ou "QUEIME ANTES DE LER"
O admirável mundo novo em que vivemos é giro e é perigoso e até é giro porque é perigoso. Tendo em mente que toda a atividade criminosa é por necessidade uma atividade sigilosa, encoberta, inventaram-se vários meios para a colocar a descoberto e nisso reside a investigação - esta também sigilosa por necessidade até à aclaração da dúvida, para evitar que os fatos a investigar desapareçam. Para proteger este sigilo criou-se o "segredo de Justiça", diferenciando ambos os patamares, acreditando que os detentores do sigilo 1 (o investigado) tudo farão para lixar a atividade dos detentores do sigilo 2 (o que vai sendo aclarado pelos investigadores) e prevenindo que assim suceda [1]. E, para maior prevenção, definiram-se medidas inspetivas que limitam a liberdade do sigiloso-1 e que podem ir até à privação de liberdade do mesmo, para evitar que desenvolva o seu animus, procurando lixar os esforços dos sigilosos-2, quer escondendo coisas, quer metamorfoseando-as quer (ainda e até) pondo-se ao fresco. - se possível para praias paradisíacas, onde não chegue o braço dos desmancha-prazeres e, pelo menos nos filmes, por perto de belezas jamesbondianas também muito à fresca.
Falou-se já aqui do uso do "segredo de justiça" e dos riscos que pode conter se os sigilosos-2 nele se escudarem com displicência, se se tiverem enquistado nele com muita matéria ainda para averiguar (no chamado "prender para investigar") e isto, especialmente, quando tiverem os pretensos sigilosos-1 arrecadados em nome desse sigilo. Neste pormenor a experiência mostra como a justiça americana sabe andar depressa para mal dos Madof ou quejandros e deixa dúvidas sobre o que se passa no nosso quintal. Há pois que medir e dar objetividade, razoabilidade e celeridade às situações, como se aprendia nas lições de Direito Penal da Dra. Teresa Beleza - admitindo-se que o Código fornecesse instrumentos para isso (ainda que permitindo prazos longos e reduzindo as formas sindicantes) e que a Justiça corresse célere a tapar quaisquer portas abertas. A questão para o coagido ou arrecadado, e ele poderia e poderá ser qualquer cidadão, é quando... a Justiça se deixasse de correr célere e se adequasse a uma velocidade mais reduzida, no estilo do "mañana!", ou quando a objetividade falhasse, ou a razoabilidade fosse afectada e nenhum poder sindicante aparecesse a avaliar a tal razoabilidade e diligência.
Pensando que houve recentemente algo de didático nesta matéria e que as pessoas vão abrindo os olhos para o entrave dos "segredos" (antípodas que são das transparências), convém também alertar para o facto de - em dias igualmente muito recentes - ter surgido nas audiências uma outra invocação intransponível sob a figura do "segredo de Estado". Voltamos ao mesmo, mas mais acima. Tudo continua em termos de objetividade (oportunidade), razoabilidade (proporcionalidade) e celeridade - e na existência (ou não) de um poder sindicante. Por isso que São Montesquieu nos acuda: há que evitar que uma causa seja aceite para julgamento num Tribunal e aí não possa ser julgada por impedimentos que deveriam ter sido detectados antes de formulada a acusação - e evitando que assim se crie uma dúvida pública sobre a eficácia da Justiça [2]. Fica pois a pergunta: quem merece a confiança pública para essa qualificação, como segredo de Estado, e de que forma a exerce - de molde a evitar que um STOP embasbacante caia em plena audiência, com testemunhas arroladas recusando-se a responder! Sem esse esclarecimento e sem a prova prática da sua aplicação, o "segredo de Estado" mal gerido pode surgir amanhã como um processo infiltrante e limitador em qualquer procedimento judicial.
Mas há mais - e talvez a procissão ainda venha no adro. O jornal "i", de ontem (20 de Outubro), lança, em paginas 2 e 3, com chamada à 1ª página, uma notícia sobre as relações (também secretas) entre a União Europeia (a mandona "heil!" de todos nós - e por culpa nossa) e lóbis empresariais no sentido de, em Novembro, ir à aprovação uma nova diretiva europeia para proteção dos segredos empresariais (legislação europeia sobre segredos comerciais) vedando acessos e abrindo a possibilidade de acção judicial contra entidades externas (como jornalistas e denunciantes/ reveladores que poderão ser consumidores ou as suas associações). Tais acessos reportam-se a acervos de comunicações e conhecimentos (know-how) em casos que, embora tipificados com um conjunto de requisitos, permitem afirmações como esta: "com estes critérios, todo o tráfego de e-mails na rede interna de uma empresa poderia ser considerado segredo comercial se estiver protegido com uma password". Volta-se o artigo do "i"e as fontes que cita (porque há fontes que cita e locais néticos a visitar) para os efeitos nefastos desta diretiva para o jornalismo de investigação, ms é fácil de entender a sua incidência no que toca aos consumidores/clientes. Para estes, depois dos escândalos LuxLeaks e VW, entre outros, pouco de bom parece de esperar da referida iniciativa que, de forma evidente, virá por novas armas judiciais na mão das empresas e limitar processos movidos por consumidores ou associações destes. Novos sinais de STOP resultarão desta disposição, se aprovada! É de estarmos atentos.
Em contraste com esta blindagem estatal e comercial, muitos dos cidadãos-consumidores alegremente continuam a despir-se e a despem-se e incautamente colaborar com processos de informação que de forma descarada os envolvem. Informação hoje em dia vale dinheiro. e certamente já terão reparado num fato muito simples que prova como cada um de nós está a ser escrutinado: se estiverem especialmente ligados em computador a um determinado tema, poderão verificar como as aberturas. listagens e popups de publicidade começam a conduzir para esse tema ou temas afins. Mas disso falaremos proximamente. Porque, para além das auto-exibições suicidárias, as devassas (i.e. atentados à vida privada e à privacidade da vida) existem.
- - - - - - - - - -
[1] Uma tentativa prévia consistiu em fazer que o detentor do sigilo 1 se denunciasse ele próprio por qualquer forma e/ou se comprometesse a renunciar ao sigilo ou ao que ele significava. O regime anterior pariu uma solução nem original nem curiosa que era fazer com que o candidato a um lugar por qualquer forma dependente ou feito dependente desse mesmo regime declarasse que não estava abrangido por qualquer atividade sigilosa de natureza contrária. E há aí aquele formulário em que F, se pretendesse um mísero poleiro, teria que declarar por sua honra que não fazia parte de qualquer organização secreta etc etc. O que dava lugar a situações caricatas: F. sentindo-se coagido nos seus sentimentos (se fosse esse o caso) consultava G (que tinha os mesmos sentimentos mas um conhecimento quiçá mais avançado das mundanidades) e G dizia-lhe: ó pá? se fizesses parte de uma organização secreta ias mesmo dizer que ela existia e que fazias parte dela? Eu não, respondia F, Pois é, retorquia G, se é secreta é secreta por definição e por isso conta que quem nela esteja nada diga! entrega pois lá a m**** do papel e manda-os mas é à fava.
[2] Para isso bem basta o kafkiano de algumas situações: o país B julga e condena uns empresários por serem corruptores ativos de cidadãos nacionais e estrangeiros, incluindo expressamente nestes ultimos cidadãos do País A. Em qualquer parte do Globo, salvo talvez no convívio com os pinguins da terras antárticas, isto significa que a diligência em B demonstrou e provou a existência de corrompidos passivos em A. Mas em A nada se descobre... e o processo acaba arquivado. Quid juris?