Há momentos em que é bom meditar, tranquilamente, sobre certos espelhos da natureza humana. Há muitos, muitos anos, dizia-me um velho professor meu - e que até era padre - que para conhecermos melhor a natureza humana nos bastaria estudar profundamente a obra de três autores: Shakespeare, Nietzsche e Dostoievski. Recordo essa conversa e o apontamento que dela fiz, mal pensando que - quase uma vida depois e em terras mais a Sul, - eu seria tentado a recordá-la ao procurar um clássico texto que o primeiro autor nos deixou na sua famosa peça "Júlio Cesar" que o cinema várias vezes trouxe ao grande público (cito os desempenhos de Marlon Brando, em 1953, e de Charlton Heston, em 1970, que se podem encontrar no "YouTube"). Trata-se da fala de Marco António aos Romanos, na escada do Senado, depois do monólogo perante o cadáver ainda quente de César e do discurso justificativo de Brutus. Existem variantes do texto e a tradução não será das melhores, do que vos peço compreensão e desculpa. O momento, por outro lado, é-o.
"Amigos Romanos, concidadãos, dai-me
os vossos ouvidos. Vim para enterrar César, não vim para louvá-lo. O mal a que os homens procedam sobrevive-lhes, mas o bem que em
vida façamos será quase sempre enterrado com os nossos ossos - e que assim seja também para
César. Disse-vos o nobre Brutus que César era ambicioso. E, se isso foi verdade,
essa falta tão grave terá sido paga por César com a própria vida, aqui mesmo, às mãos de Brutus e de outros com ele. Mas Brutus
é um homem honrado, e assim são todos esses, todos homens honrados. Venho pois para
falar no funeral de César. Ele era meu amigo, fiel e justo comigo. Mas Brutus
diz que ele era ambicioso. E Brutus é um homem honrado!
César trouxe muitos prisioneiros a
Roma e estes, para serem libertados,
encheram os cofres de Roma. Parecerá isto uma atitude ambiciosa de César?
Quando os pobres sofriam, César chorava. Ora a ambição torna as pessoas duras e
sem compaixão. Mas, Brutus diz que César era ambicioso. E Brutus é um homem
honrado!
Tereis todos visto que, durante as Lupercais [2],
eu, por três vezes, ofereci a César uma coroa real e que ele por três vezes a recusou.
Será isto ambição? Mas Brutus diz que ele era ambicioso e Brutus, todos o sabemos,
é um homem honrado!
Eu não vim aqui falar para discordar do
que Brutus disse. Mas tenho que falar daquilo que sei. Todos vós já amastes César
e tivestes razões para amá-lo. Qual a razão que vos impede de, agora, na morte,
lhe prestardes homenagem?
[Marco Antônio faz uma pausa no discurso. Na
audiência, alguns ouvintes começam a refletir sobre o que ele disse, questionando-se
se César teria, afinal, merecido a morte que teve. Passada esta breve mas
solene interrupção, Marco António retoma a palavra:]
Ontem, a palavra de César seria capaz de
enfrentar o mundo, agora jaz aqui morta. Ah! Se eu estivesse disposto a
arrastar os vossos corações e mentes para o motim e a violência, eu falaria mal
de Brutus e de Cássio, os quais, como sabeis, são homens honrados.
Não vou pois falar mal deles. Prefiro
falar mal do morto. Prefiro falar mal de mim e de vós do que desses homens
honrados.
Mas eis aqui um pergaminho com o selo de
César. Achei-o no seu armário. É o seu testamento. Quando este testamento for
lido - porque, perdoai-me, eu não
pretendo lê-lo! – os pobres arrojar-se-ão para beijar os ferimentos de César e
para molhar os lenços no seu sagrado sangue.
[O povo reclama e exige a Marco António que leia o testamento .]
Tende paciência, amigos, mas eu não devo
lê-lo. Vós não sois de madeira ou de ferro, mas sim humanos. E, sendo humanos, ao
ouvirdes o testamento de César inflamar-vos-eis, ficareis furiosos. É melhor
pois que não saibais que sois os herdeiros de César! Porque, se o souberdes...,
o que poderá acontecer? Mas quereis mesmo levar-me a ler o testamento de César?
[Pausa interrogativa] Formai então um círculo em volta do corpo e deixai-me
mostrar-vos César morto, aquele que escreveu este testamento.
Cidadãos. Se tendes lágrimas, preparai-vos
para soltá-las. Todos conheceis este manto. Vede: foi neste lugar que a faca de
Cássio penetrou. Através deste outro rasgão, Brutus, tão querido de César,
enfiou a sua faca, e, quando ele arrancou a sua maldita arma do ferimento, vede
como o sangue de César jorrou. E Brutus, como sabeis, era o anjo de César.
Oh!,Deuses, como César o amava. O golpe de Brutus foi, de todos, o mais brutal
e o mais perverso. Pois, quando o nobre César viu que Brutus o apunhalava, a
ingratidão, mais que a força do braço traidor, parou seu coração. Oh! Que queda
brutal, meus concidadãos. Então eu, vós, todos nós também tombamos, enquanto esta
sanguinária traição sobre nós florescia. Sim, agora chorais! Percebo que sentis por ele um pouco de piedade. Boas almas!
Chorais ao ver o manto do nosso César despedaçado.
Bons amigos, queridos amigos, não quero
estimular a vossa revolta. Aqueles que praticaram este acto são honrados. Não
sei quais as queixas e os interesses particulares que os terão movido a fazer o
que fizeram. Mas são sábios e honrados e tenho a certeza que vos apresentarão as
suas razões. Eu não vim aqui para roubar os seus corações. Eu não sou tão bom
orador quanto Brutus é. Sou um homem simples e directo, que amo os meus amigos.
[Ouvem-se novos
comentários das pessoas, agora lamentando o assassinato e censurando os
assassinos. E Marco António encerra a sua oração fúnebre:]
Aqui está o testamento, com o selo de
César. A cada cidadão ele deixou 75 dracmas. Mas, mais ainda: para vós ele
deixou também os seus bens. As suas propriedades, deste lado do Tibre, com as suas
árvores e o seu pomar, serão tanto vossas como dos vossos próprios herdeiros e sê-lo-ão para sempre.
Este era César: quando aparecerá outro
como ele?
[A turba, em revolta, sai
rumo às casas dos conspiradores, para vingar César.]"
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[1] O romano, não o hodierno.
[2] Festas anuais romanas, em honra do deus flautista e assustador (Pã ou Luperco), que nos deixou a palavra "pânico".