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Para me por em dia e não deixar mesmo derreter o "blog" qual sorvete, recupero uns breves apontamentos de viagem...
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2006-01-08
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De facto já não viajava de avião há muito tempo. Sinal evidente de alguma regressão funcional, num país em que muita coisa importante se passa fora. E, independentemente de, em nome das austeridades diversas e que entendo, ter deixado de aceder a certas tarifas - o que me não afecta e é coerente com a minha maneira de pensar - constato que, no geral e no particular, a qualidade do transporte passou, entretanto, ao estado de péssima. Bom, a finalidade daquelas geringonças e das companhias que estão por detrás delas é mesmo transportar-nos e o resto é pois acessório. Aguentemos a crise, conscientes de que alguém - numa situação de efectivo balanço - estará certamente a ganhar com isto tudo.
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No sítio onde cheguei, com uma sanducha manhosa no bucho, o imperioso dos horários, combinado com o facto de ser domingo e a quiosqueria estar encerrada por obras de remodelação local, não dava muita margem para abordagens gastronómicas e/ou demoradas. A solução era recorrer a uma hamburgueria relativamente conhecida, pois que era a única restauração por ali aberta e temporalmente acessível. Desde a minha passagem pelos EUA e o Canadá que não me tornei abstencionista radical àquilo a que muitos chamam, com razoável propriedade, de "junk food" e em que juram altaneiramente nunca jamais por os pés (muitos deles até serem condescendentes avós, claro). Sei comer tanto isso como a "nouvelle cuisine", como passar de blinis russos a tâmaras enroladas ainda não sei bem com quê perto da "Maison des Merveilles" de Bamako e estou sempre pronto a recorrer ao que, na altura, necessário se mostre e indígena pratique. Pois aqui, pelos diversos imperativos expostos, necessário mesmo foi. No espaço, aliás cheio de gente na mesma circunstância supletiva, no que seria a triste calma de uma repleta quase-sala de espera europeia-central, agitavam-se dois fenómenos perturbadores e olhados com ar censório: dois putos que por ali corriam e berravam, importunando tudo e todos, chocando com as mesas e arriscando o derrube de tabuleiros, chamados em alta grita e em confrangedor vernáculo pelas respectivas mães. Adivinhem qual a nacionalidade dos mesmos? Se disserem o que penso que disseram, acertaram apenas em 50%, pois, na verdade, um era de "palópica" origem. O outro, sim, era mesmo "pelópico".
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2006-01-09
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No segundo andamento da viagem, a eficácia dos caminhos de ferro centro-europeus voltou a marcar pontos. Quando viajo de comboio por aquela geografia, essa eficácia confrange-me, pois não posso evitar recordações antigas, imagens remanescentes e até memórias transmitidas. Vieram-me à ideia, entre outros cenários, dois filmes referidos quase à mesma época, embora algo distantes quanto a produção: o "Comboios Rigorosamente Vigiados", estreia do checo Jiri Menzel, sucesso em Cannes 1966 e de que nunca mais ouvi falar, e o "clássico" "A Batalha do Rail", de René Clément, filme choque francês de 1946. Poderiam ter vindo muitos outros, mas recordei estes.
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Recordei também as sagas dos comboios blindados, como máquinas de guerra ultrapassadas, sobretudo no leste europeu, mas que deixaram algum significado também em Espanha e em Cuba. Para os nostálgicos da história desses "comboios da morte" activos (já que os "comboios da morte" passivos eram os que conduziam rebanhos humanos para estações-terminus humanamente execrandas), que - uns e outros - um mix Bruegel-Turner não desdenharia, sugiro uma demorada visita ao Google sob o conceito "armoured trains".
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Para completar o trajecto, lembrei ainda a "Casa dos Espíritos", em que a linha de acesso às minas portuguesas de Neves-Corvo ganhou cenário de estação chilena, promovendo Castro-Verde a local de estreia mundial. E, para afastar de vez quadros negros ou cinzentos, permiti-me não recusar a memória transmitida de um filme que lamento não ter visto, mas que animadamente me relataram, que no enquadramento dum comboio russo do "antigamente", carregado de cortesãos, "cortesonas", com concessões democráticas ao pessoal ferroviário necessariamente presente e "champagne" à bessa, e que, retido pela neve mas suficientemente aquecido, sedeou - até ao seu resgate, oxalá demorado - uma desenfreada espécie de "Decameron" em que, em vez de se contarem histórias, se exercitavam directa e generosamente os actos.
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E, entretanto, as estações iam passando e passando, iluminando fugazmente as janelas.
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2006-01-10
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Numa igreja muito antiga, uma imagem de Santo António (dito de Pádua! não podia deixar de faltar essa habitual e errónea "denominação de origem"!), rodeada de ex-votos. Aliás todas as imagens da referida igreja estão rodeadas de ex-votos, uns pintados, estilo "naif" - como são os da Senhora do Rosário do Barreiro - outros gravados em placas de mármore ou de madeira. Pergundo a mim mesmo se aquele casal que ali foi de longe agradecer a cura do filho, em 1892, o teria ainda visto vivo em 1918. O amor pode muito - até a ilusão do momento.
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E por falar em '18. Meu Pai, em talvez reminiscências do Lys, costumava sentar-se à beira da minha camita, antes de eu dormir, e recitar-me um texto francês que, não sabendo ainda francês, me tinha sido uma vez traduzido e isso, com a minha memória de então, era suficiente: "Un jour un soldat, échapé du champ, frappe à la porte du foyer paternel. - Qui est lá, demande la vieille en sursaut! - C'est votre fils! - Vous mon fils? Vous mentez! Mon fils est à la frontiére, à defendre la Patrie!" Eu ouvia, ouvia, sabia já de cor o discurso todo, papagueava-o mesmo, mas não desistia de perguntar sempre no fim, feito Calvin: - E depois? - Depois - dizia meu pai - o filho, envergonhado, voltou para a guerra! Se essa explicação, que eu havia provocado, me dava uma ideia muito vaga do valor da Pátria, por outro lado também me irritava. Achava eu que, sem uma tragédia, aquela história não acabava bem e, por isso, o "espírito-Calvin" (então ainda indesenhado) reapossava-se da minha pessoa e motivava outra questão cruel: - E morreu lá? Meu Pai então, fingindo colaborar no drama mas juntando a reserva da dúvida, limitava-se a dizer: - Talvez! E eu adormecia tranquilo, felizmente longe, enquanto a guerra corria novamente pela Europa.
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2006-01-11
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A primeira fase da minha tarefa ficou hoje concluída e, por isso, mudo de local. O objectivo foi - está - atingido e teve um produto acessório: constatar como, para além das fachadas que ficam, cada pessoa - em si mesma uma história - pode ser feliz ou infeliz, com momentos de plenitude ou ocasos de solidão. A tendência é para que, em termos algo fatalistas, essa sucessão de estados se verifique pois que, em torno de cada um e no desenrolar do tempo, os conviventes vão rareando: uns porque o tempo ou as razões os levam, outros até porque se chateiam e afastam. Ficar só pode ser uma forma de morte antecipada, porque em torno do solitário nada vai parar - e a história privilegia sempre os sucessos e esquece tanto os desaparecidos como minimiza as razões dos desaparecimentos. Está na onda quem (e enquanto) nela permanece.
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2006-01-12
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As tensões induzidas nas sociedades por desenvolvimentos desiguais e mal concebidos de início engendam monstros. O sentido de insegurança das populações modifica comportamentos, reduz opções, compromete os transportes colectivos e mina os interesses imobiliários suburbanos. Numa TV local - e estou ainda longe de Portugal - ouço falar em grupos de cidadãos para colaborar com a polícia e constato a surpresa de um representante de um sindicato de polícias que se interroga sobre o que isto pode significar, sugerindo, mas não afirmando claramente, que tal possa representar uma encapotada legitimação de "milícias". Apela-se - aqui como lá - ao reforço de poderes e, no seu desespero, as ditas "minorias", ou sobretudo as segundas e terceiras gerações delas, já nacionais mas não assimiladas, assoladas pela permanente "crise" da economia (repito uma pergunta anterior: num sistema de balanço geral, quem é que está a ganhar com isto?), actuam de molde a reforçar tanto esses receios como tal pedido de reforço. O ensino degrada-se, de ambos os lados. Personagens isolados saltam para a liça e tentam afirmar o seu "eu" de poder. No campo internacional, a jactância de um chefe nacional ganha força própria e, na defesa das razões que afirma assistirem-lhe, enreda os sistemas estabelecidos. São sintomas gerais. Que herança esta que estamos a construir para nós mesmos?
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2006-01-13
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Dia infernal, completando indagações, visitando locais, recolhendo comprovantes. Tudo fica pronto, pouco antes do jantar. Visita fugaz a uma retrospectiva muito parcial de Turner (pessoalmente, gosto de Turner). Algo diferente, um livro sobre como fazer iluminuras. Pode ser um "hobby" para dias futuros. E fazer a mala. Regresso amanhã.
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Na livraria, especializada em livros de arte, encontro a resposta para uma pergunta que de há muito arrastava, talvez até por inércia ou esquecimento meu. Conhecia a obra desde o "1900" de Bertolucci e, depois, comprei mesmo uma reprodução dela (infelizmente não legendada) numa papelaria do Porto. Mas o autor e o nome da obra? Encontrei, finalmente!
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Giuseppe Pellizo da Volpede "O Quarto Estado"
na Galeria de Arte Moderna de Milão
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2006-01-14
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O regresso. Não reproduzo a fala de D.Carlos para João Franco, mas por vezes dá mesmo vontade. Encontro o País extraordinariamente motivado pela natureza intrusiva das facturas telefónicas detalhadas. Em tempos que já lá vão, conheci o titular dum cargo elevado numa pessoa colectiva que diariamente reclamava uma entrega, algo sigilosa, das listas de "faxes" enviados e recebidos. Não era que tal exame lhe competisse mas... conhecimento (até do que os colegas enviavam ou recebiam!) é certamente também força. Parece que, entretanto, se deixou disso - ou disso o fizeram deixar-se! O "tal espírito" perdura por aqui!... Apre!
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Não deixa de ser curioso que, entretanto, o tal País extraordinariamente motivado, não tenha ainda reagido às afirmações ontem feitas por um Ministro de que, a X anos, poderá não haver forma de pagar as pensões !
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Quanto ao que fui fazer, alvo atingido. Tenho muito e muito para contar. Daria uma espécie de "Soldados de Salamina" noutro campo e, certamente, num estilo incomparávelmente menor que o de Javier Cercas. Aprendi também algumas coisas. Aprende-se sempre.
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Pelo menos aqui, no meio das deserções sucessivas e do desmantelar de uma experiência, que recorda a viagem dos barcos para o estaleiro-matadouro de Alhos Vedros (cheguei a ver dois, irmãos gémeos, vindos propositadamente dos Grandes Lagos para ali passarem a sucata) , procurei redefinir coordenadas para me orientar no labirinto que tinha deixado e encontrei o "Bourbon". A ele fielmente regresso. Enquanto existe e/ou enquanto existo.