Coroemo-nos de rosas, antes que (estas) murchem...
... ou antes que nós murchemos.
Conheci esta frase latina apontada a lápis, com uma excelente caligrafia, numa página de um livro antigo, na Biblioteca Municipal do Porto e achei-a tão curiosa que logo a anotei. Terá possivelmente sido o Professor Cruz Malpique que m'a traduziu e explicou. Lembro-me que a discuti, no Liceu (o LAH, claro) com o Manel, que ainda só era "o Manel" mas que já a tinha conhecido por outra via [1]. Naquele tempo, ou algo antes disso, o rigor vigente nos restos do Império tinha proibido uma música carnavalesca importada do Brasil e que, numa forma muito mais popular, tinha o refrão saturante e incessantemente repetido pela rádio (até a zelosa censura o proibir, claro) de "o que se leva desta vida é o que se come, o que se bebe, o que se brinca, ai ai". Encanta-me repetir aqui o que então foi proibido e especial e arrogantemente fazê-lo quando, no mundo em que vivemos, tudo se nos volta a ser servido com o apagamento da alegria sob um manto negro de terror. Abrimos o jornal, ou ligamos a TV, e logo o terror aparece. Estamos sempre no risco de qualquer resgate, na iminência de qualquer desgraça, na ameaça permanente de qualquer insegurança, no comportamento insólito dos que deveriam dar algum exemplo (e dão precisamente o contrário), na expetativa do que poderia apresentar alguma esperança (e logo qualquer esperança é criticada). Ironicamente, foi a Nona, a Nona que enroupou em música a ode "Sobre a Alegria" que Schiller nos deixou, o escolhido hino para uma Europa que tantas vezes já se dilacerou e que parece querer viver no frenesi triste e de mal agouro de 1913 - e mais não digo. Coroemo-nos de rosas... e há logo quem vá à pressa buscar ao Livro (ao "nosso", claro, e nos leve ao Sab 2,8) o versículo que, por isso, imediatamente nos desqualifica e nos condena [3] - talqualmente como, nos anos 40 ou 50, se fez proibir o samba em modelo pre-pimba ou como a criança infeliz que traduzia a infelicidade que testemunhava por um "aqui ninguém se ri". Austeridade pois, mas só de fachada. Porque, invocando a austeridade, o que efetivamente se procura é a desregulação discriminatória, exatamente o contrário das virtudes que se pretendem exaltar. Mata-se a alegria, exportam-se os jovens (que, tanto aqui como na Estónia, se fartam de consumir tranquilizantes), (des)consideram-se os velhos... mas em todos esses capítulos alguém procurará prudentemente colocar o seletivo "alguns": "alguma" alegria (outros que a possam ter), "alguns" jovens(outros que possam empanturrar-se na zona de conforto que ainda fique), "alguns" velhos (que tenham tido a prudência de traduzir a tempo a expressão "off shore"). Aos outros, o monstro informático que os trate como números, que lhes invada a privacidade, que os sature com redes ditas sociais (sociais o tanas), que os amarre à uma imposição sucessivamente crescente, que lhes imponha um PIB e lhes saque por todas as formas o que possam ter, que lhes mostre o descrédito das instituições que poderiam esperar e desejar ter como firmes - e que, ainda por cima, sempre façam isso com um dedo apontado. Queixemo-nos depois, nós que a fizemos, de que a geração que deixamos é pior que a "nossa, pois que o tempo corre e com ele se perde o momento de dar uma biqueirada em muita coisa que nos rodeia, ao nível do que podemos e enquanto podemos - antes que nós próprios murchemos, como as rosas.
Daí o ter encontrado na "net" (essa excelente via de conhecimento que tão mal usada também é) o poema que um Thomas Jordan (1612?–1685) escreveu e que Arthur Quiller-Couch, transcreveu no "The Oxford Book of English Verse: 1250–1900" editado em 1919 [2]:
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"Coronemus nos Rosis antequam marcescant... |
LET us drink and be merry, dance, joke, and rejoice, | |
With claret and sherry, theorbo and voice! | |
The changeable world to our joy is unjust, | |
All treasure 's uncertain, | |
Then down with your dust! | |
In frolics dispose your pounds, shillings, and pence, | |
For we shall be nothing a hundred years hence. . | |
We'll sport and be free with Moll, Betty, and Dolly, | |
Have oysters and lobsters to cure melancholy: | |
Fish-dinners will make a man spring like a flea, | |
Dame Venus, love's lady, | |
Was born of the sea; | |
With her and with Bacchus we'll tickle the sense, | |
For we shall be past it a hundred years hence. . | |
Your most beautiful bride who with garlands is crown'd | |
And kills with each glance as she treads on the ground, | |
Whose lightness and brightness doth shine in such splendour | |
That none but the stars | |
Are thought fit to attend her, | |
Though now she be pleasant and sweet to the sense, | |
Will be damnable mouldy a hundred years hence. . | |
Then why should we turmoil in cares and in fears, | |
Turn all our tranquill'ty to sighs and to tears? | |
Let 's eat, drink, and play till the worms do corrupt us, | |
'Tis certain, Post mortem | |
Nulla voluptas. | |
For health, wealth and beauty, wit, learning and sense, | |
Must all come to nothing a hundred years hence." |
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[1] E que até, ele próprio, acabou por escrever um poema nela inspirado, publicado no jornal do Liceu, quiçá um dos primeiros poemas do Manuel Alegre a ser divulgado em forma impressa. Sobre o assunto ( o poema, o Professor Cruz Malpique e o "Prelúdio", cuja 1ª Série ainda acabará um dia por aparecer digitalizada) ver:
alem do já referido "blogue da malta de 1954" que no dia 4 se vai novamente reunir no Porto e que nesse veículo deda memória conta muito mais coisas.
[2] Cortesia a www.bartleby.com/101/325.html (mas também www.bartleby.com/40/246.html, de uma outra antologia, de 1909, e tendo o primeiro verso como título). Aliás se procurarem Thomas Jordan com um motor de busca, sair-vos-á, antes do poeta do sec.XVII e com mais desenvolvimento, um hodierno, homónimo e inesperado economista e administrador bancário suíço. Sinal dos tempos!
[3] As reservas ao coroar com rosas vão muito mais longe do que eu pensava. Se se fizer uma procura em motor de busca, quer pela frase, quer pela imagem, encontrar-se-á o património religioso a dominar. a amarfanhar mesmo, a representação ou expressão profana. Uma razão emergente poderá provir da frase, assaz repetida, de que "uma coroa de rosas também é uma coroa de espinhos" - trazendo imediatamente o peso negativo e condenatório da Paixão de Cristo. Mas - passando de lado a questão botânica e secundária da feitura da "coroa de espinhos" (i.e. se seria uma coroa de silvas, ou de rosas ou de eufórbias) - o versículo citado, do Livro da Sabedoria, possivelmente coevo da erupção de Santorin e da destruição da civilização minoica, antecede - e por muito tempo mesmo - o drama do Calvário. Verdade, verdadinha, é que a frase latina pareceu inspirar a poesia e até a música a esta aliada (Tchaikovski fecit) mas não entusiasmou, ao que eu saiba, a pintura clássica.
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