PATRIMÓNIO INDUSTRIAL COMO GERADOR DE CONHECIMENTO
Intervenção
convidada proferida na celebração do Dia dos Museus (18 de Maio de 2018) no Museu
Industrial da “Baía do Tejo”, no Barreiro.
As duas décadas de 70 a
90 marcaram uma forte alteração do modelo industrial. Isto não sucedeu apenas
no Barreiro. Alteraram-se matérias primas, modificaram-se escalas, encurtou-se
o Mundo, exportaram-se locais de produção. A força avassaladora da economia,
vestida ou não de globalização, fez-se sentir em setores do conhecimento até
então quase imunes à sua penetração percutora e pensou-se mesmo que, a breve
trecho, se poderia dar resposta à questão inquietante formulada por Marcuse nos
anos 60: produtividade para quê?
Nesta mudança de campo,
de escala e de afinação há que reconhecer ter surgido um certo desamor às tecnologias ou, pelo menos, às tecnologias
que tinham até aqui conduzido o mundo industrial. Ouve-se hoje, com frequência,
dizer que “as tecnologias compram-se” e que é a partir dos produtos básicos dessas
tecnologias que se deve construir um mundo tecnológico novo, mais sofisticado,
mais exigente, menos descritivo da realidade fabril primária. A ciência
prossegue e a tecnologia , que dela decorre,
vem-lhe imediatamente na peugada, permanecendo no mesmo pelotão da frente, transpondo para o
carro-vassoura os velhos “kombinat”, os velhos centros industriais, que só se
mantém operacionais onde a Economia ainda não os condena. E só não digo “a
Economia e o Ambiente” porque tendências recentes e controversas mostram como a Economia pode reduzir a motivação ambiental,num mecanismo retrógrado.
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Houve mudanças nas próprias profissões. O envolvimento humano
foi sendo dispensado e a atenção das populações foi sendo desviada da produção para
o consumo e do trabalho para o emprego. Aliás havia já profissões que recebiam
mais atenção mediática que outras – e nesse aspeto as que se ligam à prática do
engenho ou seja ao domínio do
tecnológico foram certamente as mais depreciadas e substituídas. Mas o ritmo
atual também encurtou tempos de aprendizagem, e Bolonha que o diga e o mostre. Um engenheiro hoje passa muito mais brevemente
pela escola, pela fábrica ou pela oficina porque, se é astuto, depressa abandona
o que de engenharia aprendeu para ingressar na gestão e nas questões mormente
económicas e sociais que na gestão encontra. São os “billions and billions” para
impressionar o pagode. E, mais uma vez, quando necessitar da tecnologia…
compra-a. Várias situações curiosas já sucederam por esta transposição de
desempenhos. São, por agora, meros avisos.
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Para encerrar esta reflexão algo amarga direi que num recente
encontro de académicos sobre um tema
aparentemente diferente – a História – se apontaram três alvos imediatos: património, turismo e paisagem. A referência a património não primava pela relação deste com o conhecimento. Era, por
exemplo, montar uma cervejaria numa fábrica de cerveja, sem necessidade de
explicar o processo, ou trazer um restaurante requintado a uma sacristia
conventual, fazendo assim convergir o turismo e manter a paisagem no que de apreciável
pudesse completar o cenário. Mas a fórmula pode ter uma utilidade efetiva, como
veremos adiante.
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Onde reter, manter,
mostrar e sustentar o património? A reação dos diversos centros em que a
desindustrialização se verificou foi diferente, de caso para caso, e com
diferentes consequências – desde o modelo “a fábrica nunca existiu” que foi um
pouco o que aqui sucedeu (ou se pretendeu que sucedesse) até ao aproveitamento
bem realizado e mostrado que visitei algures e me dizem ter sido também conseguido noutros
locais. Mas, em qualquer realização, a preservação desse património, material e
imaterial, passa por algumas realidades que deveriam ter sido visitadas e
estudadas. Destaco
a organização e não a
improvisada sobrevivência,
a manutenção e sustentabilidade,
e o conhecimento trazido do passado, vivido no presente e,como
potencial, apontado para o futuro.
Digo isto assim porque considero
que museus e arquivos de carácter
técnico, enquanto se permite que vivam, têm sempre uma VIDA INFLUENTE relativamente limitada no tempo. Essa vida influente, no caso de um museu
industrial, diversa do de outros museus em que se preza a transtemporalidade da
Arte, mede-se pelo tempo em que se mantem, entre os seus visitantes, mormente
locais, uma maioria relativa de visitantes inéditos. No caso de um arquivo essa
VIDA INFLUENTE resulta da capacidade de
nele encontrar temáticas narráveis e histórias exemplares e de a ele saber trazer quem as trabalhe para partilha e
divulgação. O que nuns se mede pelas IMPRESSÃO CAUSADA E PELO CONHECIMENTO
TRANSMITIDO noutros pode medir-se pela PRODUÇÃO
REALIZADA. O museu de conteúdo técnico
não é paisagem facilmente renovável nem
se mantém apetecível ao fim de diversas
visitas. Cansa e cansa-se. Mas o pormenor justificativo e o conhecimento que dele se pode tirar
resulta certamente mais válido quando ampliado por renovadas audiências. Mas cabe
perguntar: AUMENTADO E RENOVADO COMO? E
a que custo? Só o poderá ser por processos de inserção local, regional e temática
e pela partilha de identicos problemas dentro de um processo de uma formação cultural
integrada.
A geração do conhecimento
resultará da convergência de TODOS a quem “aquilo” diga algo de específico e
valorizável (com o “aquilo” entre aspas não depreciativas e o TODOS em
maiúsculas porque deverão ser mesmo TODOS, sem torres de marfim ). Se se
desenvolveu aqui ou ali tecnologia valiosa que os “clientes” desses locais de
conhecimento se sintam de qualquer forma enriquecidos com a informação a isso
dedicada, que mantenham permanente acesa uma motivação pela instituição
respetiva, que a saibam renovada e renovável e assim o afirmem e para a sua
divulgação contribuam. Realizem-se encontros, debates, conferências o que quer
que seja que afaste o repetido mostrar das mesmas peças e o contar das mesmas
histórias, que afaste as rotinas chatas e que desafie e traga possíveis interessados externos que permitam
uma renovação em rede de audiências e
narrativas. Existem em vários concelhos do País exibições temáticas que foram feitas e em seguida
guardadas e esquecidas mas que podem ser
trazidas por intercâmbio temporário – mas muitas vezes ignoramos ou até desprezamos
o que o nosso equipoder possar
trazer-nos. E que guardemos e ouçamos narrativas de vidas enquanto existir quem
as possa narrar.[i]
Acentue-se o
interdisciplinar. Agarre-se não apenas História, mas a explicação das
coisas em todos os seus planos e formas,
as realidades presentes e as portas abertas para o futuro. Não se omita o
social. Criem-se ou participe-se nos Amigos disto ou daquilo, constituam-se comissões, ou núcleos escolares ou industriais ou de animação
coletiva local representando círculos
centrados no local de atração. Foram concursos e competições que, no são
princípio das chamadas “sociedades de emulação” do sec XIX, estiveram na origem de indiscutíveis avanços
no conhecimento. O exemplo da formação dos príncipes do iluminismo que
procurava que cada um tivesse um ofício – D.José, por exemplo, era marceneiro -
trazia consigo alguma sabedoria.
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E coloque-se assim o
Barreiro nas diversas rotas possíveis de por aqui passarem, de realizarem aqui a
tal combinação atualista de património,
turismo e paisagem. A exposição sobre a muleta – que hoje vai ser motivo de um importante encontro aqui ao lado
e que, ironicamente, vive mais na heraldica municipal do Seixal que na do
Barreiro – pode constituir elemento
permanente e “exportável” para um itinerário de barcos ribeirinhos ibéricos. E se esse itinerário não está organizado,
organize-se. Ou traga-se a pirite a um itinerário turístico-mineiro-social que defenda que o conhecimento dum minério
complexo como esse não deve ficar apenas na extração mas também na
transformação, criando o duplo MM de
sucesso, mineiro e metalúrgico, de que parece termos receios que outros
souberam aproveitar por não terem
receios alguns Direi, por conhecimento
de causa e exemplo de inação, que – neste ponto, em que temos razões originais e
até mundialmente únicas – continuamos a “andar
parados” e, embora praticamente aceites na comunidade mineira em podermos participar
numa rota turística existente e operante acompanhando Aljustrel e outras minas
do Alentejo, arriscamo-nos a perder os créditos conseguidos. Esperamos o quê? Que nos levem ao colo?
Surge aqui um apelo: pela
dedicação ao local de trabalho, que é uma realidade constatável, há documentos,
livros de fábrica, apontamentos e outra memorabilia que constituem patrimónios
pessoais mas que, passadas gerações, podem cair em perdição final como os
papeis que eram do avozinho e que estão por ali abandonados. Se é certo que
não há coisa mais perdida que uma coisa bem guardada, caso se encontrem tais memórias que elas sejam trazidas aqui para que
aqui sejam valorizadas e guardadas.
Finalmente: um centro
descritivo do que fomos e somos tem de
falar verdade. Conhecimento é verdade adquirida e trabalhável. Pelo cuidado de dois responsáveis pela
formação textil, e por quem manteve e musealizou o conjunto, que todos merecem a nossa gratidão, foi
preservado o equipamento textil que é mostrado neste museu industrial. Mas o
resto? Onde está a realidade químico-adubeira que trouxe para o Barreiro os
texteis de fibra dura porque precisava de ensacar o adubo aqui fabricado? Ou a
química e a família química que também habitava nas páginas da fábrica mas que
delas parece ter sido excluída? Ou o chumbo e o velho laminador de 1906 “desaparecido
em combate”, no seu desigual combate com o tempo?
O que de patrimonial
existe é, já por si, necessariamente
gerador sustentável de conhecimento. Pelo que fomos, pelo que somos e pelo que
serão os que vierem a seguir há que lhe dar persistência e continuidade. Há que
estudar e manter vivo o conhecimento de que é fonte e a ele subjaz. Sem isso restar-nos-á transportar para
aqui a reflexão melancólica de um Cesare Pavese sobre uma
fonte para verificarmos que uma tão simples
frase como “aqui houve uma fábrica” nos
poderá- mas só por alguns anos - ainda comover.
Barreiro, 18 Maio 2018
jmls