segunda-feira, 1 de junho de 2015

Um alçapão na Justiça

Quando abordei o meu Patrono, o saudoso Dr. António Mário Carqueijeiro, distinto Advogado que demasiadamente cedo nos deixou, quanto ao trabalho de fim de estágio a apresentar à Ordem, apontou-me ele a situação peculiar do cidadão perante a prisão preventiva como medida de coação mais gravosa em Processo Penal. Sendo considerada necessária e  estando fundamentada em requisitos legalmente estabelecidos, poderia mostrar fragilidades que considerava dever serem estudadas quanto à interface investigação/acusação, à sindicabilidade da apreciação feita, à extensão temporal permitida e à celeridade factual da Justiça. Por dificuldade em acomodar esse interessante trabalho com os meus afazeres profissionais  - já que aquele necessariamente requereria o exame crítico do instituto em termos de Direito Comparado - coligi alguns elementos sobre o tema, avaliei o seu peso e acabei por não tomar esse comboio,   adoptando antes  por um estudo sobre as faltas do advogado a actos judiciais já agendados, situação  então também controversa e debatida [1].  Estava eu bem longe de pensar quão evidente se tornaria a prevenção do meu malogrado Patrono e como iria hoje lamentar não ter antes seguido por aí e aprofundado o tema.. É que, sem pôr em causa factos concretos a que se assiste e cuja concretização se aguarda com a celeridade que  à sociedade deve merecer qualquer privação provisória da liberdade, um outro factor se veio entretanto clamorosamente acrescentar aos então enunciados: a maior mediatização pela repercussão publicitária dos factos, a teatralização de cenários,  a exploração quando não fuga de informação, o exercício do direito de investigação própria que uma Comunicação Social livre reclama e que, uns e outros, podem conduzir a evidentes refracções de uma visão de Justiça e dos direitos do preventivamente detido, que continua a ser um arguido e não um condenado e que beneficia portanto, até eventual condenação,  da presunção de inocência própria de qualquer Estado de Direito..Surprendo-me mesmo com a leitura de documentos subsidiários, mas decisórios em recurso sobre matéria processual, em que, sobre assinaturas responsáveis, leio a invocação de situações de facto que deveriam ficar por fora do perímetro de avaliação que apreço requer e não  prosseguir e contaminar o texto decisório por juízos de valor que quase assumem a forma de pre-julgado e vulnerabilizam o que pensava ter aprendido na Faculdade de Direito e nos conselhos de quem tanto me honrou com o seu Patrocínio e Amizade.

Que o cidadão comum possa entender como todo este "affaire"[2] lhe vem demonstrar: uma vulnerabilidade de um sistema que, tendo outras, pode também atingi-lo tal como a este, àquele, a qualquer um - que tal era, pois, a preocupação manifesta do meu Patrono. Incidindo pois sobre uma das suas manifestações mais gravosas, esta reflexão decorre do carácter geral e abstracto que assume  e que como tal deve ser entendido e prevenido pela adequada avaliação dos critérios e pela celeridade requerida em acusar quem detido preventivamente esteja. Permito-me assim parafrasear - alargando-o - o sábio comentário produzido por Luís Osório na Editorial do "i" de 22 de Maio p.p..: "a maior de todas as fragilidades [de um arguido preventivamente detido] é quando qualquer outro cenário que não a sua culpa seja mais grave para o regime que a sua inocência". É nessa ténue mas ponderosa linha de fronteira que eu gostaria hoje de ter desenvolvido o trabalho que desde então me arrependo - e hoje mais que nunca - de não ter prosseguido.

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[1] Esse estudo, certamente menos pesado em termos de investigação e trabalho associado (e portanto mais breve e compatível com o meu exercício laboral), mereceu ser publicado no Boletim da Ordem dos  Advogados.
[2] Termo que propositadamente uso como discreta homenagem a Émile Zola.