um escudão a verde... tudo acima das 25 linhas, se eu bem me recordo). E ele, que já nos tinha ensinado a (como redacção) escrever uma carta desmistificava o formalismo e dizia apenas para os amedrontados ganapos que nós éramos: "Meninos, o papel selado não é mais que um papel de carta. É um papel de carta para escrever a pessoas especiais. Pronto! E a primeira coisa a fazer (depois de nos ensinar a marginar à esquerda o mesmo, a 25% da largura, com a velha técnica da dobragem a a metade da metade) é escrever o endereço, isto é, o nome especial que usa a pessoa especial a quem V. vão escrever. Por exemplo: Senhor Presidente da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia. Mas como essa pessoa especial recebe muitas cartas dessas, tendes que, logo a seguir, escrever quem sois e de forma completa: nome, morada, número de cédula pessoal, etc., para que ele vos possa mandar uma resposta. E agora, é de dizer por escrito tudo o que quereis, tudo muito clarinho. Se pedirem alguma coisa, ponham depois um "Espera deferimento" que é dizer que esperam que seja dito "que sim" ao que pediram, coloquem o local e data, porque não há carta sem local e data, e a vossa assinatura no fim. Está bem?" E estava bem. Ensaiávamos em papel azul não selado e saímos dali a saber fazer as coisas, incluindo o cuidado a ter no selo fiscal quando fosse preciso, e que se assinava a meio mesmo, em cima do tal escudo da República, sem cobrir o valor em algarismos (em cima) e o por extenso (em baixo). E eu, nos correios, ontem, pensava cá para comigo: estas senhoras não foram certamente alunas do Sr. Carlos Alves Teixeira ou de qualquer versão dele, porque se fossem não tinham quaisquer dúvidas sobre quem era o remetente e quem era o destinatário...
E, subitamente, tive muitas saudades do meu Professor, daquele a quem fui ingrato a ponto de nunca mais o visitar, e, sobretudo, tive imensas saudades de mim - mesmo que há tantos anos continue, teimosamente, a visitar-me todos os dias.
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