domingo, 31 de dezembro de 2006

S.Dimas, no dia de ontem

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Duas histórias rápidas sobre ladrões.
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A primeira é de Sócrates (o original) e muito conhecida dos estudantes de Filosofia do Direito. Estava o dito sentado à sua porta, como costumava, quando, na calçada, cresceu a agitação. Uns homens, armados, perseguiam outro. Sócrates perguntou a um dos primeiros ao que corria. E este respondeu-lhe (em grego, claro): "Procuramos apanhar um ladrão!". Ao que Sócrates retorquiu (e parece ter ficado sem resposta): "O que é um ladrão?".
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A segunda é a rápida história de S.Dimas (ou Dismas, ou Dumas, "o Bom Ladrão", festejado a 25 de Março). Só sabemos que foi crucificado com Cristo, o que atesta que tinha culpas a expiar e que não seriam "delitos de opinião" como os do incómodo sentenciado que estava ao meio. Tal pena capital não impediu três factos importantes: primeiro, o de ser o (também) primeiro santo canonizado da Igreja Católica; segundo: o de ser considerado "confessor"; terceiro: o de ter o seu culto, celebração e reconhecimento, ao ponto de uma cidade californiana ter recebido o seu nome.
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Vem isto a propósito de algo que ontem sucedeu. Uma justiça humana eliminou o que considerou ser um criminoso. E certamente que o foi, não tenhamos dúvidas [1][2]. Mas a justiça (com j pequeno) que o julgou e condenou sujou-se claramente na forma como o fez. Executando-o, não criou um confessor, como S.Dimas, mas criou um mártir. Apoio no caso a posição da Comunidade Europeia, sempre tão titubeante mas já tão olhada de soslaio pelos autoproclamados herois de histórias de quadrinhos do lado de lá do Atlântico [3]. E para os que inspiraram e apoiaram (pela mentira e o atropelamento do direito internacional) a criação da imagem que certamente não desejavam e que novamente se meteram na camisa de onze varas que todos os dias acarreta mortes e desgraças acrescidas que vitimam inocentes "urbi et orbi", não posso deixar de recordar uma frase antiga que (por ironia) creio ter apanhado há anos num "western" qualquer: "there is a moment to kill; there is a long time to regret".

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[1] Embora alguns, e nomeadamente os que o levaram ao que foi, então e agora, o apaparicassem como amigalhaço. Coisas que o petróleo não limpa, claro.
[2] A propósito do comentário anterior um leitor de blogs (também os há!) lembrou-se de me perguntar se eu sabia onde estão hoje os outrora devotados corpos sociais da Associação de Amizade Portugal-Iraque. É que houve essa associação de amizade... e houve esses corpos sociais. Eu não sei, mas ele diz que sabe! Sabedorias...
[3]Quando escrevi isto não sabia que os américas, com destino às suas tropas, tinham criado uma nova revista de "comics", distribuição gratuita, com as aventuras dos "the New Avengers", liderados pelo "Capitão América", acompanhado de um "Vingador, do "Motoqueiro Fantasma" e do "Surfer de Prata", combatendo todos um "eixo do mal" muito parecido com outra entidade bastante conhecida! Quando abri o JN de hoje e vi esta notícia, pensei logo ir jogar no Euromilhões! Grande pontaria!
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sábado, 30 de dezembro de 2006

História curta 1: A Laranjada

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Ainda não havia "shots", ou, pelo menos, coisas com esse nome. O velho andara a bebericar bagacinhos sucessivos até ficar alegre e, quanto mais alegre ficava, mais se lhe entaramelava a língua e mais ia tropeçando nos seus próprios passos. Atrás do balcão, o Manel obserbancava, algo ansioso, o desenrolar da fita. Vai daí o velho, arrima-se à fórmica e pede um copo de três...e o Manel, cauteloso, trata de sugerir o que de mais inócuo lhe parecia ter:
- Tome uma laranjada, ti Francisco. Tome uma laranjada![1]
Ao que o velho, desembaralhando-se de pronto, logo respondeu
- Laranjada, comigo, nunca! Venha antes a maldita água... que essa ao menos eu sei bem o que é!

jm

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[1] em polaco: "woda sodowa mandarinata" (esta tradução visa apenas acrescer algum conteúdo internacionalista - ondé kisso anda? - à "short story")
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E já que falamos de cinema... um texto de Urda Klueger

Com a devida vénia...

MARA SALLA, MARA – A MAGA

Pela vida afora muitas bruxas encontrei, de diversos tipos, calibres, feitios e intenções, desde a Bruxa Malvada das histórias infantis até as malvadas mais verdadeiras, como Margareth Tatcher, por exemplo, a lamentar a morte de um Assassino da Humanidade como Pinochet – isto sem contar que sou do Estado de Santa Catarina, Brasil, e a capital do meu Estado é uma Ilha onde aportaram, ao longo dos séculos, récuas de bruxas de todos os tipos, desde aquelas que para cá vieram para se salvarem das ignorâncias maldosas da Inquisição, até bandos recentes de bruxas da maior simpatia, daquelas que só fazem o Bem, como Elaine Tavares e a Baiana Denise Queiroz, maravilhosas e queridas bruxas que moram no meu coração! Tem umas outras bruxas por aí que não gostam muito do Bem, também, mas é melhor nem falar nelas...

Fadas conheci muitas, também. Foram tantas na minha vida que fica difícil lembrar de todas, mas vou tentar colocar aqui uma pequena amostragem, que vai desde a minha professora de quarto ano, Irmã Maria Adalgisa, com suas bondosas asas de Anja1, e a minha prima Sofia, com suas inigualáveis mesas de aniversário cheias de tortas incomparáveis, e a minha prima Synova, admirável Ser Humano de muita cultura e muito sofrimento por quase toda a vida, e a minha orientadora Elizabete Tamanini, Fada-Madrinha sem tirar nem pôr, e por aí vai...

Mas aqui quero falar é das Magas, e ser Maga é uma coisa extremamente difícil, tanto que não tenho viva lembrança de nenhuma outra na minha vida que se comparasse com ela, a Maga Mara Salla! Pelas minhas contas, já faz perto de quatro anos que a gente se conhece, mas foi só ontem à noite que aquilatei, mesmo, as infinitas possibilidades e a profundidade da alma e da sensibilidade de alguém que chega a Maga.

Mara Salla veio de um lugar do Rio Grande do Sul chamado Arvorezinha, e não se entende por quê, por conta de um destes acasos do Destino, acabou ela encantando-se por um texto meu e querendo usá-lo para fazer um filme. Foi um parto longo mas não doloroso, pois estava tudo muito cheio de intenso prazer: desde o primeiro dia em que ela veio à minha casa, para conhecer-me, trazendo-me de presente músicas de Mercedes Soza, até os infinitos mistérios das filmagens na pequenina cidade de São Pedro de Alcântara, faz ano e meio, e até à estréia do filme, ontem, lá em cinema de Florianópolis.

Houve o conhecimento, o tempo, o parto, o saber da capacidade de direção de filme que Mara tinha ... mas foi só ontem, só ontem à noite que eu soube mesmo que ela era uma Maga. Eu ainda não tinha visto o filme (que se chama “Por causa do Papai Noel”), e tudo seria novidade para mim, e para tanto me preparara, Não sabia, no entanto, que Magas existem de verdade e podem viver bem perto da gente!

É necessário ir um pouquinho para traz no tempo, voltar a estas décadas que tenho vivido como escritora, e à convivência que tais décadas me levaram a ter com outros escritores, para poder explicar a minha emoção. Eu já falei tal coisa em muitas palestras e entrevistas, e também já falei a respeito dela com muitos outros escritores, desde meu amigo pessoal Viegas Fernandes da Costa até o Monstro Sagrado Jorge Amado, para saber que é uma coisa comum a muitos escritores: o escritor “vê” coisas que os outros não vêm, “vê” cenas que ainda não se criaram na sua escrita, “vê” personagens que ainda não conhece – e essa gente e cenas todas tomam conta da sua vida, e entram pela sua casa, e passam a fazer parte da sua realidade – mas nunca tinha visto alguém que não é escritor entender isto. Então chega Mara Salla com o filme que fizera a partir de um texto meu, e ela, a Maga, ela sabia! E lá no filme uma menina que um dia eu fui fica espiando, encantada, os personagens que mais tarde passaria para o papel ... e só Magas muito mágicas para entenderem tal coisa.

Mara Salla, minha Maga, como te agradecer? Nem dava, tanto chorei abraçada à minha prima Mayde, quando entendi quanto entendias!

Blumenau, 19 de Dezembro de 2006.

Urda Alice Klueger

Escritora.


sexta-feira, 29 de dezembro de 2006

Tudo por escrito, ou a "Aldeia do Cinema"

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Já aqui disse qualquer coisa sobre "A Cidade do Cinema". Pelo caminho que a coisa vai levando, estamos certamente no carril do continuarmos como "Aldeia do Cinema", e mesmo assim - como então se temia - pagando o bilhete como espectadores, enquanto sobrevivam no concelho salas de projecção. Veja-se o JB de hoje, dia 29, na sua página 5, relatando os sucessos da última Assembleia Municipal! Para mim, a graça maior está numa fabulosa descoberta: afirmou o Senhor Presidente da Câmara, indo mais longe, "que os assuntos sobre a matéria "Cidade do Cinema" , devem "começar a ser tratados por escrito", porque "o projecto deixou de ser uma questão de estratégia para passar a arma de arremesso político", acusou." Tratados por escrito, disse o Senhor Presidente da Câmara, de acordo com o JB! Dentro dos órgãos municipais e fazendo tramitação entre estes, claro! Ofício para cá, requerimento para lá, comissão responsabilizada e responsabilizável não, o inimigo às portas a gozar de poleiro. E como até se não reconhece o inimigo, este - de forma tranquilizadora - deixa de existir. Século XXI, era da digitalização, da desmaterialização, da desburocratização. Onde?
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Clochemerle revisitado? [1] [2]
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Três notas a propósito (ou nem tanto):

[1] Mas se "Clochemerle" foi um sarcástico êxito literário de Gabriel Chevallier [e embora tenha nos entretantos inspirado alguns filmes e mais recentemente uma série de TV] a fotografia original remonta a ... 1934! Zinoviev, Kamenev e (por maioria de razão) até Trotski eram, entre muitos outros, ainda vivos!
[2] Esta ideia de formalização extensa (ou intensa)
veio relembrar-me um caso paradigmático de como "o pedir mais pode levar a fazer menos": sabendo como é difícil (mas possível) o controle de processos de investigação e como são hostis as recepções a essas vias de controle, em 1975, animado pelo esforço de modernização do País pós-revolução e inspirado por aquele nado-sabotado-morto-esforço que se chamou de "Plano Melo Antunes" (quem vai estudar isso, algures no tempo?) [3], elaborei uma ficha de seguimento periódico e sistemático que agrupava conhecimentos alheios, aliás provados, com experiência própria e propus a sua introdução no local onde trabalhava. Ainda devo ter algures essa ficha, hoje já redondamente ultrapassada mas a procurar e oferecer a quem um dia queira saber algo mais sobre o assunto... Nela se incluía um campo polémico, mas absolutamente essencial: a avaliação crítica do êxito, num sentido previsional e mesmo quantificado. Pois bem: todos acharam a ficha excelente, importante mesmo, uma verdadeira paridoria de grande oportunidade mas... ao contrário do que eu esperava, convencido que iam dizer que pedia demais, entenderam que a ficha pecava por lhe faltar (ainda) qualquer coisa! E essa qualquer coisa nada mais era que uma especialização por fases, definidas estas no projecto não pelo seu progresso mas por uma gemiparidade de fichas, de novas fichas, até três que, vejam lá, se distinguiam essencialmente pela cor do papel. O esforço triplicava-se inutilmente... mas ficava em "tecnicolor". Escusado será dizer que o excelente processo morreu mesmo ali! Uma das razões: faltava o papel colorido (!) e tudo se passava como nas eleições pré-25, quando a União Nacional conseguia que faltasse sempre o papel igual para a produção dos boletins de voto da Oposição. Foi um vira-o-disco-e-toca-o-mesmo! O controle morreu no dia em que foi "melhorado" ao torná-lo mais sofisticado por uma triplicação em arco-iris! E na melhor das intenções, claro...
[3]A "nota à nota" pode ser tão querida como uma segunda derivada: o "Plano Melo Antunes" foi aprovado em Conselho de Ministros em Fevereiro de 1975 e chegou a ser mesmo editado pela Imprensa Nacional. Como tinha alguns pés para andar, não serviu para nada.
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A menina do gás

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De todas as mensagens de BF's que recebi pela "net" esta tem, certamente, um prémio...
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... e, sem dúvida, tanto mérito como "a outra"!

quinta-feira, 28 de dezembro de 2006

Mais um requentado (o 3º): Os arquivos domésticos de papelada e o modelo "vala comum"

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Até que os suportes informáticos se tornem fiáveis e generalizados, todos somos, mais ou menos, "acumuladores de papel". E a acumulação de papel tem muitos inconvenientes: quase geralmente juntamos muito mais daquilo que seria necessário, quase geralmente temos horror ao arquivo, quase geralmente nos esquecemos de que um documento não acessível é, para todos os efeitos, um documento perdido, quase geralmente não medimos o contributo vegetal vivo que foi necessário abater e transformar para que tenhamos cada superfície A4.
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Um dos problemas que se associam a esses inconvenientes é a ânsia perfeccionista. Procuramos estabelecer estruturas de ficheiro muito perfeitas e organizadas... e tão perfeitas elas são que, para a vida corrente, resultam morosas e acabam abandonadas. Entender-se-ão bem para a organização de um trabalho, de uma área documental, de um domínio sujeito a essas exigências de rigor... mas já se não entenderão bem para a acumulação diária de informação diária, daquela que nos invade as gavetas e que faz arrancar os cabelos quando é MESMO PRECISO reencontrar um determinado papel... e aparecem todos, incluindo inúteis e improváveis, menos aquele que buscamos e que permanece refractário na nossa memória.
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Para essas utilizações "caseiras" encontrei, há muitos anos, a sugestão de um processo que era designado, algo tenebrosamente, de "vala comum". O aperfeiçoamento deste processo com meios de busca informáticos simplifica muito a vida e por isso transcrevo as suas regras, que até são simples:
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1. Em cada documento recebido e que mereça arquivo coloque-se imediatamente no canto superior direito um número de ordem sequencial. Se não merecer arquivo... rasgue-se, pura e simplesmente, e liberte-se dos "cacos".
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2. Faça com que cada documento tenha uma data, seja a data original, seja a data em que foi recebido, seja em ultima instância a data em que foi numerado e entrou no arquivo.
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3.Arquive sequencialmente os documentos seleccionados e UNICAMENTE pelo referido número. Não caia na tentação de estabelecer separadores por temas ou de arquivar os documentos pela ordem das datas destes. O sistema de palavras-chaves vai permitir a procura!
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4.Numa simples tabela Word denominada MEUS DOCUMENTOS EM PAPEL 2007 com 4 colunas e linhas sucessivamente acrescentáveis para que cada uma represente um documento e um só coloque na primeira coluna o número do documento e DEFINA O DOCUMENTO QUE ARQUIVOU COM NÃO MAIS QUE TRÊS PALAVRAS-CHAVES (PALAVRAS MESMO OU SIGLAS, MAS NÃO FRASES) que coloca nas outras três colunas. Por exemplo: para um recibo de água da Câmara Municipal do Barreiro escreva AGUA RECIBO CMB mas quanto a um protesto sobre o tarifário aplicado pela mesma Câmara escreva AGUA CMB PROTESTO.
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Algumas observações de ordem prática:
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a) Há quem use o sistema a 5 colunas, reservando uma, mais larga, para colocar o designativo do documento. Com isto a simplicidade do sistema complica-se... mas pense-se bem se será mesmo útil essa menção ou se, quando muito, se poderá limitar à data do documento (mas não impondo uma ordem cronológica, como acima se disse)!.
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b) Aconselha-se a usar métodos homogéneos de classificação. Para evitar a proliferação de palavras-chaves é útil fazer (e ter actualizada) uma lista delas... Evitar sinónimos que proliferem as entradas para dizer o mesmo ou o equivalente como p.ex. BARREIRENSE DIRECCAO ELEICOES e BARREIRENSE DIRECCAO VOTACAO.
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c) É útil também utilizar a mesma grafia (Maiúsculas ou Minúsculas) e evitar caracteres especiais (acentuados, cedilha, etc) - mas, sobretudo, manter sempre critérios coerentes.
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d) A escolha e preenchimento de 3 palavras-chaves não é essencial, se os documentos de um mesmo assunto puderem ficar definidos por uma só ou duas (p.ex. se BOBBY assim sempre grafado, e não BOBY umas vezes e BOBBY outras, permitir suficientemente seleccionar tudo o que se referir ao cão). Convirá é evitar a proliferação i.e. mais de três palavras para cada documento (o que requer um esforço e uma auto-disciplina rigorosos nesse sentido).
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e) Se vários documentos pouco espaçados no tempo constituem um PROCESSO i.e. um conjunto de elementos sequenciais e ligados em exclusivo a um mesmo grupo de palavras-chaves, pode admitir-se uma derrogação excepcional à regra "1 documento = "1 entrada" arquivando todos juntos e com a numeração do (temporalmente) último desses documentos. Neste caso uma das palavras chaves será PROCESSO, ficando as outras duas para o designativo. Exemplo: CASA COMPRA PROCESSO. Neste caso é conveniente no documento numerado escrever o número de documentos individuais apensos (i.e. agrafados, juntos em bolsa, mas juntos...) ou dispor de uma lista auxiliar, mesmo rabiscada a lápis, que os indique.
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f) Se se tiver que retirar um documento ou movimentá-lo dentro do dossier (p.ex. para o apensar a outro) então deixe-se em seu lugar uma folha indicando quando foi retirado, quem o retirou e onde foi posto. Nada mais frustante que localizar um ´"documento nº X" e chegar lá... e, sem qualquer explicação, encontrar apenas o lugar vazio!
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g) Como já se disse, esqueça-se qualquer classificação temática com separadores: as palavras-chaves devem fazer esse serviço; não se caia também na tentação cronológica.
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h) Não sofistique em demasia: um dos processos de não fazer nada é querer impor o fazer-se tudo e, por vezes, essa manobra é mesmo intencional. [1]
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5. Para se saber o que o arquivo contém sobre um determinado assunto, procede-se a uma busca pela palavra chave identificadora (usando o "Localizar" do "Editar") e logo "saltam" os números dos documentos que podem dar resposta à procura que está a ser feita.
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6. Os "cruzamentos" de duas (ou três) palavras-chaves dão uma limitação muito razoável do campo, facilitando o acesso aos documentos que simultaneamente as contém.
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Vamos agora às realidades: se me perguntarem se faço isto, eu direi, como Frei Tomás, que faço mas nem sempre. Logo aí adiante, com 2007 a chegar, vou iniciar um novo arquivo por este mesmo processo... mas não sei se vou ser capaz de manter a disciplina necessária para cobrir assim o ano todo. A realidade é que, sempre que consigo isto com mediano rigor, torna-se mais feliz e mais fácil o meu acesso aos documentos arquivados. Recordo a história já com barbas do praticante desportivo que dizia ao amigo: "É engraçado! Quando treino, noto que tenho mais sorte...".
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O importante aqui, o verdadeiro "segredo da abelha" para evitar desistências no caminho, é não deixar acumular papel: coloque-se em cada documento um número, definam-se as palavras-chaves, arquive-se logo por ordem e entre-se com número e palavras-chaves escolhidas na tabela informática que deve ser rigorosamente salva e até transcrita para a "pen" para se não perder e estar sempre acessível. 10 minutos por dia normalmente bastam. Se for necessário um exame mais profundo, visite-se o arquivo depois. Mas papeis a entrar para gavetas ou caixas à espera do próximo fim de semana salvador são mesmo um convite de sereia para uma pausa que inevitavelmente conduz a um abandono definitivo do sistema - sendo certo que o que foi feito não se perde, mas que a história fica interrompida.
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Com tão louváveis intenções chegamos ao ponto em que seria oportuno referir os nomes que a formiguinha chamou ao LaFontaine quando soube que a cigarra acabara por ser contratada na "rentrée" para cantar numa "revista" em Paris, com apresentação num dos casinos de Monte-Carlo ou periferias durante os meses do Verão... mas não vamos cair em palavras-chaves tão fortes quanto isso!
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[1] Registo aqui o "caso paradigmático dos papeis coloridos" que me proponho abordar proximamente [de facto colocado como nota à postagem da "Aldeia do Cinema", a 29 de Dezembro]

quarta-feira, 27 de dezembro de 2006

Tudo por amor (ou rai´s os parta!)


Parece que o Augusto deixou uma "Mensagem aos meus [dele] compatriotas", de acordo com o JN do dia de Natal (25/12). Dessa carta póstuma, "dirigida aos chilenos sem excepção", retira-se uma expressão "amorosa" a que o nosso diário de raiz nortenha deu o devido relevo: "Amo a Pátria e a todos vocês. Por amor podem-se fazer muitas coisas boas e muitas más". Tocante!
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Tocante mas não original. Todos os da mesma retorcida cepa quiseram deixar na história (com "h") o seu grito de amor, quiçá para eles tão incompreendido (e ainda bem). George Orwell[1] no seu "1984", que todos deveriam ler e reflectir, não só traduziu o exercício asfixiante dum regime de partido único e dominador, marcado pela figura omnipresente e omnivigilante do Grande Irmão e assente na significativo tri-lema já várias vezes aqui referido de "Guerra é paz. Liberdade é escravidão. Ignorância é força", como também soube caracterizar com ironia amarga os 4 ministérios em que assentava o poder: O Ministério da Paz (que mantinha acesa a guerra para perpetuar a dominação), o Ministério da Verdade (em que se forjavam as mentiras servidas ao povo), o Ministério da Abundância (em que se doseava a fome como arma política) e, finalmente, o Ministério do Amor.
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Este último, "Miniamo" em Novilíngua[2], é o designado responsável pela espionagem e o controle intrusivo e insistente da população. É-lhe atribuída a importante função de "tratar" qualquer veleidade de resistência ao Partido, detendo, julgando, torturando, destruindo. Mais que eliminar, o seu objectivo é, sem olhar a meios, converter pela pior forma aqueles que possam constituir um foco de oposição. Esse é o sentido de "amor" posto na sua denominação!
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Ora o "1984" é um texto pessimista, amargo, que - tanto como o "Admirável Mundo Novo" de Huxley, o "Fahrenheit 451" de Bradbury, o "Nós" de Zamiatine [3] - pinta um futuro negro numa sociedade distópica. Mas não se poderá considerar a distopia como um modelo ficcionado, criado apenas pela imaginação dos homens, limitada a uma modalidade possível de SF, já que a História (esta com H) recorda como sociedades distópicas nasceram, viveram e acabaram vencidas, do campo político ao campo religioso (ou de ambos, de mãos dadas), ou seja, em toda e qualquer modalidade que se refine num exercício hegemónico e extremado de poder. O que se passou no Chile, no mundo distópico de Augusto e pela mão dele e dos seus capangas, armados e desarmados, foi mais um drama real, efectivo, do nosso tempo, uma renovada distopia ao alcance do braço e da expressão do totalitarismo político. São e serão sempre de temer estas formas de autoproclamado e extremado "amor", soprem em ventos de quaisquer quadrantes. E até que finalmente sejam superadas, porque fatalmente o serão, inevitavelmente redundam em manifesto prejuízo para os valores que a Razão reclama.[4]
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[1] Eric Arthur Blair, que combateu do lado republicano na GCE, usou o pseudónimo de George Orwell para apresentar as suas obras literárias. "1984" foi apresentada em 8 de Junho de 1948 e traduz uma visão pessimista do pós WW2 e da divisão do Mundo em blocos antagónicos, que já então se afirmava de forma clara. A visão catastrofista das sociedades distópicas, fundamentada na experiência histórica recente e traduzindo não uma oposição à utopia mas uma apropriação maligna desta, é apresentada na literatura pelas obras referidas e ainda, para reproduzir a lista da Wikipedia, por "Laranja Mecânica" de Anthony Burgess e "Neuromancer" de William Gibson (o primeiro duma trilogia). No modelo-fábula justa-se-lhe "O Triunfo dos Porcos", de Orwell. No cinema, para além das versões das obras referidas (que não parece terem considerado o "Nós" e o "Neuromancer"), acrescente-se, como filmes situados em cenários distópicos, o clásssico "Metropolis" e ainda "Brazil", Equilibrium", "Gattaca", "Matrix", "Minority Report", "Robocop", "O Show de Truman"," Sin City" e "V de Vingança". Ainda sobre "distopia" veja-se pt.wikipedia.org/wiki/Distopia e o texto de J. M. de Sousa Nunes em
http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/D/distopia.htm
[2] A sociedade distópica descrita por Orwell igualmente primava por um artificioso controlo através da linguagem, tendo criado uma língua nova, sintética, apelidada Novilíngua (newspeak) cuja característica era a remoção de palavras dentro do princípio de "o que se não diz, não existe".
[3] Existem edições em Português destes três livros. O "1984" existe na net em Inglês, numa versão susceptível de pesquisa e, portanto, prestada a um estudo detalhado.
[4] Um outro objectivo de tais suspeitosas afirmações de "amor" é a tentativa de manipulação da História, através de um processo de justificação e de "lavagem". Certeiramente Hugo Gonçalves, num artigo datado de Madrid e publicado no DN de 16 de Dezembro (sobre as reparações às vítimas da GCE), recordava o princípio orwelliano de que "
Quem controla o passado controla o futuro, e quem controla o presente controla o passado". No caso Pinochet, em que "a Morte ganhou à Justiça" (no dizer do poeta Luís Garcia Montero citado no mesmo artigo), a publicação pressurosa da carta procura também essa detergência.

terça-feira, 26 de dezembro de 2006

A festa de Babette

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Esta ceia de Natal, com TODOS (ainda) reunidos, foi como que a minha "Festa de Babette" [1]. Dobrou-se um cabo, agora virá uma Índia de consequências.
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[1] Referência ao filme "La Fête de Babette", França , 1987 - Direção: Gabriel Axel Elenco: Stephane Audran, Jean-Philippe Lafont,Gudmar Wivesson, Bibi Andersson, Brigitte Fedrspiel. Baseado num conto de Isak Dinesen, pseudónimo de Karen Blixen (Baronesa Karen von Blixen Finecke). Premiado com o Oscar 87 de Melhor Filme Estrangeiro. A não perder...um saudável contraponto gastronómico ao magnificamente perverso "La Grande Bouffe" (escândalo e prémio em Cannes 1973 e também a não perder, tendo passado entre nós com o título "A Grande Farra"!)

segunda-feira, 25 de dezembro de 2006

Crónica de Natal (entre dois extremos...)

Agora até a cor do fato serve, entre nós, o "marketing" clubista...

Segue-se um texto do filósofo e teólogo brasileiro, Leonardo Boff, com a devida vénia e mantendo a grafia original:
"Papai Noel [=Pai Natal] ou Menino Jesus?

Devido à minha barba longa e aos cabelos brancos, muitas crianças me vêem e me chamam de Papai Noel. Eu lhes explico, sem convencê-las, que sou apenas o irmão do Papai Noel.
E que minha função é olhar pelas crianças, observar se elas estudam direitinho, se tratam bem os coleguinhas e se escutam os bons conselhos de seus pais. Digo-lhes que depois conto tudo ao Papai Noel que, então no Natal, vai lhes trazer belos presentes. Num dia desses, uma me seguiu curiosa. Quando me viu entrar no carro correu para o pai e lhe disse:"Pai, o Papai Noel não veio de trenó; ele veio de carro".


Esse é um tipo de Natal com seu respectivo imaginário. Papai Noel é uma figura do mercado. Ele é o bom velhinho que trata deseduzir as crianças para que seus pais lhes comprem presentes. A memória de que ele representa São Nicolau que também trazia presentes despareceu para dar lugar à figura infantilizada do bom velhinho que tira do saco surpresas que antes foram compradas e postas lá dentro.

Como em todas as casas há televisão – pode faltar o pão mas nunca a televisão – as crianças pobres vêem o Papai Noel e sonham com o mundo encantado que ele mostra, cheio de presentes, carrinhos, bonecas e brinquedos eletrônicos a que elas dificilmente terão acesso. E sofrem com isso apesar de manter o brilho encantado de seus olhinhos infantis. O mercado é o novo deus que exige submetimento de todos. Dai que as crianças pressionam seus pais para que Papai Noel também passe lá por "casa". Então são os pais que sofrem por não poderem atender ao filhos, seduzidos por tantos objetos-fetiche mostrados pelo Papai Noel.

O mercado é uma maiores criações sociais. Mas houve e há muitos tipos de mercado. O nosso, de corte capitalista, é terrivelmente excludente e por isso vitimizador de pessoas e de empresas. Ele é apenas concorrencial e nada solidário. Só conta quem produz e consome. Quem é pobre deve se contentar com migalhas ou apenas viver na marginalidade. No tempo de Natal, o Papai Noel é uma figura central do consumo para quem está dentro do sistema e pode pagar.

Diferente é o Natal do Menino Jesus. Ele nasceu de uma família pobre e honrada. Por ocasião de seu nascimento numa gruta, entre animais, anjos cantaram no céu, pastores ficaram imobilizados de emoção e até sábios vieram de longe para saudá-lo. Quando grande, fêz-se exímio contador de histórias e pregador ambulante com uma mensagem de total inclusão de todos, começando pelos pobres a quem chamou de bem-aventurados. As pessoas que guardam sua memória sagrada, na noite de Natal, ouvem a história de como nasceu, celebram a presença humanitária de Deus que assumiu a forma de uma criança. Festejam a ceia com a família e os amigos. Aqui não há mercado nem excluidos. Mas luz, alegria e confraternização. A troca de presentes simboliza o maior presente que Deus nos deu: Ele mesmo na forma de um infante. Ele nos alimenta a esperança de que podemos viver sem o Papai Noel que nos vende ilusões.

Dom Pedro Casaldáliga diante de um indiosinho recem-nascido escreveu:"Não vi a tal da estrela, mas vi um Deus muito pobre. Maria estava desperta, desperta estava a noite. E estava sobressaltado para sempre o rei Herodes". O rei Herodes não é mais uma pessoa, mas um sistema que continua devorando pessoas no altar do consumo solitário."

Leonardo Boff
Teólogo

Um presépio do Peru (adradecendo a ManteigaDerretida).

domingo, 24 de dezembro de 2006

As ilhas Christmas

Há duas...

Uma no Índico, ligada à Austrália (mas muito mais perto da Indonésia que da Austrália...)


... e outra exactamente a meio do Pacífico, também chamada Kiritimati, fazendo parte da República do Kiribati (e com duas particularidades: é a primeira terra habitada a entrar no Ano Novo já que está "pendurada" na IDL de que já aqui falei... e a base de realização da primeira experiência nuclear inglesa)


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Como será o Natal nas Ilhas Christmas? Turístico, pelo menos!

sábado, 23 de dezembro de 2006

Uma visita a Bécaud...(1927-2001)

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Também aqui as coisas aparentemente distintas, acabam por o não ser...

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La solitude ça n'existe pas

Letra de Pierre Delanoë.
Música e interpretação de Gilbert Bécaud

La solitude ça n'existe pas
La solitude ça n'existe pas
La solitude ça n'existe pas
La solitude ça n'existe pas

Chez moi il n'y a plus que moi
Et pourtant ça ne me fait pas peur
La radio, la télé sont là
Pour me donner le temps et l'heure
J'ai ma chaise au Café du Nord
J'ai mes compagnons de flipper
Et quand il fait trop froid dehors
Je vais chez les petites sœurs des cœurs

La solitude ça n'existe pas
La solitude ça n'existe pas
Peut-être encore pour quelques loups
Quelques malheureux sangliers
Quelques baladins, quelques fous
Quelques poètes démodés
Il y a toujours quelqu'un pour quelqu'un
Il y a toujours une société
Non, ce n'est pas fait pour les chiens
Le Club Méditerranée

La solitude ça n'existe pas
La solitude ça n'existe pas
Tu te trompes, petite fille
Si tu me crois désespéré
Ma nature a horreur du vide
L'univers t'a remplacée
Si je veux, je peux m'en aller
A Hawaii, à Woodstock ou ailleurs
Et y retrouver des milliers
Qui chantent pour avoir moins peur

La solitude ça n'existe pas
La solitude ça n'existe pas
La solitude ça n'existe pas
La solitude ça n'existe pas

- - - « « « «» » » » - - -

L'important c'est la rose

Letra de Louis Amade.
Música e interpretação de Gilbert Bécaud

Toi qui marches dans le vent
Seul dans la trop grande ville
Avec le cafard tranquille du passant
Toi qu'elle a laissé tomber
Pour courir vers d'autres lunes
Pour courir d'autres fortunes
L'important...

L'important c'est la rose
L'important c'est la rose
L'important c'est la rose
Crois-moi

Toi qui cherches quelque argent
Pour te boucler la semaine
Dans la ville tu promènes ton ballant
Cascadeur, soleil couchant
Tu passes devant les banques
Si tu n'es que saltimbanque
L'important...

L'important c'est la rose
L'important c'est la rose
L'important c'est la rose
Crois-moi

Toi, petit, que tes parents
Ont laissé seul sur la terre
Petit oiseau sans lumière, sans printemps
Dans ta veste de drap blanc
Il fait froid comme en Bohème
T'as le cœur comme en carême
Et pourtant...

L'important c'est la rose
L'important c'est la rose
L'important c'est la rose
Crois-moi

Toi pour qui, donnant-donnant
J'ai chanté ces quelques lignes
Comme pour te faire un signe en passant
Dis à ton tour maintenant
Que la vie n'a d'importance
Que par une fleur qui danse
Sur le temps...

L'important c'est la rose
L'important c'est la rose
L'important c'est la rose
Crois-moi.

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O síndrome do cocker preto

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Dizem os detractores dos cockers pretos que estes se tornam agressivos à medida que caminham para mais velhos. Leituras diferentes poderiam dizer "à medida que conhecem melhor os homens", onde há podengos que se armam em galgos, ou "à medida da descoberta da sua própria condição". Justificado ou não, o desenvolvimento de tal agressividade num animal geralmente dócil e optimista poderia ser designado como o "síndrome do cocker preto". Por um episódio marginal a uma terceira seroada sucessiva, inesperada e desesperante [1], concluo começar a entender tais cockers e, sobretudo, tal síndrome. E descubro o ter de me refrear para não cair numa manifesta tentação de morder. [2]

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[1] E não pela(s) noitada(s) em si, que as tenho e muitas no pelame, pois que sempre entendi "qu'il faut faire ce qu'il faut faire" ou "noblesse oblige", como se queira.
[2] Passando de cães para burros (o que é diferente de passar de cavalo para burro, convenhamos!), eu poria a situação num simples enunciado de conteúdo aforismático: "Não me importo de ser burro, importo-me é quando tão mal me queiram albardar!".
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sexta-feira, 22 de dezembro de 2006

Dois poemas das "Crónicas Americanas" de Sam Shepard

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RIVERA, Nu de joelhos com jarros

Até ligam...

Datado de Homestead Valley, Ca. (= California), aos 6 de Novembro de 1981:


desde a relva alta, alta
até à esquina do parque
vejo-te que me estudas

eu vejo-te quando tu não sabes que te estou a olhar
e cada olhar que te roubo
deixa-me um dia mais novo

Ultimamente tem sido difícil apanhar-te
ou então sou eu que estou a ficar velho
um dos dois está com certeza a perder.

Datado de Homestead Valley, Ca., aos 31 de Janeiro de 1980:

Se ainda aqui estivesses
Pegava em ti
Abanava-te pelos joelhos
Soprava-te ar quente nos ouvidos

Tu, que escrevias como uma pantera
Que mal entrou nas tuas veias
Que sangue verde
Te afogou nessa inapelável condenação?

Se ainda aqui estivesses
Arrancava-te o teu medo
Deixava-to dependurado
Em longas serpentinas
Retalhos de pavor

Virava o teu rosto
Para o vento
Encostava as tuas costas contra os meus joelhos
Beijava e trincava a tua nuca
Até que abrisses a tua boca para esta vida.


Sam Shepard em tradução de
José Vieira de Lima para as "Crónicas Americanas" editada
pela Difel, Lisboa, s/data
(mas o título original ,"Motel Chronicles", é de 1982)
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quinta-feira, 21 de dezembro de 2006

Feliz Natal


Ela sentou-se, olhou longamente a sala vazia e disse "Feliz Natal".
Era a deixa, João sabia-o.
A frase tinha sido repetida imensas vezes.
E, por isso, João soube expressivamente prosseguir:
- Natal sei o que é... mas o que poderá significar "Feliz"?

quarta-feira, 20 de dezembro de 2006

Joseph Barbera (24/3/1911-18/12/2006)

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Homenagem a Barbera (e à vida) com um excerto de Vonnegut:
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"Billy estava a trabalhar na sua segunda carta quando a primeira foi publicada. A segunda começava da seguinte maneira:
«A coisa mais importante que eu aprendi em Tralfamadore é que quando uma pessoa morre, apenas parece morrer. Está ainda viva no passado, portanto é muito pateta as pessoas chorarem no funeral. Todos os momentos, passado, presente e futuro, existiram sempre, existirão sempre. Os tralfamadorianos podem contemplar todos esses momentos diferentes, tal como nós olhamos um trecho das Montanhas Rochosas, por exemplo. Podem ver como todos esses momentos são permanentes, e podem olhar para qualquer um que lhes interesse. É só uma ilusão que temos, aqui na Terra, que um momento e segue a outro, como contas num colar, e, que uma vez um momento desaparecido, desapareceu para sempre.
«Quando um tralfamadoriano vê um cadáver, apenas pensa que a pessoa morta está em mau estado, naquele momento especial, mas que a mesma pessoa está óptima em montes de outros momentos. Agora, quando eu próprio ouço dizer que alguém está morto, limito-me a encolher os ombros e a dizer o que os tralfamadorianos dizem das pessoas mortas, e que é "Assim mesmo".»
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Kurt Vonnegut
"O Matadouro Cinco ou A Cruzada das Crianças"
Tradução de Paula Reis
Caminho . Ficção Científica nº119
Lisboa1990, p. 33

terça-feira, 19 de dezembro de 2006

Da irracionalidade e da alienação...

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Vivemos rodeados de mercadorias - e isto de falar em mercadorias tem o seu quê de complicado, nomeadamente quando elas se renovam na necessidade de adquirir sob recente forma, tantas vezes desnecessária, aquilo que essencialmente já se tinha e que poderia perfeitamente perdurar um pouco mais. A criação do consumo pelo consumo leva-nos frequentemente às mais desvairadas atitudes, como, por exemplo, ter livros que nunca se leram, CD's que nunca se ouviram, DVD's ainda fechados, PSP's a lançar-se num novo mercado, etc. etc. Um dia falaremos disso e do papel que essa corrida à coisa supérflua vai todos os dias insinuando no comportamento (e na alienação) dos homens.
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Mas há também os mecanismos da premeditada e abusada irracionalidade. Para dar um exemplo banal e caseiro, que o provem os milhentos tipos de tinteiros que servem os milhentos tipos de impressoras e o mercado que, à volta disso, se vem estabelecendo com preços que atingem o incomportável e dispêndios em stocks que raiam o inconcebível. Ainda hoje, à minha frente, um jovem casal se deliciava com uma destas impressoras, de facto de boa qualidade intrínseca e de aparente preço módico... mas estive quase a soprar-lhes aos ouvidos: não comprem isso sem analisar o que irão largar brevemente pelos respectivos consumíveis. Ou então dizer-lhes: vejam bem os modelos repectivos podem ser sujeitos a uma mais económica reciclagem e se, como tal, podem ser disponiblizados seja através do mercado do enchimento, seja no mercado de equivalentes baratuchos, já que que, com esses "meninos originais", quando precisardes de mudar de tinteiro... mais vos vale comprar uma nova impressora com os tinteiros de origem cheios e incorporados! Tal proliferação de tinteiros e até de tinteiros dentro da mesma marca constitui um verdadeiro escândalo técnico. E é um verdadeiro insulto para as populações e camadas mais pobres do planeta que isso acresça as dificuldades ao acesso informático e que ainda se não tenha conseguido impor um sistema de normalização para tinteiros de impressoras, obrigando estas a cair dentro de um número mínimo de tipos fundamentais e normalizados, implicando que a engenharia daquelas maquinetas passe a tomar essa realidade como um facto e uma exigência e obrigando-a a projectar dentro de parâmetros mais limitados mas desde logo possíveis e sobretudo embaratecedores. Quem, na verdade, lucra com isto? O que está a suceder não tem ponta por onde se lhe pegue. E o "pagode", mais uma vez calado, compra e recompra - sem ver que alguém, tinteiro a tinteiro, lhes está a sacar claramente o dinheiro do bolso!
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A reacção ao normalizado pode ser compreensível, mas o recurso ao normalizado é uma necessidade fundamental numa considerável extensão da prática quotidiana.

Mas para já, sem mais delongas: não comprem impressoras apenas pelo preço inicial das impressoras. Analisem com cuidado a disponibilidade e o custo dos consumíveis! E rejeitem aquelas que, debaixo de aparentes pechinchas, vos vão inevitavelmente encarecer o dia-a-dia.

segunda-feira, 18 de dezembro de 2006

Requentados -2 : WW1 (GG1) - Um cartaz italiano (afinal dois...)

Este "requentado" é também curioso: preparado para ser postado em 26.6.2006 acabou por o não o ser e foi substituído por outro, sem razão aparente a menos de ilustrar o assumido garbo transalpino no "depenar" da águia austríaca. Aqui se traz novamente o escondido, que quase já estava pronto para injustamente seguir para a "galeria dos trastes e camafeus". Ora a verdade é que, muitos anos mais tarde, essa galeria ficou cheia com as "soluções radicais" de Henry Kissinger - o amigo do Pinocas e de um Timor indonês (também os havia por cá...) e o mais que duvidoso inimigo da nossa nascente democracia, com a sua tenebrosa ideia de nos tornarmos uma "vacina" - e que, de valioso, apenas deixará à História os primeiros capítulos, e só esses, de um livro que escreveu ("Diplomacy"). Como diz (e bem) um amigo meu, quanto a "Diplomacy", lido e entendido que seja o livro todo com olhos europeus, prefiro mesmo o jogo!
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É um cartaz do empréstimo de guerra que, curiosamente, deu lugar a uma versão mais reduzida que exemplifica o já referido (e muito usado, a partir daí!) "estilo Kitchener". Veja-se:

domingo, 17 de dezembro de 2006

Os redundantes e a qualidade dos aquecedores...

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Fui comprar um dispositivo de aquecimento moderno, gálpico, aprazível à vista, designado "Hotspot"., 100% nacional, recebido em embalagem hexagonal e fechada - o que exime a entidade vendedora de todas as suspeitas que vêm a seguir. Único óbice: queimar gás butano, emitir CO2, lixar mais o Kioto cá por casa e abalar a nossa consciência (e remorso) ecológico enquanto os EUA bushímanos se estão nas tintas para esses pruridos kióticos e vão alegremente, assobiando para o ar, à procura de qualquer coisa, como na anedota imprópria do "está debaixo do chapéu".
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Tudo ficaria pois menos mal se não tivesse tido que visitar mais duas vezes o vendedor, com o Hotspot às costas (linguagem figurada, claro, pois foi na mala do carro, gastando mais CO2 e lixando ainda mais o Kioto), primeiro porque a porta não fechava e faltavam parafusos ou encostos magnéticos, depois porque a grande botão de comando, com um encaixe segmentado, para evitar que rodasse em falso, era tão pouco segmentado... que rodava mesmo em falso. Por estas e outras e seguindo uma dúvida murphyana ainda não estou rigorosamente convencido de que o aparelho esteja a funcionar bem, já que a chama no mínimo e no máximo se mostra exactamente igual!
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Aliás, de robustez o aparelho só tem a vista, como muitos automóveis que andam para aí, pois examine-se bem a chapa lingrinhas em que é construído e tirem-se as devidas conclusões. Não é por acaso que uma das instruções do folheto anexo expressamente advoga: "Não coloque pesos em cima do aquecedor, tendo sempre em atenção a sua fragilidade". Mas isso talvez nem fosse problema, vistas bem as coisas. Como nos "hotspots", a fragilidade humana não é de rejeitar, desde que aqueça.
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Mas a tripla ida ao vendedor a que fui obrigado quer, para mim, dizer várias coisas: a) a primeira é que, manifestamente, houve uma falha de controlo de qualidade (e o vendedor nada tem com isso pois a maquineta e a sua substituta veram ambas em caixa fechada); b) a segunda é a manifesta economia de materiais, donde a debilidade; c) a terceira é a falta de uma melhor engenharia (que certamente poderia compensar a anterior), como ficou manifesto na labilidade da inserção da haste do botão de comando que talvez exigisse uma corda (no sentido geométrico) metálica para garantr a forma; d) a quarta, bem patente no "que tanga, meu!, nessa já não caio!" de um amigo que assistia à montagem, é pensar que assim se pode um dia exportar sus-ten-ta-vel-men-te qualquer coisa e que no-la aceitem.
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E isto leva-me à questão das reestruturas e redundâncias. Tendo-se constatado de facto que a produtividade per-capita do empregado português não é das melhores (que eu saiba, não se tem acenado tanto com o cálculo per-Euro "et pour cause"), grande parte do empresariado nacional descobriu o elixir da longa vida para muitas das nossas empresas: despedir e procurar flexibilizar as formas de mais despedir. Talvez tenha havido uma fundamentação estatística, até certo ponto. Mas depois, a partir desse certo ponto, a necessidade de reduzir mão-de-obra começou a ser acompanhada por simultânea redução de funções-chaves, mas que foram ditas supérfluas ou como tal (des)consideradas. Algumas haveria, é verdade, que o seriam sem o ser! Mas, depois ainda, veio a constatar-se que "a natureza odeia o vazio", tal como enunciava Otto de Guericke, e, vai daí, que o desbaste teria aqui e ali ido longe demais: a solução passou a ser pois rejuvenescer os efectivos com a flexibilidade generalizada dos contratos a prazo, a utilização de mão de obra impreparada, o recurso ao "outsourcing" e à consultoria, a ascensão dos medíocres na falta de outros, a criação da instabilidade laboral e o compromisso da formação "in house", a aparente cegueira face aos factos de "não fazemos hoje o que dantes fazíamos" e do "direi que dispensei dez mas não direi que agora pago vinte".
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Neste ciclo de (des)progresso há imediatas funções que caem. O controle de qualidade é uma delas, a manutenção é outra, a categoria dos materiais empregues uma terceira, o desenvolvimento... pois também, a memória da empresa é de esquecê-la, etc. etc. Eu compro cadernos franceses cosidos à mão (enquanto puder) porque os nossos, com o mesmo número de folhas, descolam! Há-os mais pequenos, mas são agrafados! E há-os de espiral metálica ou plástica, para fugir às colagens e ajudar os putos a contemplarem o efémero (e desde pequenos a ele se habituarem), rasgadas as folhas se muito manuseadas ou se, por exemplo, o colega-vizinho pedir uma para garatujar algo [1].
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Mas insiste-se na solução, sem verificar que a escassa formação de acesso (que em muitos casos se espera seja fornecida pela hostilizada estrutura pública) não pode suprir as "baixas" criadas nas equipes. E, do outro lado da barricada, induz-se a atitude factualmente conivente de reclamar a partilha do que se não gera em vez de reclamar que se gere para depois possibilitar a partilha, de aceitar a quebra de qualidade ou mesmo de viver com ela em lugar de a reclamar como um dos requisitos-chaves da produção. Nesta espiral metálica ou de plástico, como nos cadernos, ou do jogo do saca-deixa-tira-põe como no esquecido "rapa" dos pinhões, vamos todos vivendo certamente insatisfeitos, surpreendentemente complacentes e aparentemente ignorantes do facto de que para criar riqueza não há alternativa à produção. Se a defesa cega de uma produção acrescida por simples esvaziamento de agentes começa a contrariar a própria produção em seus pilares essenciais, entende-se e retoma-se a questão crucial levantada, anos atás, por Marcuse: "Produtividade para quê?".
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Aliás a realidade cruel das deslocalizações vai dar razão... aos outros. Primeiro, deslocalizam-se as empresas; mais tarde, havendo meio-gás na economia europeia, deslocalizar-se-ão as pessoas... e serão as melhores (e não os ratos) a deixar o barco.
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Não sei se foi algo disto que motivou os dois (ou mais) actos falhados da minha compra, hoje, de um simples aquecedor "hotspot" da Galp-Gás. Admito que tenha sido puro crespo, no sentido de coincidências exacerbadas por pessoal azar [2], mas lá que houve uma falta de controlo de qualidade por detrás do que comigo se passou, lá isso houve!
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Reflexões e refracções:

[1] Tenho, de há muito, a teoria de que o abastardamento da qualidade da preparação escolar não começou apenas com a derrocada da Matemática (só não previsível por quem não a quiz prever) e do Português mas também com o fenómeno físico das "mochilas" em vez das pastas duras, denunciando uma generalizada falta de brio e a aceitação também complacente dos cadernos esbambeados, livros esbocados, capas partidas e outras tantas demonstrações de desleixo que essa forma de transporte pode produzir.
[2] De facto nada acontece sózinho: entre ontem e hoje fui visitado por duas tentativas de "phishing", uma ameaçando anular a minha conta financeira na "Pay-pal" (que não tenho) e outra dizendo que a minha assinatura em grupos da "Orkut" (que também não tenho) enfrentava uma acusação de pedofilia (que igualmente me não assiste, a menos da aparição da Natassja Kinski nas primeiras imagens do "Tess", com 18 aninhos, ver imagem ao lado uns tempinhos depois, e dos nomes que eu então chamei ao Polanski, que já andava por ali desde os 16 dela! ) e ambas as mensagens sugerindo para meu bem o esclarecimento de contas e pedos por clicagem em certos suspeitosos links... ao que, da minha parte, receberam apenas o comentário "é o clicas!" numa tradução bastante mais tripeira, seguido por um simples "forward" de denúncia a quem de direito! Cuidado pois com a "net", que "eles" andam por aí!

sábado, 16 de dezembro de 2006

Atenção à América Latina!: Sobre o México hoje

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Com a devida vénia e autorização para que aqui o publique segue-se um texto de Elaine Tavares, recolhido a 4 de Dezembro corrente. Mas antes, como de costume, apresentarei a Autora, pelo resumo biográfico que lhe corresponde no portal do OLA, "ancorado" este (preferível a dizer "linkado") no fim do texto [1]:

"Jornalista e educadora popular. Mestre em Comunicação Social pela PUC/RS. Trabalha na universidade pública desde 1994, hoje integrando o grupo do OLA. Militante da luta contra a ALCA, do Movimento Contra a Violência e do Movimento Anti-Manicomial. É uma das idealizadoras da Companhia dos Loucos, um movimento político-cultural de libertação da palavra, criado em 2002 por jornalistas e educadores, e também do Movimento Janelas Abertas, que busca questionar a "shopinização" da arquitetura no mundo moderno. Edita, junto com Miriam Santini de Abreu, a revista Pobres & Nojentas."
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"Pela porta de trás

Por Elaine Tavares – jornalista no OLA
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Foi na semana em que caiu a última barricada de Oaxaca. Quando, depois de seis meses de viva resistência, a força bruta desalojou a gente das ruas. O povo, soberano, que decidiu lutar pela dignidade de sua cidade, seu estado, seu país. Foi nesta mesma semana em que os resistentes de Oaxaca entregaram a rádio universitária, depois de cair a última barricada. Derrota? Não! Apenas um recuo tático. Até parece que os governantes do México não conhecem o povo do México. Esse povo aguerrido que nunca se deixou vencer. Que sempre resistiu aos mais duros golpes, às mais violentas ditaduras. Uma gente que fez acontecer a revolução mais incrível do início do século XX, que garantiu uma constituição libertária e socialista.

Os que cavalgaram com Zapata, com Villa, os anônimos guerreiros e guerreiras de uma nova aurora, nunca se foram. Eles aí estão nos levantes zapatistas, nas ruas de Tijuana, em Chihuahua, na cidade do México, em San Salvador de Atenco, em Oaxaca. Eles renascem a cada um que tomba, a cada um que é aprisionado ou desaparecido. Eles revivem em cada conflito, a cada bomba, cada bala e fazem valer sua voz. A derrota é sempre aparente. Porque eles nunca vão embora, nem quando morrem.

Não foi á toa que o presidente, fruto de uma fraude, teve de se esgueirar pelas ruas e entrar no palácio no meio da noite para tomar posse. Não foi sem razão que o mesmo usurpador precisou entrar pela porta dos fundos na cerimônia de posse do Congresso. Momento ridículo, espelho da vilania. Rápido como quem rouba foi o seu discurso, com um Fox vexado, ensaiando um sorriso amarelo. Cena torpe, do tempo das republiquetas, indigna do século XXI.

O povo do México, tão digno, tão forte, não vai deixar barato. Várias vezes já foi usurpado no poder. Felipe, o breve, pode até governar. Mas vai carregar com ele o peso da desonra. Vai vivenciar a cada dia, a obscura noite em que, como um bandido, esgueirou-se na noite, com medo dos seus governados. Já bem explicou Enrique Dussel que um governante não é a sede do poder. O poder reside no povo e mais dia, menos dia, ele vai exercê-lo. Não como dominação, como é comum aos tiranos de plantão, mas como poder obedencial, tal qual insistem os zapatistas. Mandar obedecendo. Vontade popular.
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Hoje o México é um país dividido. Paira um clima de tensão, uma espécie de pré-climax. A era Fox se acaba e um tumultuoso futuro se apresenta. As cenas de violência em Atenco ou Oaxaca foram protagonizadas pelo poder central como um aviso, para que o povo se aquietasse. Para que não se metessem nas coisas que os homens do governo pensam para o país. Para que não se atrevessem mais a dizer a sua palavra. Mal qual!... Pelas estradas do México profundo sopra um vento cúmplice. Um espectro revolucionário cavalga. Zapata. Villa. Antônio. Blanca. José. Juana... Ah, esses fantasmas... E, enquanto Felipe Calderón se encastela no palácio, pelas ruas vão assomando os vivos... E serão dignos de cada mexicano que já deu sua vida pela pátria.
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América Latina Livre - www.ola.cse.ufsc.br"


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[1] O OLA - Observatório Latino-Americano, fundado na Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil, pretende-se como uma teia de relações horizontais, ligadas por um interesse comum: a América Latina livre, soberana e unida. Integrada, não apenas do ponto de vista comercial, mas do ponto de vista humano, cultural, político, econômico, social e artístico. [adaptado do acima referido portal da OLA]
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sexta-feira, 15 de dezembro de 2006

Requentados - 1: antecipando um texto sobre o México actual e uma canção (pouco) infantil!

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O tempo vai pesando e a memória falhando. É meu hábito, discutível mas útil, preparar antecipadamente textos para o blog, que deixo amadurecer no estado larvar de "drafts", que é uma maneira muito actual-portuguêsmente de dizer "minutas" ou mesmo "esboços". E faço-o sobretudo na previsão da acumulação de deveres e de falta de tempo, para os poder ir podando em tempos frescos e os deixar prontos a inserir quando o calor das solicitações (profissionais & outras) mais aperta. Sucede porém que, por vezes os perco e que, por vezes, me esqueço deles. E que, também por vezes, acabo por os duplicar. Ficam assim expostos ao frio do tempo, na cixa dos "drafts" textos que nunca foram usados ou que foram postados de outra forma e, pior ainda para eles, de que me esqueci de tal modo radical que, para mim, deixaram de existir.
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Mas a informática não perdoa e quando ontem, em plena página de composição do blog carreguei na pestana que diz "drafts", logo ela me devolveu quatro textos que não tinham nascido e que estavam para alí, á espera de qualquer coisa que os retirasse do limbo em que permaneciam esquecidos, deixados, abandonados, soltos. Reviverão!
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O que hoje inspira esta postagem denominava-se "Algumas notas sobre domingo, 2 de Julho", certamente de 2006, e é o primeiro produto requentado que penso poder cair neste blog. Odeio requentados, ou antes, admito que, como requentados, só sejam bem-vindos os amores antigos e, desses, os que, por qualquer razão, se deixaram com saudade. Os outros, os requentados correntes e os que não o merecem, odeio-os a tal ponto que procuro, sempre que possível, não repetir na volta o caminho da ida. Este cuidado não caminhar sobre os próprios passos, de raiz tão céltica quanto o ódio aos cruzamentos, já teve consequências extravagantes: uma viagem daqui ao Porto por Madrid e outra pelos Pirinéus, pelo Balneário de Panticosa - que era um dos meus "alvos sonhados" dos passeios pelo mapa da minha juventude. Vou anotar esta recordação, vou pô-la também em "draft" como lembrete, para um dia destes me explicar a mim próprio o que são esses "alvos sonhados". "São" e não "foram", porque sonhos nunca morrem.
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Acidentalmente, esse horror ao caminho de regresso igual em direcção mas contrário em sentido e a vontade de saber se o Philleas Phog teria razão ao pensar chegar a Inglaterra num dia e ser o anterior, também já me fez dar duas voltas ao Mundo, enfrentando o Pacífico e os excelentes bifes da "Norwest Orient", no tempo em que nos aviões se podia comer com faca e garfo. "Coisas da vida", como diria o Vonnegut! Ora, comprovadamente, o Phillreas Phog tinha mesmo razão, ou seja, eu já vivi mais dois dias (não dias completos, mas dias - e um deles na "Big Apple" em agradável companhia de nome Gisela [1]) que outros que nasceram no mesmo dia que eu. E aquela sensação de sair de Haneda às 5 da tarde e estar em Seattle-Tacoma na madrugada desse mesmo dia é uma sensação verdadeiramente pândega [2], verdadeiramente euforizante!
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Mas estou a deambular fora do texto, e tenho ainda outras coisas sérias para dizer-me!
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Vejamos então o que sucedeu a essa postagem deixada em "draft", com o nome de "Algumas notas sobre domingo, 2 de Julho" e que, pela conversa que vai motivando e rendendo, mais recorda o "Monólogo Sobre o Tabaco" de Tchekov...
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A verdade é que se não perdeu e, salvo algumas modificações no texto, pode ser encontrada todinha na postagem... de 3 de Julho deste mesmo corrente ano. Nas suas 3 componentes: a reinstalação na fábrica após mudança de escritório, o comentário azedo sobre as (então próximas) eleições mexicanas e o Trotski cavalgando, feito S.Jorge em ícone. Daí que eu não a vá certamente repetir, sobretudo depois de confessar a minha fobia céltica de recaminhar sobre os meus próprios passos e de tirar daí conversas sobre factos relacionados guardados noutro sótão, onde sopram ventos e não se usa a palavra "draft" para arquivar memórias que, um dia, se não contadas... incontadas se perderão, numa formatação final do disco-duro (e já com "bugs") que trazemos todos na cachimónia.
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Quanto ao México, todos sabemos no que aquilo deu. Mas só sabemos á flor da pele e dos noticiários dos jornais, que nos não dizem a extensão e intensidade dos movimentos sociais que ali decorrem e que já levaram uma minha amiga e correspondente a falar num paralelo com 1848 na Europa e mesmo a Comuna de Paris. Amanhã, prometo, voltarei a isso sem rodriguinhos.
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Entretanto, acompanhando o momento e a sadia preocupação de todo o País [3], vou reencontrar na net (com cumprimentos a
local que recomendo) uma canção infantil que tem a suas cores e graças e que, trauteada na íntegra, me dá para fechar esta postagem!

"A saia da Carolina

A saia da Carolina
Tem um lagarto pintado
Sim Carolina ó - i - ó - ai
Sim Carolina ó - ai meu bem

Tem cuidado ó Carolina
Que o lagarto dá ao rabo
Sim Carolina ó - i - ó - ai
Sim Carolina ó - ai meu bem

A saia da Carolina
Não tem prega, nem botão
Tem cautela, ó Carolina
Não te caia a saia no chão

A saia da Carolina
Tem uma barra encarnada
Tem cuidado ó Carolina,
Não fique a saia rasgada

A saia da Carolina
É da mais fina combraia
Tem cautela ó Carolina
Que o lagarto leva-te a saia

A saia da Carolina
Foi lavada com sabão
Tem cuidado, ó Carolina
Não lhes deixes por a mão

A saia da Carolina
É curta e das modernas
Tem cuidado ó Carolina,
Que ela não te tape as pernas."

E, com esta, me vou de abalada! Bôa-noute aí!
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Notas:
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[1] Leia-se "Guí-se-la", porque é alemã e renana, ainda por cima... recordando muito dos Autores do Renascimento Alemão que andei por aqui a apontar!
[2] Outro dos "mistérios" resolvidos nessas viagens, uma delas dramática (a que não foi "a da Guí-se-la") pois atravessei os EUA em várias etapes, sem visto, com passaporte apreendido e fechado em envelope passado de tripulação a tripulação, uma etiqueta pendurada a dizer TRWV e sempre guardado à vista, a caminho do Canadá, onde poderia (então) entrar sem visto, mas sobrando-me apenas 50 USD no bolso (depois os Canadianos tornaram-se uns chatos e passaram a exigir vistos e a ser mais chatamente britânicos que os ingleses tão perguntadores do Heathrow de então, o que deu origem a algumas cenas cómicas, como em Edmonton, mas isso fica também para contar depois! aliás esta saga seria impensável hoje!) Recordo-me que nessa viagem gastei uma substancial parte dos ditos 50 dólares num taxi para sair do aeroporto de Toronto, guiado por um simpático cabo-verdiano que me depositou numa espelunca próximo das pistas (não digo o nome, mas recordo-o bem), dizendo-se com ar intrigante: "ali também se dorme e não é caro" (cena paralela a uma em Hamburgo, mas de contexto diferente, que também vai para o baú dos incontados potencialmente contáveis) e que na manhã seguinte, mal-dormido (havia muitas portas a bater durante toda a noite mas eu nem tinha vontade, nem maquia, para me preocupar com isso), com 50-4-12 = 34 dólares remanescentes fui a pé para a gare, tomei geladamente um AirCanada matutino e ensonado e só respirei fundo em Montreal, quando me vi dentro do avião da TAP!). Mas, e a "international date line"(IDL)? Falei nela pela primeira vez em Geografia, no LAH, no 3º ano, com o Professor Mesquita, mas conhecido pelo "Homem das Cavernas". E não percebi nada! Isto de haver na Terra um meridiano, situado a meio do Pacífico e em oposição ao de Greenwich, de tal forma que até (por sorte) intercepta uma das menores áreas de terra habitada do Mundo e em que, atravessando-se para oriente se passa das X horas de hoje para as X horas de ontem (o caso do Philleas) e atravessando-se para ocidente se passa das X horas de hoje para as X horas de amanhã (o que tramaria o Philleas se frito a aposta e viajado nesse sentido...), tudo em pleno e imutável Sol entre coqueiros do género "oh bela Yamantanganotinha vai-me ali, ao ontem, buscar um côco e trá-lo cá hoje, se fazes favor" ou "espera um pouco, Samantha-dear, que vou ali ao amanhã buscar a nossa roupa, pois não fica bem hoje entrarmos
ambos nus em pleno Hotel". Mas havia a história do Philleas e do Passepartout e da Ms. Aouda e eu tinha o Jules por gajo sério! E depois havia aquela realidade da hora e dia do ETA (tempo esperado de chegada) a Seattle-Tacoma... Quando pensei que estava próximo da IDL levantei-me e fui até à "kitchenette", pedir um "bourbon-soda" e cavaquear um bocadinho com as hospedeiras. Manifestei-lhes, coração aberto, as minhas ainda pueris mas persistentes dúvidas aobre a IDL e sobre se seria possível voando num avião rapidíssimo rejuvenescer sucessivamente (o que, evidentemente não é possível pois os ganhos num sentido se perderiam depois... a menos que fizesse entrar a letra "c", mail'o Alberto e o Magueijo nesta história toda!). Recordarei sempre a frase da mais velhinha delas, já farta de andar por aquelas bandas: "Olhe, quanto à IDL, o melhor é mesmo não pensar nisso!". Sábia frase, digna até do "Homem das Cavernas" que, decénios atrás, ensinava Geografia no "meu Liceu" e que eu silenciosamente evoquei sobre o Pacífico, ao voltar para o meu lugar com o "Old Nr. 7" no copo!
[3] "Quem canta seu mal espanta..." ou "O défice não existe", "A produção é coisa de capitalistas", "Indústria pequena, comércio grande" (o que até vai contra a frase anterior), e... "Etc. e tal, viva Portugal!"
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quinta-feira, 14 de dezembro de 2006

“Ah! Mariana…”, um conto de Mauro C. B. Camargo



Uma breve nota de abertura, pelo bloguista:

Se para um blog acabamos por transportar bocados de nós mesmos, vividos ou sonhados, a verdade é que há recantos da minha biblioteca que não tenho ousado trazer para aqui, no receio de me tornar supinamente chato com uma desusada insistência no valor (certamente inflaccionado) de alguns dos meus jardins secretos no mundo do papel e das coisas que vêm (ou não vêm) impressas. Assim, não falei aqui (ou creio que não terei demasiadamente falado), da área de SF (Ficção Científica), ou da área de Policiário, ou ainda da área da Literatura e Poesia Erótica, que disso também gosto e muito, já que quanto à Pintura das mesmas bandas mandei de longe pequenos lamirés, oportunamente a desenvolver se tal me der na bolha. Aliás há quem na “net” o tenha feito e bem — mesmo sem colocar no canto superior a tal bolinha vermelha de afasta-pudibundos, como na TV.

Por isso fiquei encantado quando, de Santa Catarina, onde neste momento o calor aperta (em contraponto com os frios invernais que nos chegam e que me recordam que um dos meus outros sonhos, que provavelmente nunca realizarei, é passar um Natal numa praia da Austrália, eu, que odeio praias e para mais praias com tubarões…), a Urda me enviou com nota de MUITO BOM o conto “Ah! Mariana...” de Mauro C. B. Camargo (de nome completo Mauro César Bruginski Camargo), autor paranense que eu desconhecia, e que de facto achei merecer totalmente o referido encómio.

Em contacto com o Autor pedi-lhe duas coisas: que me deixasse publicar o conto neste blog e que me desse uma pequena descrição de si próprio. Amavelmente atendido nestes dois pedidos é pela sucinta (mas já bibliograficamente rica) biografia recebida que vou começar. Usarei aqui, como no conto, as palavras e a grafia do Autor, apreciando na grafia e na expressão a diferença, a riqueza, a dimensão e o colorido que a nossa língua comum permite descobrir. Chamo a atenção, no conto, para o hábil contraponto de tempos e situações e para o grácil (e realista) domínio do diálogo de uma forma que saudavelmente invejo... mormente porque nunca fui capaz de conseguir.
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Segue a descrição do Autor por si próprio:

Com a devida vénia, transcrevo:

“Nasci em Rebouças, uma pequena cidade do Estado do Paraná, em 1962. Cursei a Faculdade de Odontologia na cidade de Ponta Grossa, onde concluí o curso no ano de 1984. Fiz especialização em Endodontia em Florianópolis no ano de 1990. Atualmente trabalho como dentista e resido no Estado de Santa Catarina, vizinho do Paraná, ambos no Sul do Brasil, na cidade de Balneário Camboriú, que é uma das cidades balneário mais agitadas do país, que fica distante 70 km de Florianópolis (a capital do Estado) e 70 Km de Blumenau (onde mora a Urda). Tenho um filho de 18 anos que cursa a Faculdade de Desenho Industrial. Tenho 3 romances publicados (A Ilha de Alor, 1997: Bala, perdida?, 2001 e Ana Cabeluda do Pano na Cabeça, 2003. Está para sair o quarto romance no ano de 2007: Paris, setembro de 1893. O meu site que está abaixo, está para ser feito faz 3 anos, e nunca dá tempo. A correria por aqui é sempre grande e sobra pouco tempo para a literatura, infelizmente.”

&, agora, o conto!

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Ah! Mariana...

O trânsito estava lento na entrada da Consolação naquele horário e eu já sabia que ia demorar a chegar; já havia avisado Mariana para tentar ter calma, apesar da situação. Foi uma pena deixar a palestra no meio, mais pena ainda foi deixar ao meio os discretos olhares daquela advogada recém aprovada na ordem, que o Dr. Antonio Arruda havia me apresentado como filha do Dr. César Almeida, como se este fosse um velho conhecido. Sabe lá quem é o Dr. César Almeida! Mas não era para o presidente da convenção que eu ia admitir isso.

— Alô... Mariana... em meia hora eu retorno, agora não posso, estou numa convenção da OAB... onde? No Anhembi... sim, eu sei que é longe da tua casa... o quê? Diga que isso é brincadeira... faz quanto tempo?... está bem, vou tentar chegar rápido...

Lá ficou o olhar de abismo da Dra. Ana Isabel Almeida, que parecia me fazer cair no vazio cada vez que me olhava, com um discreto sorriso, durante a palestra. Parecia que seus olhos estavam constantemente úmidos e a boca naturalmente entreaberta, o que lhe dava a adorável aparência de fingida fragilidade, pronta a ser usada no momento adequado.

O táxi tentava ziguezaguear pela rua, mas, naquele horário, era impossível ir mais rápido e fiz questão de tranqüiliza-lo. Eu também precisava um tempo para me preparar e encontrar outra vez Mariana. Ah, Mariana!

— Veja Júnior, não são bonitos?

— Esses pelinhos?

— O nome certo é pêlos pubianos. Já começaram a nascer faz um tempo e agora é um tufinho... veja como são douradinhos... e macios, passe a mão aqui... isso, devagar...

Com certeza eu já devia ter tido outras ereções, mas foi bom guardar na lembrança essa, como a primeira:

— Nossa! Júnior, como ele tá grande! Fazia tempo que eu não via ele... deixa eu ver direito, abaixa essa sunga...

Ah, Mariana! A linda Mariana! Que brincadeiras deliciosas!

O táxi bateu de leve em outro táxi e logo virou confusão. Pensei em pagar e apanhar outro, mas, que diferença ia fazer? Para chegar na Faria Lima, em Pinheiros, teria que ter paciência e ela também.

— Alô, Mariana... olha, o trânsito está muito lento... como você está?

— Como você quer que eu esteja? Acabei de matar uma pessoa...

Eu não deveria estar lembrando coisas tão doces numa situação como essa, me senti culpado. Será que ela lembrava do caso Maria Tereza? É claro que ela lembrava, achou muito engraçado o fato de eu ficar excitado diante de uma situação trágica. Mal sabe ela o quanto paguei ao psicanalista pra tentar fazer de conta que isso era normal.

Os dois motoristas nervosos voltaram para os seus carros e o trânsito liberou um pouco, mas, dois semáforos depois, era a vez de um ônibus acertar a traseira de uma Van de turismo.

Será que eu ia ficar excitado de novo? Ainda mais com Mariana, que sempre me deixou maluco. Maria Tereza estava com o avental todo manchado de sangue, mas sem roupa nenhuma por baixo e, no seu estado de choque, pouco se importava se o avental estava aberto ou não. Como foi difícil disfarçar aquela ereção!

— Vamos Júnior, eu roubei a chave do sótão... não tenha medo, a empregada colocou uma lâmpada nova lá, não vai estar escuro... quero te mostrar uma coisa...

Ela queria me mostrar o seu colibri. Havia feito uma tatuagem perto dos seus dourados e macios pelos pubianos, que pareciam um tufo de flores onde a avezinha mergulhava seu bico longo... Ah, Mariana! Como brincamos naquele tempo. Na época era uma grande aventura, um pecado a ser escondido, daqueles de ruborizar na frente do padre antes da Páscoa, quando ele perguntava no confessionário se a gente tinha pecado. Inventávamos angélicas mentiras. Nos dias de hoje seriam brincadeiras da primeira meia hora. Levamos anos fazendo aquilo.

— Olha Junior... ta vendo isso aqui? Preste atenção... não parece um pintinho? Isso é o meu clitóris...

—... e pra que serve isso?

— Tenha calma, um dia você vai descobrir.

Ela queria se fazer de muito esperta, por ter dois anos a mais, mas era tudo um disfarce. No dia em que realmente quase aconteceu, assustada me disse que ainda era virgem. Aprendia as coisas proibidas numa enciclopédia do sexo que sua mãe guardava a sete chaves, mas ela tinha a cópia de todas. Era esperta, mas no fundo, tão ingênua como eu:

— Não Júnior, não coloca...

— Por que eu não posso?

— Ninguém pode... ainda... não Júnior, pare... ai, ta doendo...

Ela me empurrou com força e se abraçou às próprias pernas. Estava quente no sótão naquela tarde de verão. Estávamos suados depois das tantas sacanagens, que com o tempo perderam a ingenuidade inicial e já se repetiam há alguns meses. Beijos molhadíssimos, na boca, nos seios... em tudo, mas...

— Eu ainda sou virgem.

— O quê? E o Agnaldo...

— Não fez um décimo do que você já fez comigo...

Todos diziam que éramos quase irmãos. Ela não desgrudou de mim desde que nasci. Nossas mães eram as melhores amigas das melhores amigas e ela virou minha boneca viva, que me entretia e cuidava.

O dia não estava quente e a conhecida garoa paulistana fazia tudo parecer um pouco mais caótico do que realmente era. Pela janela do carro, riscada por gotas escorridas, eu via a cidade concreto e sua gente: apressados de todos os tipos, carrões com seus insufilmes, mendigos sob as marquises dividindo as ruas com uma imensa população de invisíveis que, como dizia MV Bill, de uma hora pra outra aparecem na janela do nosso carro com um 38 e ganham inesperada e insólita visibilidade. A cidade me lembrava da mãe de pano e da mãe de arame. Há muito tempo, na época dos esconderijos e pequenos pecados com Mariana, eu vi na televisão uma experiência feita não sei onde, em que dois macaquinhos recém nascidos foram tratados em salas diferentes sendo que, em uma delas havia uma macaca mãe feita de pano, e na outra era feita de arame. Com o passar do tempo o macaquinho criado junto com a mãe de arame tornou-se muito mais irascível, enquanto que o da mãe de pano, dócil.

São Paulo era uma imensa mãe de arame, e concreto, principalmente para os invisíveis, e uma mãe de pano para uma minoria, que parecia flutuar acima do concreto. Um moleque passou como um raio pelo lado do carro, talvez vivendo seus parcos momentos de visibilidade, e no apartamento na sobre loja da esquina, uma mulher gritava loucamente com o marido. O taxista parecia um homem bomba, pronto para cometer um atentado urbanista. E Mariana me esperava em desespero, havia cumprido a promessa feita na semana passada, na qual não acreditei. Pensei que havia mudado, mas continuava a mesma da adolescência: falava, e fazia.

Disse que mataria o pit bull do policial aposentado que morava na frente do ponto de ônibus e que já a havia atacado várias vezes, sempre parando com o assobio do dono, a menos de dois metros dela. Fez aula de tiro, comprou uma mira de longo alcance e... bum! Do sótão dava pra ver os fundos da casa do ex-policial. Foi o maior rebu: polícia pra todo lado, sirenes e desconfiança, e ela andando de um lado para outro, dando informações, dizendo que havia ouvido o tiro... Ah, Mariana! Depois me deu um beijo demorado, pra comemorar, e outras brincadeiras.

Nunca falávamos em sentimentos e eu tinha certeza que ela sabia da minha paixão indomável, mas nunca comentava.

— Não Júnior, é perigoso... a filha de uma amiga da mãe ficou grávida virgem, só por brincar assim... vai casar no fim de semana...

— Olha o que eu tenho pra você...

— Como é que você conseguiu uma?

— Roubei do meu pai, ele tem um monte, nem vai perceber.

Hoje a gente compra camisinha em qualquer lugar. Naquela época era complicado. Aquela a gente usou muitas e muitas vezes. Lavava, passava um talquinho e enrolava de novo. Fiquei deprimido quando rasgou.

— Ai... pára... só até aí... você prometeu... não entra mais... isso, goza... com camisinha é melhor, não fico toda melada... ué!... ta escorrendo... o que aconteceu?

Exatamente naquele mês, ela que era um reloginho, atrasou 12 dias. Já tínhamos escolhido até os nomes: Marina ou Victor; era uma maneira de aliviar o desespero que passamos, mas o fato também contribuiu para mostrar a mim mesmo o quanto gostava de Mariana: por mais que estivesse desesperado, no fundo gostava da possibilidade de ficarmos juntos para sempre. Para sempre... sempre acaba. Acabou no décimo terceiro dia, num modess encharcado de sangue.

Parece que o taxista falou que mais uma quadra e o trânsito liberava. Já fazia quase uma hora que havia saído da convenção e eu nem queria imaginar o que iria encontrar na casa de Mariana, mas não sabia se era por causa dela, ou por minha causa. Tive até vontade de ligar para o psicanalista e dizer que estava acontecendo de novo.

Mais uma vez paramos e na minha frente se repetiu o desfile de aflições paulistanas. O táxi estava bem próximo ao meio fio e encostado na parede de uma banca de revistas, não tão protegido da chuva, havia um velho esticado, talvez morto, talvez dormindo. Todos passavam, inclusive eu (como vou ajudar alguém, se uma cliente acabou de cometer um crime?). Logo acima da banca, a porta de um café elegante abria-se para casais descolados entrarem para o happy hour. Aquela porta era o muro alto que a tudo proibia, onde toda maçã caía. Aqueles insufilmes, cordões de isolamento, seguranças, coberturas e mansões: visíveis muros altos proibindo as maçãs e os sonhos dos invisíveis. E o dono nem via!

Maria Tereza percebeu. Foi constrangedor, mas percebeu. Quando a polícia tentou tirar ela do consultório do Dr. Jaime houve um empurra-empurra, devido a aglomeração na sala de espera; ela deu um passo para trás e encaixou em cheio. As eternas calças sociais dos advogadas não são nem um pouco discretas. Virou o rosto entre o aturdimento e o espanto. Não tinha como sair daquela posição, sem que os policiais na sua frente dessem um passo à frente. Mais alguns segundos e o orgasmo seria inevitável. Foi a gota d’água; fugi da idéia até aquele dia, mas, mesmo assim, havia guardado o cartão do Dr. Euvaldo Antonetto, hoje meu psicanalista.

Maria Tereza era enfermeira chefe do hospital e mantinha um caso semi-secreto (como todos) com o Dr. Jaime, há anos. Ficou maluca quando descobriu que havia sido traída, ainda mais com quem: a própria esposa dele. Ele jurara pra Maria Tereza que não dormiam juntos mais e só não se separavam devido a ela ser depressiva e a filha autista. Naquela manhã Dr. Jaime esqueceu o celular no quarto de um paciente que recebera alta e a enfermeira que achou, até pra se fazer entender que sabia de tudo, pediu para que Maria Tereza o devolvesse. No grande corredor ela resolveu vasculhar o celular:

Noite maravlhosa.... melhor org d minha vida... te amo...

Na sala de espera do Dr. Jaime havia um quadro com fundo de veludo preto e um bisturi no centro, além de uma placa de prata; homenagem do hospital ao eminente Dr. Jaime Voutersk. Foi a arma do crime. Maria Tereza entrou na sala no final de uma consulta e tirou a roupa na frente do sorridente médico:

— Você e suas loucuras...

Foram as últimas palavras dele. Ela vestiu o grande avental branco sobre o corpo nu e sentou na mesa de consultas, com as pernas abertas. Ele foi, e não voltou mais. Uma eminente enfermeira chefe, um eminente médico, um eminente delegado, um eminente criminalista, uma eminente ereção.

Creio que num primeiro instante ela pensou que fosse meu celular, mas só num primeiro instante, não havia como se enganar. Quando tivemos algum espaço, voltei a colocar a pasta na frente do corpo e pensar na minha última crise de fígado, uma das poucas coisas que funcionavam em emergências. Muitas vezes percebi que ela teve vontade de me perguntar alguma coisa sobre aquilo, mas nunca falou nada, e até hoje ela é um dos meus maiores sonhos eróticos que, como diz Dr. Euvaldo, não devo lutar contra.

Só não é maior que o sonho com Mariana. Nunca aconteceu por completo. O pai de Mariana foi transferido para uma agência da Caixa Econômica aqui da capital e ela deixou Sorocaba aos 17 anos, dois anos antes de mim. Embora tenhamos nos vistos nas férias, e feito longas e deliciosas brincadeiras, nunca aconteceu.

— Não, atrás dói...

— Como você sabe?

— Não interessa como eu sei, atrás não... mas eu tenho uma recompensa pra você....

Ah, Mariana! Que recompensa!

Quando passei no vestibular pra direito e vim morar a três quadras da casa dela, pensei que era a solução do destino. Mas o destino, que grande farsante! Depois de tantas tentativas sem conseguir passar em medicina, ela passou em Odontologia, em Curitiba. Nos vimos algumas vezes, porém, nos dois últimos anos da faculdade não nos encontramos e, quando isso aconteceu, ela me abraçou apertado e disse no meu ouvido:

—Tenho uma coisa pra te contar...

—Você não é mais virgem...

— ...vou me casar.

Um trovão retumbou no mesmo instante que eu lembrava da sentença que mudou para sempre meu destino emocional, como aconteceu naquele dia: uma grande tempestade arrasou minha cidade interna, tão arduamente construída, só pra Mariana morar.

O trovão foi seguido de outro, e outro, e a chuva que era fina, caiu agora vigorosa, enquanto o táxi entrava na Faria Lima e o meu celular tocava:

— Alô!

— Que pena que você fugiu...

— Quem está falando?

—Ana Isabel...

—Como você conseguiu meu telefone?

—Estou atrapalhando alguma coisa?

—Não, estou num táxi, chegando na casa de uma... cliente.

—Uma emergência...

—... sou criminalista, nem sempre dá pra marcar para amanhã.

— E vai estar com a noite toda ocupada... quer dizer, nós estamos indo jantar, pensei que gostaria de ir junto...

— Devo me liberar logo, em que restaurante vocês vão?...Antiquárius... Ah! Sim, uma ótima escolha (ai, meu bolso!)... tão logo eu me libere eu ligo, está bem, obrigado pelo convite...

Nossa! Assim eu até pareço um advogado! Parecia que estava tratando com uma cliente. Pensei em ligar de novo, mas o táxi acabara de parar no n.o 780, enquanto o mundo parecia se dissolver do lado de fora.

— É melhor esperar um pouco Doutor, com essa chuva não dá pra descer. Não tem problema, vou parar o taxímetro.

A casa de Mariana era cercada por um imenso muro branco, com um pequeno portão de madeira no meio, embaixo de um toldo amarelo. Um muro, que protegia um bosque chamado Mariana, uma maçã chamada Mariana, um sonho chamado Mariana. Uma assassina, chamada Mariana. Ah! Mariana...

Não fui ao seu casamento. Fiquei cinco anos sem vê-la, sem nenhum contato, até que o farsante destino intrometeu-se no meu caminho. Aquele tal de Nando, indicado pelo Felício, era filho de quem? Da Carmem, melhor amiga e confidente de quem? Mariana. O Nando havia saído bêbado de uma festa: cinco da madrugada e um Audi 0 km por ter passado no vestibular e, num ponto de ônibus, três invisíveis; mas os invisíveis também morrem. E o pai ainda comentou:

— Ainda bem que tinha seguro.

Caralho! Seguro não devolve a vida pra ninguém! Pensei até em não aceitar o caso, mas foi ela quem veio falar comigo em meu escritório. Acabamos passando a tarde juntos e várias outras depois disso. Reatamos a amizade, mas sem contato físico que fosse além de um rápido roçar de rostos, embora ela sempre deixasse um cantinho do lábio no caminho.

— Eu quero segurar ele pra você...

— Como assim?

— Enquanto você faz xixi. Quero fazer pontaria no vazo...

— Tá louca?

— Vocês nunca acertam... quero ver se é mesmo difícil... não sei porque vocês não fazem xixi sentado, como a gente.

Ah, Mariana! Riu muito quando contei o motivo de ter ido no psicanalista. Ficou curiosa para conhecer Maria Tereza, isso por que não contei sobre a Vitória, sobre a Elisa, sobre a Cidinha, sonhos eróticos menores, mas que haviam provocado ereções trágicas também. Contou sobre o marido, também dentista, e suas crises de ciúme. No início não falou mal dele, mas, no último mês, começara a reclamar.

— Por que você não se separa? Estão bem de dinheiro, não têm filhos... o que a impede?

Ela não respondeu. Acho que não sabia, ou até pareceu que nunca tinha pensado a sério no assunto. Há uma semana ela apareceu com uma marca roxa no braço. Falou que se acontecesse aquilo de novo ela o mataria, e agora ela estava lá dentro, com o Dr. Eurico esticado no carpet do quarto. Tão logo apanhei o táxi no Anhembi liguei para ela novamente para pedir mais detalhes e dizer para não fazer nada até eu chegar. A chuva começava a acalmar e era hora de eu entrar, abraçá-la, acalmá-la, e chamar a polícia.

— E nós acabamos nunca transando... ou melhor, você nunca me penetrou...

Confesso que fiquei um pouco constrangido com a espontaneidade dela. Parecia que havia esquecido do tempo e falava como no nosso tempo, sem pudores, sem frescuras. Não respondi, apenas sorri, porém, sob a mesa acontecia uma rápida revolução. Ela sabia disso, riu e falou:

— Ficou duro, não é? Eu nem preciso matar alguém pra ele ficar duro...

Ah! Mariana... malvada Mariana!

—Acho que já dá pra descer Doutor... dá pra chegar até o toldo sem se molhar.

Mesmo a chuva tendo acalmado, me molhei bastante. Respirei fundo e toquei a campainha. Quase no mesmo instante a fechadura do portão destravou e o celular tocou novamente:

— Está chovendo muito, mudamos de restaurante, estamos indo no Massimo...

Meu bolso continuava doendo. Quando cheguei na porta ela estava entreaberta. Entrei e não a vi. Não sabia que quadro iria encontrar, porém, o que encontrei foi bem mais surpreendente do que eu esperava: ela estava usando um grande jaleco branco, manchado de sangue, quase todo aberto na frente, preso apenas por um botão e sem roupa por baixo. Maldita! Não tivesse cometido um crime... dava quase pra dizer que estava fazendo de propósito. Mas dentistas usam jalecos brancos, embora costumem usar roupas por baixo.

Ela estava na suíte e, numa mesa um Alma Viva e duas taças. Devia estar louca. Os olhos vermelhos e molhados. Seu corpo aparecendo e desaparecendo.

— Onde ele está?

Ela apontou a porta fechada do banheiro, porém, quando fui abri-la, ela gritou:

— Não! Não quero mais vê-lo... ele está horrível...

— Com o quê você o matou?

Ela puxou uma toalhinha branca e ao lado da garrafa do Alma Viva apareceu uma pistola automática. Eu sabia que ela ainda atirava em academias e era entendida em armas, e seu corpo aparecia e desaparecia.

— Você já está preparada? Podemos chamar a polícia? Conversamos enquanto eles vêm.

— Ainda não... não, Júnior, ainda não...

Somente ela me chamava de Júnior. Falou chorando, sentada na cama, com as pernas abertas, me deixando ver seus lindos, dourados e macios pelos pubianos, e o colibri que eternamente os sugava. Levantou soluçando e veio em minha direção. Seu abraço foi apertado e quente. Imediatamente ela percebeu o que estava acontecendo e apertou as pernas um pouco mais entre as minhas. Estava realmente louca.

Aquele abraço foi se prolongando. O jaleco havia se aberto ainda mais quando ela andou rápido na minha direção. Os invisíveis sonhavam com maçãs pelas ruas e os velhos mendigos morriam sob os viadutos e marquises. Ana Isabel pedia um Dom Perignon no Massimo e eu tinha uma inabalável ereção, encostado em Mariana, com seu jaleco sujo de sangue, com o Dr. Eurico morto atrás da porta do banheiro.

— Ele está enorme... não, você não pode chamar a polícia agora... não agora... nós nunca... não, agora você não pode chamar a polícia... nossa, como ele está enorme!

Ela virou de costas e encostou novamente em mim, fazendo com que a abraçasse.

Quantas sessões haveria ainda de pagar ao psicanalista? Era impossível resistir. Quantos anos esperando? Senti como se ambos estivéssemos perdendo uma virgindade remota; como se rompêssemos um hímen atemporal:

sinto o cheiro quente do amor
atrás da tua orelha
aperto minhas mãos
um pouco abaixo dos teus seios
e trago todo teu corpo junto ao meu
levanto tua coxa com a minha
e deslizo minha mão segura ao botão
indefeso da tua louca vontade
abro-o, e encontro os pelos macios do teu sonho
mas antes de desafiar teu sexo úmido
viro-a para mim
e encontro o delicioso desespero dos teus olhos
beijo teu lábio, o de baixo
o de cima
e deslizo minha língua atônita ao redor da tua boca
ofegante por mim
afasto o tecido injusto que me rouba teu seio
ah! Que me olham
e as mãos encontram livre a trilha do fogo
que corre atrás do teu corpo
no longo caminho da nuca
ao vale quente das tuas pernas...
elas se dobram
e eu a derrubo mansa

ao chão do meu destino...

Penetrei Mariana. Finalmente perdemos nossa virgindade, de forma trágica, ali mesmo, no carpet do quarto. Éramos íntimos e não éramos. Enquanto gozávamos como dois desesperados, os dois celulares tocaram, o meu e o dela. No meu devia ser a Ana Isabel.

Enquanto ela olhava o visor do dela e sorria, falei:

— Devemos chamar a polícia...

— Não precisa.

— Como assim? Você sabe que é a melhor forma... vamos alegar legítima defesa, seu braço ainda está roxo...

—Você não vai ver quem te ligou?

—Por que? Isso não é importante agora... temos um morto aqui.

Parecia que as coisas tentavam se reorganizar na minha mente todas ao mesmo tempo e isso criava ainda mais confusão. Como ela podia estar tão calma?

—Veja quem ligou.

Não conhecia o número, mas havia um sinal de mensagem de voz na secretária eletrônica. Enquanto ouvia a mensagem a confusão dos pensamentos atingia o nível máximo, como uma fornalha pronta para explodir. Fui até a porta do banheiro e a abri, enquanto apertava a tecla para ouvir novamente a mensagem:

“—Dr. Gustavo, aqui é o Dr. Eurico... foi minha mulher que me deu seu número e pediu para que eu ligasse... nós estamos nos separando... ela disse que o senhor é um ótimo advogado...”

—Você mentiu pra mim...

— Não, eu não menti... não totalmente... a única mentira foi dizer que ele estava no banheiro. Eu matei realmente o Eurico... aqui dentro.

— Então por que armou tudo isso.

Ela riu. Ah! Mariana... Ela riu e veio em minha direção, me abraçou e disse:

—Apenas estou ajudando seu psicanalista... realizei o seu maior sonho erótico... além do mais, já merecíamos isso há muito tempo... eu sempre fui apaixonada por você...

— Ei! Espera aí! EU sempre fui apaixonado por você...

— Mas demorei muito a descobrir isso. Só descobri agora, quando nos reencontramos. Nunca falei da minha paixão pensando que você me via apenas como amiga. Uma amizade com quase sexo.

— E foi por isso que resolveu se separar? Por minha causa, ou devido aos ataques de ciúmes dele?

Ela soltou-me e foi na direção da mesa. Encheu as duas taças com o Alma Viva, fazendo-o cintilar sua cor rubi na frente da vela que havia acendido, depois virou e falou:

— Não. Não foi por sua causa. Na verdade os ataques de ciúmes eram meus. Nunca fui de mentir... talvez omitir, mas não mentir. Descobri que ele tem um caso com a advogada que contratou há algum tempo, para defendê-lo num processo trabalhista...

Sentei na beirada da cama. Um trovão trouxe mais uma pancada de chuva. Algum velho mendigo deve ter morrido; algum invisível apareceu, de repente; Paixão perdida no tempo. Tesão reencontrado. Vingança. Devolveu a traição na mesma moeda advocatícia. Alguma maçã deve ter caído, e o dono não viu. Indicou a mim. A mãe de arame continuava perturbando. A chuva alagava as ruas, as almas.

Mais tarde, com um táxi novamente me esperando no portão, ainda perguntei pra ela:

— Será que eu conheço essa advogada?

— Ela é quase uma recém formada... uma tal de Ana Isabel... não vem ao caso...

Quando ela falou o nome eu já começava a descer a escada do jardim. Olhei para ela tomado de um turbilhão de dúvidas instantâneas. A esperta Mariana! A maquiavélica Mariana! A vingativa Mariana! Continuei descendo, lento. Virei-me novamente e perguntei:

— Você conhece um advogado chamado Antônio Arruda?

Ela não respondeu, apenas riu de canto de lábio e me lançou aquele conhecido olhar moleque, que nunca perdera.

Ah! Mariana...

Mauro C. B. Camargo

http://www.maurocamargo.com.br/

"

Uma nota muito mais tardia (2006.12.16 às 23:25 GMT), mas necessária: por erro de correcção automática, que passou despercebido, o nome do Autor no título e na assinatura final saiu Mário e não Mauro. A correcção está feita, é mesmo Mauro... e o Mauro que me desculpe.