quarta-feira, 31 de maio de 2006

"A bola dá que fazer" (5/6)

(continuação de 30/5)
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Em Portugal, os casos idênticos estão aumentando sensivelmente. Mas como evitar tamanhos perigos? Deixemos esse encargo ás mulheres, lembrando-lhes apenas o tenente inglês Crosbymallpeice.
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[em rodapé:]
Em Janeiro de 1930, no Campo de Santa Cruz, em Coimbra, no decorrer de um encontro entre o Sport Club Conimbricense e a Associação Académica:
-- «Porque o árbitro tivesse determinado a saída de um jogador da Associação, estabeleceu-se um conflito, envolvendo-se em desordem vários dos elementos da classe civil e da Academia, que ali se encontravam e que saíram do campo em grande algazarra, tentando os académicos agredir o árbitro, que pôde fugir do campo.
Tomadas as providências devidas pela polícia que ali se encontrava, foram presos os académicos Henrique Cabral de Noronha Meneses, José Coelho dos Reis, Manuel Nepomuceno Leite da Cruz, José da Encarnação Cortez e José Félix Alves da Carvalhosa, que foram conduzidos à esquadra do Governo Civil, acompanhados por um numeroso grupo de estudantes que exigia a sua liberdade.
O conflito avolumou-se então, tendo de formar a força policial em frente do Governo Civil, para manter a necessária ordem, sendo nessa altura agredido com uma pedrada o guarda n.º 185, João Correia que ficou ferido na região frontal, recebendo tratamento no hospital da Universidade, e o menor José de Castro, com contusões no torax, que foi pensado no mesmo estabelecimento.»
Não inventamos. Foram estas as palavras da notícia publicada pelo «O Século», de 20 de Janeiro de 1930, em telegrama de Coimbra.
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(continua)

terça-feira, 30 de maio de 2006

"A bola dá que fazer" (4/6)

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O autor...
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(Continuação de 29/5)
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Talvez seja por isso que, para acalmar quaisquer ímpetos e desregramentos, é costume aconselhar: «tento na bola»... Porque, além de tal prática ultrapassar, por vezes, o grau da força cardíaca do jogador e de lhe produzir, assim, uma insuficiência do coração, duradoura ou fatal, dá motivo a discussões perigosas, com bofetadas, tiros, injúrias e facadas à mistura... «A Notícia» do Rio de Janeiro , de 2 de Setembro, dizia que - «em grande parte os crimes de sangue, aos domingos, são motivados pelas discussões em torno dos resultados das partidas de foot-ball».
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[em rodapé:]
"Os Sports" (Lisboa) de 18 de Janeiro de 1930 diziam a propósito:
O Dr. Mário Monteiro publicou no «Diário de Lisbôa» de quarta-feira um curioso artigo sobre foot-ball.
Nesse artigo são focados, com muita verdade, os desmandos que ultimamente se têm verificado no foot-ball, atropelos de civilidade que muito prejudicam o desporto e a sua propaganda.
Em «Os Sports» várias vezes têm sido combatidos esses desmandos que o Dr. Mário Monteiro também combate com energia no seu artigo de agora. Tudo quanto se encontra escrito no artigo do Dr. Mário Monteiro, está certíssimo e muito interessante seria que o distinto advogado continuasse na sua crítica justíssima, porque com ela só o desporto e a sociedade teriam a lucrar.
O «Diário Liberal» (Lisboa), de 12 de Julho de 1932:
- ROMA, 11 - Consta que os representantes diplomáticos italianos protestaram junto do governo de Praga, em virtude dos sérios acidentes ocorridos durante o último desafio de «foot-ball» realizado para a disputa da taça da Europa, entre a Itália e a Checo Eslováquia. No decurso desse desafio, foram os representantes diplomáticos de ambos os países insultados, e quatro jogadores maltratados pelos espectadores. O presidente do Comité organizador do desafio exigiu uma explicação, e o «Giornale d'Italia» exige que a Checo-Eslováquia seja eliminada do torneio.
A solução do incidente foi entregue à Federação Internacional de Foot-Ball. - (United Press)
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(continua)

segunda-feira, 29 de maio de 2006

"A bola dá que fazer" (3/6)

(continuação de 28/5)
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"Quando o Vitória foi ao Brasil «A Pátria Portuguesa» chegou a pedir ao nosso governo que proibisse aquelas embaixadas sportivas cujos excessos prejudicam o bom nome lusitano. Em 2 de Setembro quando o Olaria Foot-ball Club foi derrotado pelo Carioca houve por lá pedradas e ferimentos, sendo precisa a intervenção médica. No Engenho de Dentro, um soldado, discutindo o jogo, alvejou a tiro o negro Othon, e no Brasil F. C. , em 16 de Dezembro de1928, um jogsdor foi subitamente atacado de comoção cerebral. No desafio entre o Vasco e o América F. C. foi maltratado o juiz do jogo, em 29 de Setembro de 1929, havendo escaramuças com o público.
Durante a conquista do Campeonato brasileiro entre Paulistas e Cariocas, em 8 de Dezembro de 1929, foram tamanhas as lutas corporais com ferimentos e intervenção médica e policial que «A Notícia» declarou ser necessário pôr termo »a esses factos deveras deprimentes». Por causa da paixão pela bola, em 18 de Agosto, um «chauffeur» matou, em S.Paulo, a menor Edith, com a pressa de assistir ao jogo, e um garoto de 16 anos morreu perto da Fortaleza de Santa Catarina (Rio de Janeiro), quando se atirou ao mar em busca da bola com que estava jogando em um grupo de amigos. Em 13 de Dezembro, um operário da fábrica de calçado Colucciesfaqueou um colega com quem discutia o «foot-ball». Os tempos repetem-se e estamos hoje atravessando uma época que é irmã gémea da que Juvenal fustigou com o «panem et circenses» (pão e jogos de circo), única preocupação dos romanos de decadência. Dos exercícios corporais ao ar livre, tão recomendáveis dentro da justa medida, da possível moderação preconizada pela «eutrepelia» grega, está nascendo, a cada passo, uma série de factos que caem francamente na alçada do Código Penal.
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(continua)

Amor com amor se paga...

De um "power-point" recém recebido:
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"As minhas tias tinham o mau costume de, em casamentos a que íamos, se chegarem ao pé de mim e, dando-me palmadinhas nas costas, me dizerem:
- Serás tu o seguinte?
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Acabaram com tão triste mania quando comecei a fazer-lhes exactamente o mesmo...
... mas nos funerais."
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domingo, 28 de maio de 2006

"A bola dá que fazer" (2/6)

(continuação de 27/5)
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"Necessitam, porém, duma outra fiscalização que lhes evite ou corrija os prejuízos. Queremos falar dos casos pouco edificantes que originam frequentemente. Recordemos que, em Outubro de 1929, no Campeonato de Foot-ball de Lisboa, houve cenas de pugilato forjadas por dois jogadores que foram logo expulsos. Em 17 de Novembro, da discussão entre dois gruposde jogadores da bola, a bordo do vapor «Alcochete», veio um conflito cheio de gritos, pancadas e prisões, tendo caído ao Tejo um homem que, ainda por cima, ficou sem o relógio, a corrente e algum dinheiro, por obra e graça de desconhecidos que aproveitaram a confusão... Em 13 de Outubro, no desafio Benfica-Sporting, várias agressões e violências levaram a Imprensa a pedir uma repressão enérgica para casos tais. De Santana (Figueira da Foz), em 3 de Novembro, chegou até nós o pedido de providências urgentes contra o rapazio que, por jogar à bola, ci«ontinuava partindo o telhado da Associação de Instrução e Recreo Santanense.
Em Cortegaça (Ovar), em 17 de Dezembro, um pobre homem, do lugar do Agueiro, enlouqueceu porque pretendiam usurpar-lhe, segundo pensava, para campo de jogo um terreno que herdara e que muito queria. Em 3 de Setembro, no Luabo, o guarda-redes do «team» do Chinde foi por tal modo carregado, ao fazer uma defesa, que morria, daí a pouco, com uma hemorragia do pulmão direito. Em 22 de Dezembro, discutindo o jogo da bola, foi esfaqueado um homem no Alto dos Toucinheiros; em Chelas."

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(continua)

À flor escondida

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Sai quantas vezes vieste ao meu blog:
se gostas de me ler,
lê-me
...mas di-me-lo também!
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Sei quantas vezes no teu fui espreitar-te:
o tempo corre,
é breve,
e nunca se detém!

sábado, 27 de maio de 2006

"A bola dá que fazer" (1/6)

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O então ilustre causídico e articulista no "Diário de Lisboa" Dr. Mário Monteiro, do Instituto de Coimbra, fez editar em 1934, pela Livraria J. Rodrigues & C.ª, da Rua Áurea, em Lisboa, o volume "Era o Diabo!", cujo racional é apresentado da seguinte forma:
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"Atendendo a insistentes pedidos de amigos e de leitores do "Diário de Lisbôa" que as não coleccionaram, resolvemos enfeixar, em livro, algumas das nossas crónicas, devidamente corrigidas ou ampliadas. Vendo bem, as páginas que se seguem e parecem, por vezes, um comentário, ora amargo ora irónico, à vida que vivemos, não passam, afinal, d'um coração sinceramente aberto a todas as emoções, próprias e alheias.
Isto poderá parecer desusado e romântico nos tempos que vão correndo... mas é assim mesmo."
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Desse conjunto de crónicas há um capítulo destinado "à bola" e como estamos em tempos ou de Santa Maria Madalena ou de 2-concertos-2 ou de futebol assanhado, escolhi o que vem a seguir, transcrito da pag. 118 à 126, e que, "às pinguinhas", me dará para contar aqui coisas interessantes seis dias a fio [actualizando algo da grafia]. Mais três seria uma novena! O título desse capítulo é mesmo o que está acima: "A bola dá que fazer". Oh se dá! E não me perguntem como veio este livro parar às minhas mãos. Nem eu sei! A verdade é que veio e que, com ele, como o Autor tenho vontade de dizer... "mas é assim mesmo"!
- - - « « « «» » » » - - -
"O jogo da bola, que constitui uma fúria do nosso tempo, já tinha adeptos fervorosos, há muitos milhares de anos, nas setenta cidades do Iucatan. E, além dos aztecas que restabeleceram os jogos dos mayas, os índios das Antilhas visitados por Oviedo, também jogavam a bola há séculos atrás. Faziam o mesmo algumas tribus nas florestas virgens do Brasil. Disse o Dr. Koch-Grünberg que chegavam a fixar os seus campos delimitando-os com árvores. A maior preocupação de Esparta, no tempo de Licurgo, cifrava-se na cultura física exercitada em vários jogos. Na Inglaterra, de 1363, chegou a aparecer um decreto proibindo o jogo da bola, sob pena de prisão, tal o desenvolvimento que tinha alcançado. Em 1500, a Escola de Winchester adoptou-o para divertir os seus alunos mas Sir Tomás Elot , em fins do sec. XVI, garantiu ser "uma fúria bestial, uma extrema violência", esse jogo então em plena voga em Inglaterra. Foi assim que, em 1853, nasceu a necessidade de convocar a Football Association, de Londres, e de estabelecer algumas leis reguladoras que foram o berço do jogo denominado "Association", com bola redonda, vinte e dois jogadores e proibindo o uso das mãos, com excepção do «goal-keeper» [guarda-redes]. Este sistema deixou de pé várias disposições do violento jogo que tornara célebre o colégio inglês de Rugby, com a bola oval,trinta jogadores e o uso livre de pés e mãos.
Em Portugal o primeiro jogo da bola efectuou.-se no tempo dos mouros, na Quinta «do Jugadouro», em Rio Maior, junto à capela e ás casas incendiadas em 1823, mas figura com essa categoria, oficialmente, o que teve lugar , em 1892, nos terrenos do Campo Pequeno, por iniciativa do Club Lisbonense. No Porto, sob o patrocínio do Oporto Cricket Club, surgiu esse jogo em 1893, e, logo no ano seguinte, na disputa da taça D.Carlos, dava-se o primeiro encontro Porto-Lisboa, cabendo a esta equipe a palma da vitória. Em 23 de Setembro de 1910 nascia, em Lisboa, a primeira associação regionaç seguindo-se a do Porto, em 3 de Agosto de 1912.
Mais tarde, em 1914, já havia a União Portuguesa de Foot-ball, agora Federação de Football Association. Naturalizado inglês, o jogo da bola foi considerado o «volapuk do músculo» por M. Thamin, reitor da Faculdade de Letras de Bordéus. Proibido temporariamente no nosso país, no verão de 1928, quiz a Liga de Profilaxia Social estudá-lo sob o aspecto da insuficiência física de alguns jogadores e provocou o edital que, no Porto, conduziu todos os clubes desportivos a uma rigorosa inspecção médica.
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(continua)
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sexta-feira, 26 de maio de 2006

Como acaba "Os Anarquistas de Casas Viejas" ou o "desabafo" de Pepe Pareja, camponês anarquista andaluz, que J.R.Minz pôs no final do livro*

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"Viver é lutar. Os jovens de hoje lutam e são melhores que o que nós éramos, porque estão melhor educados. Todo o mundo está em luta pela revolução.
Estava um camponês a podar activamente alguns ramos maduros e a cortar os frutos. Outro trabalhador que por ali passava perguntou-lhe: "Porque estás a fazer uma poda tão radical?"
O primeiro camponês respondeu: "[Porque] todos os frutos desta árvore se perdem!"
Disse [então] o segundo: "O fruto não se perde pelos ramos, mas sim pela raiz. É aí que deves aplicar o teu machado."
O camponês seguiu o conselho, cavou o solo e descobriu muitas lagartas nas raízes.
Desde há cinquenta anos que vimos podando os ramos da árvore social, cujos frutos crescem envenenados, e não obtivemos qualquer melhoria. Pelo contrário: todas as primaveras vemos a árvore amarelecer no momento em que os frutos estão prontos a brotar. E não é por falta de diligência nossa! Inventamos, a cada hora, novos instrumentos e novos produtos para tratar a doença, mas sem algum resultado. Estamos a trabalhar para construir um mundo melhor. Temos pensões, casas baratas, salários ajustados ao tamanho da família, mas tudo isto é em vão, [tudo isto] é vazio. Podamos os ramos, quando o problema está na raiz."
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* Referi já esta obra, do antropólogo americano Jerome Richard Mintz (1930-1997), que por obrigação curricular tive o prazer de recentemente reler nas duas versões que disponho: a original, "The Anarchists of Casas Viejas" editada pela Indiana University Press, 1994 [1982] e a tradução em castelhano de Enrique Torner Montoya, "Los Anarquistas de Casas Viejas", editada em 1999 pelas Deputações Provinciais de Cadiz e de Granada.

quinta-feira, 25 de maio de 2006

"Aurora boreal", de António Gedeão (Rómulo de Carvalho)

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Tenho quarenta janelas
nas paredes do meu quarto.
Sem vidros nem bambinelas
posso ver através delas
o mundo em que me reparto.
Por uma entra a luz do Sol,
por outra a luz do luar,
por outra a luz das estrelas
que andam no céu a rolar.
Por esta entra a Via Láctea
como um vapor de algodão,
por aquela a luz dos homens,
pela outra a escuridão.
Pela maior entra o espanto,
pela menor a certeza,
pela da frente a beleza
que inunda de canto a canto.
Pela quadrada entra a esperança
de quatro lados iguais,
quatro arestas, quatro vértices,
quatro pontos cardeais.
Pela redonda entra o sonho,
que as vigias são redondas,
e o sonho afaga e embala
à semelhança das ondas.
Por além entra a tristeza,
por aquela entra a saudade,
e o desejo, e a humildade,
e o silêncio, e a surpresa,
e o amor dos homens, e o tédio,
e o medo, e a melancolia,
e essa fome sem remédio
a que se chama poesia,
e a inocência, e a bondade,
e a dor própria, e a dor alheia,
e a paixão que se incendeia,
e a viuvez, e a piedade,
e o grande pássaro branco,
e o grande pássaro negro
que se olham obliquamente,
arrepiados de medo,
todos os risos e choros,
todas as fomes e sedes,
tudo alonga a sua sombra
nas minhas quatro paredes.
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Oh janelas do meu quarto,
quem vos pudesse rasgar!
Com tanta janela aberta
falta-me a luz e o ar.

António Gedeão (1906-1997)
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in "Obra Poética", Ed. João Sá da Costa, 2001

quarta-feira, 24 de maio de 2006

Dos lápis em geral e os Viarco nº 2 em particular


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Li ou ouvi algures uma "história exemplar" sobre o que pode significar uma obstinada recusa do passado: para permitir, em voos espaciais, o uso de instrumentos de escrita que simulassem o tipo "esferográfica", em que a descida da tinta é gravítica, a NASA estabeleceu um ou mais contratos muito onerosos que, ao fim e ao cabo de bastante tempo e dinheiro, lá chegaram a um sistema capaz de obter no espaço os desejados efeitos. E a notícia, escrita ou oral, rematava com uma frase muito seca: "Os Russos, nos seus voos espaciais, nunca deixaram de usar lápis!".
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Vem isto a propósito, ou despropósito, do gradual esquecimento em que vai caindo esse humilde instrumento de escrita, que grafou as nossas primeiras e titubeantes letras e que marcou os nossos desenhos, até que as tais esferográficas e as maravilhas dos CAD's progressivamente lhe foram conquistando o terreno - pelo menos para mal das caligrafias.
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Recorde-se que a escrita a lápis está também ligada ao aspecto de incerteza, de efemeridade, de aceitação do erro. A sua não-indelebilidade e o possível acto supressor afastaram-na da escrita a tinta na hierarquia documental, mas não apagaram o receio-do-erro que os diversos correctores, a própria criação de canetas-apagáveis e a faculdade nesse sentido dos processadores de texto continuam a garantir. Relegado em certos usos por isso, o lápis assiste ao triunfo da razão por que foi relegado. E certamente não pode deixar de sorrir com o exemplo daquele meu colega de primária que, numa aula sobre antónimos, em que nós íamos recitando "quente-frio", "alto-baixo", "gordo-magro", etc. avançou resolutamente para o campo dos substantivos e "arrancou" um bem original "lápis-borracha"! [1]
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Ora o DN de ontem, 23 de Maio, além de ilustrar um artigo-opinião de Kofi A. Annan com um modelo do também já praticamente desaparecido "Meccano" com que muitos de nós sonharam (a pag. 9), de mostrar uma linda montenegrina triunfante e auto-portada a pag.12 (não era por ali que se localizava, vagamente, o príncipe de "A Viúva Alegre"?) e de falar da apresentação da desejável ferradela anti-berlusconiana de Nanni Moretti no festival de Cannes [fala também do centenário de Ibsen, mas isso fica para conversarmos mais tarde!] traz um apontamento de quase-página-inteira, a pag. 31, sobre "Os 70 Anos de Memória dos Lápis "Viarco"". E tranquiliza-nos a memória, pelo menos parcialmente, ao referir uma exposição itinerante sobre o dito lápis e a preparação de uma tese de mestrado quanto ao mesmo, no domínio da museologia e património, da autoria de Carlos Coutinho.
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Iluminou-se então a pantalha da minha memória com a compra dos meus primeiros lápis, Viarco nº 2, claro, na papelaria do Senhor Costeira, que ficava na Bandeira, entre os Aviadores e Soares dos Reis, onde também se vendiam as "lousas" ou ardósias, arrancadas aos xistos valonguenses, e os não menos úteis "lápis de lousa" que esses mais não eram que barrinhas alongadas do mesmo xisto, com uma cobertura parcial por um papel semi-fantasia de estrelinhas ou riscas vermelhas ou azuis enrolado num dos topos e que permitia escrever cinzento-sobre-preto nas tais mencionadas ardósias, até que o "apagador", levemente húmido, fizesse desaparecer a temporária escrita ou as primeiras aritméticas, com as associadas prova-dos-noves (e quem sabe tirar uma prova dos noves, hoje? e quem sabe demonstrá-la?).
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Uma certa persistência desta reflexão sobre lápis e memória, o Senhor Costeira, as provas dos nove, etc. [2] far-me-ia, na própria tarde de ontem e já na faculdade, ao ouvir uma interessante exposição de uma colega sobre as complexas questões comportamentais e relacionais que se deparam ao portador de uma doença crónica, suscitar, de forma provocatória, a possibilidade da existência de situações similares na aceitação, pelos próprios e pelos outros, do processo de envelhecimento [3]. Poderia isso levar-nos a vários casos exemplares, entre os quais o de Goethe descrito por Stefan Zweig... mas, como acima ficou dito quanto a Ibsen, deixarei o comentário sobre este assunto e exemplo para uma próxima oportunidade.
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Concluindo: ao que pode levar a escrita não de um lápis mas sobre lápis para quem, durante tantos anos e mesmo no exercício profissional, muitos lápis usou?[4]
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[1] Relataram-me, neste tipo de exercício, o caso de outro jovem que escreveu "Benfica-Porto", mas eu não sei sei se isso foi verídico ou simples anedota. A este, pelo menos, assisti eu!
[2] Reflexão reminiscente em que também entrava o Sr. Carlos Alves Teixeira, meu professor, com a Associação de Socorros Mútuos que ficava em frente ao Sr. Costeira e cujo aspecto austero, de pelicano e tudo (mas um pelicano mais agressivo que o do Montepio) me inspirava enorme respeito, o eléctrico 13, o Sr. Albino da drogaria, o Sr. Rogério da Caixa, o pequename da Bonança, que na altura, ainda sem grande preocupação quanto a isso mas já considerando que a Zulmira e a Graziela, para não falar na irmã do Kaspar, tinham algo de diferente e me alertavam sobre eventuais questões de género, a tratar futuramente, etc.
[3] Tendo em conta os avanços da medicina e a tendência crescente para a interpretação e o combate á velhice - pelo menos no nosso modelo de sociedade em que se quer fugir à idade e à doença, num verdadeiro culto do corpo e de temor aos processos de marginalização (se não de rejeição) que, num caso como no outro, ainda existem. Pesem também, nesta perspectiva e quanto ao envelhecimento, os efeitos introduzidos pelo aumento da expectativa de vida - e que o digam os senhores da Segurança Social tão preocupados com isso (e quem, como eu conheço, que começou a berrar contra o Bismark, a sustentabilidade do sistema e a urgência de alargar a vida contributiva... mas isso quando já tinha garantida uma reforma choruda a caminho do bolso!)
[4] A utilização da palavra "pencil" para novos usos, nomeadamente informáticos, pode modificar, no futuro, a actual ideia de "lápis". Um dia, alguém se preocupará com isso... e escreverá mesmo sem lápis!

Exposição sobre o descalabro da Real Fábrica de Vidros de Coina (11/11)

(continuação de 23/5 e conclusão)
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E ainda que se queira dizer que eses direitos os perde a fazenda Real porque se não cobram substituindo a Fábrica, tem esse argumento duas respostas com que se desvanece.
É a primeira, que os direitos que os vidros estrangeiros costumam pagar na Alfândega à Fazenda de Sua Magestade, são de moderado movimento, e não contrapesam a glória de ter Sua magestade no seu Reino vidros com independencia das fábricas estrangeiras, nem a de ter ocupados os vassalos em exercício útil para a subsistência deles.
A segunda é, que suposto a fábrica no seu princípio não possa produzir efeitos imediatos à Real Fazenda, é sem dúvida que, subsistindo e florescendo, há-de correr da mesma sorte que se tem visto nos mais Contratos já estabelecidos, para o que necessariamente deve concorrer a protecção e amparo para a mesma Fábrica favorecendo-a a fim de se animarem os empregos das Pessoas que a Administram, e estão nela gravemente empenhados com desejos de que se aumente, e assim o esperam da Recta intenção e compreensão de V. Exª.
E. R. M.
Relação das Pessoas que têm exercício na Real Fábrica dos Vidros no último dia do mês de Outubro de 1744
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Portugueses criados na Fábrica que já trabalham
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No vidro branco
João Roiz
Inácio Henriques
José Francisco
José Pereira Guerra
Paulo de Oliveira
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Aprendizes
Manuel Roiz Monge
Luís de Sousa
Tomás Joaquim
Joaquim Vieira
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Compositores
Manuel Pereira Clamas
Domingos Gonçalvez Compositores
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Calcinadores
Manuel dos Reis
José Gonçalves Calcinadores
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Porteiro da Fabrica
Manuel Gonçalves
___________________________________________________
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Polidor
Caetano da Silva
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Empalhador
António Henriques
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Atiçadores
Francisco Roiz
Manuel Roiz Atiçadores
Manuel Gago
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Ferreiros
José da Silva
Gabriel Francisco
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Moleiros
António de Oliveira
Joaquim de Gouveia Moleiros
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Pedreiros
Joaquim Pedro
António dos Santos
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Oleiro
António Gil
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Carreiro
Lourenço Carvalho
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Além destes vinte e sete portugueses se ocupam muitos de jornal em rachar lenhas, escolher vidros, peneirar materiais e muitos outros ministérios das oficinas.
Há mais oito odiciais estrangeiros de vidro branco, seis oficiais estrangeiros de vidraças, e cinco aprendizes. "
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Com este apontamento, termina a transcrição desta "Exposição", que poderia, ainda hoje, servir de "estudo de caso" e reflexão para diversos examplos da indústria nacional.
Recorda-se o aviso inicial de se ter modernizado a grafia pelo que, para transcrição rigorosa do texto "como é" devem ser consultadas as mencionadas fonte. Levou-se esta "modernização" a vários nomes pessoais , mas manteve-se (s.e.o) a pontuação, ainda que discutível, e - onde estavam - as iniciais maiúsculas.

terça-feira, 23 de maio de 2006

Duas citações sobre o crime político

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Da secção 1.8 (pags. 177 a 179) do "Direito Penal", apontamentos policopiados das aulas Professora Doutora Teresa Pizarro Beleza, 1º volume, 2ª edição, edição da A.A.F.D.L. , Lisboa, 1984, extrairam-se, de entre outras, as duas seguintes citações, de reflexão sempre oportuna:
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"O estado intervém na luta de classes a favor da classe dominante e contra o proletariado e seus aliados. [...] Uma das formas dessa intervenção estadual é a estigmatização de opositores políticos da burguesia como "criminosos". Estigmatizar opositores políticos como "criminosos comuns" é negar-lhes ideologicamente o carácter e os objectivos políticos, castigá-los como bandidos e aventureiros. O efeito de tais intervenções ideológico-repressivas, se bem sucedidas, é dar ao movimento político um carácter pré-político."
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HIRST, P. R., Marx and Engels on Law, Crime and Morality
in TAYLOR, WALTER e YOUNG (edits.), "Critical Criminology",
Routledge, Londres, 1975: 220.
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"Falar de direito criminal político é de facto uma tautologia, pois qual é o direito criminal, qual é a lei penal que não é política, que não é a expressão da definição social vigente de crime?"
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COBLER, S., "Law, Order and Politics
in West Germany", Penguin-Harmonds Worth, 1978: 72
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[Sugestão do bloguista para uma (eventual) prova de Direito Penal I: enumerem-se as diferenças !]



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Exposição sobre o descalabro da Real Fábrica de Vidros de Coina (10/11)

(continuação de 22/5)
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E assim não será novidade que, depois de se ter visto que Sua Magestade, quando mandou contratar a fábrica com João Butler, lhe fez uma consignação de dez mil cruzados cada ano no rendimento da Alfândega para pagamento de mais de sessenta mil cruzados que se estavam devendo procedidos dos ministérios da laboração nos anos precedentes ; e que o dito João Butler consumiu enquanto administrou o cabedal das entradas para a Sociedadeque passou de sessenta mil cruzados, e além disso as grandes somas em que os seus sócios se empenharam , e por fim perdeu também desesperadamente a vida; e que João Poutz, entrando na Administração, depois de a exercitar mais de três anos se retirou impensadamente, falto de crédito: Haja alguns apaixonados, ou inclinados que repugnem a possibilidade da subsistência da fábrica no Reino e não dêem crédito ao melhoramento em que pela disposição e governo da presente Administração se tem conservado, e espera adiantar de sorte que floresça, e desempenhe o conceito, e agrado de Sua Magestade quando dispôs a sua erecção.
Não haverá quem contradiga serem as fábricas úteis nos reinos, posto que neste tenham havido vozes contra a nossa fábrica pelos motivos que ficam expendidos, e se depois que em Portugal se frequentarão vidros estrangeiros decaíram, e se extinguiram as fábricas que havia na vila da Moita e outras partes, em que se faziam vidros para o uso e serviço dos Povos e em que se ocupavam as gentes que as faziam laborar, fica infalível que a subsistência da nossa fábrica não só fará reviver as ocupações das gentes com que as antigas laboravam, mas as adiantará nos exercícios de fazer vidros, e ficará no Reino aquele cabedal que pelas vendas dos vidros estrangeiros dele necessariamente se extraía, sem que se possa considerar prejuízo pela falta de pagamento dos direitos que têm os vidros de fora, porque esses mesmos direitos eram tirados do Reino no maior preço, porque nele se vendiam os vidros, além das despesas dos fretes dos Navios que os transportavam para este Reino, porque o próprio cabedal das fábricas estrangeiras sempre pelo Comércio torna para elas com os lucros da negociação, ileso de todas as despesas.
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(continua)
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segunda-feira, 22 de maio de 2006

Nessie

Já agora, não haverá também no Loch Lomond?

(ou Lommond? Ou de ambas as formas?)

Exposição sobre o descalabro da Real Fábrica de Vidros de Coina (9/11)

(continuação de 21/5)
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Pois é certo que na presenta Administração se não tira lenha alguma das vizinhanças de Lisboa, nem pode haver quem com verdade afirme o contrário, porque para os consumos da fábrica se tomou o governo de comprar as lenhas necessárias em partes mui distantes adonde abundam, e vêm transportadas de Salir do Porto, de Aveiro, de S.Martinho, e de Alcarcere nas embarcações que as conduzem pela foz. Quanto aos materiais, também é certo que os Caixas, e Administrador presentes se acham na certeza de fazerem as barrilhas de que já têm experiências, sendo este adiantamento em utilidade pública do Reino e da fábrica, por ficar independentes das que costumavam tirar-se dos Reinos estrangeiros, e a respeito dos mestres se estão criando aprendizes na mesma Fábrica, dos quais alguns já são oficiais, e se espera com a continuação se aperfeiçoem de sorte que fique a Fábrica independente de fabricantes estrangeiros, vistto como o segredo das composições está nas mesmas Pessoas que a governam. E também está desvanecida a falta de vidros que havia, porque no tempo presente se surtem com os da fábrica quinze estancos em Lisboa, e todo este Reino pelas suas Comarcas divididas em ramos, e se tem expedido várias carregações para os Brazis, como tudo testifica a publicidade, e o livro que serve na Superintendência em que se lançam as obrigações dos Estanqueiros e dos Administradores das comarcas. E suposto de três anos a esta parte se tenham experimentado infelicidades, porque por duas vezes houve incêndios na fábrica em Coina, e se perderam no mar alguns navios que vinham com carvão de pedra, além de outras contingências e impedimentos na laboração dos fornos da mesma fábrica, sempre tem havido vidros para os precisos consumos, e ao presente se fazem de melhor bondade que de antes, pelas novas matérias que se tem descoberto, e nova construção de fornos, e oficinas que se tem disposto, tudo com despesa notável.
O que bem se verifica nas vidraças das últimas laborações, as quais com evidência desempenham a verdade do referido, por serem de qualidade que alguns dos vidraceiros sem repugnância as gastam, quando antes eram todos os maiores proclamadores contra a fábrica, e não se faz atendível o clamor que respeita aos preços, porque nas condições do Contrato se acha acautelada toda a exorbitância pela taxa que têm os vidros na Pauta, que se não deve exceder, por ser penal a sua transgressão.
Nesta crise se acha a fábrica ao presente, e se ainda contra o referido se argúi, serão efeitos de alguma paixão perturbadora da utilidade pública do Reino e do soberano agrado de Sua Magestade, que bem se tem manifestado noa grandes desembolsos da Sua Real Fazenda para a erecção desta fábrica, e no disvelo com que se priocuraram os melhores mestres para a sua laboração; ou também será inclinação mais íntima a favor das fábricas estrangeiras, quando não seja aversão própria contra a presente Administração, pois sucede haver ânimos que não podem tolerar os acertos de uns contra a opinião de outros.
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(continua)

domingo, 21 de maio de 2006

Hi, men!

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Pasmadinho fico eu com a reportagem assinada por Sónia Morais Santos e intitulada "Em busca da virgindade perdida" que o "Diário de Notícias" de hoje publica, com foros de chamada à primeira página!
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A tempo: Vou já reler o "Honra e Vergonha na Sociedade Mediterrânica", edição da FCG (antes que definitivamente se esgote, ao que me consta. Ou vamos, também aqui, para uma 2ª edição?).
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Exposição sobre o descalabro da Real Fábrica de Vidros de Coina (8/11)

(continuação de 20/5)
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Estes efeitos, procedidos das referidas causas que se ignoravam, foram o principal motivo da decadência da fábrica, e a origem dos clamores contra ela, e contra os vidros, a que se uniram também as vozes daquelas Pessoas interessadas e correspondentes com as fábricas estrangeiras. E como estas desordens sucedidas no tempo em que administrou João Butler não foram conhecidas, nem examinadas por João Poutz, que lhe sucedeu na Administração, antes entrou variando no governo da laboração, e gastou tempo em experiências sem fruto, até que se retirou como fica dito. Se pôs em tão grande descrédito a fábrica, que se teve por certo o estar extinta de tal sorte, que tornaram as fábricas estrangeiras a fazer as suas exposições, e com efeito nos fins do ano de 1741 entrou uma grande quantidade de vidros estrangeiros que se despacharam na Alfândega de Lisboa. A tão lamentável conjuntura chegou o crédito da nossa fábrica.
Porém já a este tempo se achava em exercício pela presente Administração, e eram vistos os vidros que nela se obravam com diferença melhores que os do tempo de João Poutz, de que resultou sustentar-se a proibição assentada para não continuarem as introduções dos vidros de fóra.
E assim se tem conservado, melhorando de crédito pela medida do que na sua laboração vai mostrando a experiência, porque os Caixas, e Administrador que ao presente a governam têm com a eficácia das suas aplicações e desembolsos desvanecido as aparências dos clamores.
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(continua)

sábado, 20 de maio de 2006

"Linha Quatro", poema de Mário António

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No largo da Mutamba, às seis e meia
Carros para cima carros para baixo
Gente descendo gente subindo
Esperarei.

De olhar perdido naquela esquina
Onde ao cair da noite a manhã nasce
Quando tu surges
Esperarei.
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Irei p´rá bicha da linha quatro
Atrás de ti. (Nem o teu nome!)
Atrás de ti sem te falar
Só a querer-te.
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(Gente operária na nossa frente
Rosto cansado. Gente operária
Braços caídos. Sonhos nos olhos.
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Na linha quatro eles se encontram
Zito e Domingas. Todos os dias
Na linha quatro eles se encontram.
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No machimbombo da linha quatro
Se sentam juntos. As mãos nas mãos
Transmitem sonhos que se não dizem.)
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No machimbombo da linha quatro
Conto meus sonhos sem te falar.
Guardo palavras teço silêncios
Que mais nos unem.
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Guardo fracassos que não conheces
Zito também. Olhos de cinza
Como Domingas
O que me ofereces!
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No machimbombo da linha quatro
Sigo a teu lado: Também na vida!
Também na vida subo a calçada
Também na vida!
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Não levo sonhos. A vida é esta!
Não levo sonhos. Tu a meu lado
Sigo contigo: Pra quê falar-te?
Pra quê sonhar?
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No machimbombo da linha quatro
Não vamos sós. Tu e Domingas
Gente que sofre gente que vive
Não vamos sós.
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Não vamos sós. Nem eu nem Zito
Também na vida. Gente que vive
Sonhos calados sonhos contidos
Não vamos sós.
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Também na vida! Também na vida!
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MÁRIO ANTÓNIO Fernandes de Oliveira.
Maquela do Zombo, 05/04/1934 - Lisboa, 07/02/1989
Estudos primários e liceais em Angola.
Licenciado em Ciências Sociais e Políticas pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas
e doutorado em literaturas africanas de língua portuguesa pela Universidade Nova de Lisboa.
Foi considerado dissidente pelo MPLA e menosprezado pelo regime angolano.
Sua obra foi, injustamente, relegada para segundo plano.
Morreu em Portugal em 1989, país onde morou desde 1963
[Funcionário que foi da Fundação Calouste Gulbenkian,
esta instituiu com seu nome um prémio literário
para autores africanos de língua portuguesa]

Fontes:
Poema: in ERVEDOSA, Carlos, "Roteiro da Literatura Angolana", União dos Escritores Angolanos, 4ª Edição (s/data), Luanda, p.90-92
Biografia: http://betogomes.sites.uol.com.br/MarioAntonio.htm#BIOGRAFIA, site acedido hoje.
Foto: Luanda, Largo da Mutamba, anos '60?

Exposição sobre o descalabro da Real Fábrica de Vidros de Coina (7/11)

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(continuação de 19/5)
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O mestre João Colnet a quem estava encaregada a classe das vidraças e espelhos, tomou diversa forma, e foi o mais infiel homem que teve a fábri a, e contrato dela, porque sendo perito na arte de fazer vidros, era astucioso , e quiz também ser sócio no Contrato, e persuadiu aos interessados o admitissem, oferecendo-se a pagar juros do dinheiro para fazer a sua entrada na Caixa da sociedade, e com efeito assim o conseguiu, ficando como sócio isento de desconfianças, e com esta segurança, e com as faculdades de mestre, teve quase toda a disposição, e governo da fábrica no seu arbítrio, e os interessados davam crédito a todas as suas razões, e andavam confusos pela indústria deste mestre que estava vencendo soldos mortos sem trabalhar a classe que lhe estava encarregada, valendo-se para isso de que lhes faltavam alguns ministérios para melhor laboração. E inculcando economia para a diminuição de despesas, propôs, e persuadiu aos seus sócios e interessados na fábrica que se fizesse um novo forno grande, em que ao mesmo tempo, e com o mesmo fogo se obrassem espelhos, vidraças e vidro branco cristalino, porém, tanto que o forno se fez, fugiu deixando a fábrica e aos seus sócios impensadamente, sendo certo, como depois mostrou a experiência, que naquele forno era impossível haver as operações que ele propôs, pela diversidade de graus de calor de que dependem as diversas matérias de que se fazem uns ou outros vidros.
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(continua)

sexta-feira, 19 de maio de 2006

A descoberta da roda

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Título de primeira página no "Público" de hoje
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"NO DIA EM QUE COMEÇA MAIS UM CONGRESSO
DO PSD O PÚBLICO OUVIU INVESTIGADORES
SOBRE A CRISE DO CONFRONTO IDEOLÓGICO
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A economia matou
a política e não há
oposição."
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Só a política?

Exposição sobre o descalabro da Real Fábrica de Vidros de Coina (6/11)

(continuação de 18/5)
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E suposto pelos referidos efeitos se não advertisse nem conhecesse a oposição, sempre se deu providência de remédio para não continuarem os excessos das expedições, porque reconhecendo-se que para em Portugal subsistir a fábrica se deviam proibir os vidros estrangeiros, se assentou em que fossem proibidos; e essa foi uma das condições do contrato que se fez com João Butler, e expedindo-se ordens a todas as Alfândegas para se não admitirem, nem darem despachos a vidros estrangeiros (exceptuados os espelhos, frascos e garrafas de vidro verde grosso) se deram seis meses para consumo dos que haviam entrado; e prorrogando.se esse tempo, se achou depois tão grande quantidade de vidros estrangeiros em Lisboa, que pertencendo o contratador que seus donos os tornassem a transportar para fora do Reino, se valerem da Soberana piedade de Sua Magestade e conseguiram que a mesma fábrica lhos comprasse, o que assim se observou pela intervenção do conselheiro Diogo de Mendonça Corte Real, que foi o Ministro a quem Sua Magestade cometeu essa intendência, e pelos seus avisos e disposições foram pagos pelo contrato da fábrica na soma de mais de quinze mil cruzados, tão grande era a quantidade dos vidros, que ainda existiam no ano de 1736, havendo já mais de quatro anos que o contrato corria, e isto além de outras grossas importâncias que os mesmos interessados nos vidros estrangeiros tinham passado a pessoas particulares e a conventos, tudo em decadência da Fábrica.
Outro efeito das paixões, mais perniciosos e mais oculto, foi a corrupção dos mestres compositores, que eram estrangeiros criados nas Fábricas estrangeiras, porque um deles chamado Miguel Viziteli que tinha a seu cargo a composição do vidro branco cristalino, logo depois de contratada a laboração da fábrica foi variando as composições de tal sorte, que se em uma semana era o vidro bom, em outras era ruim por diferentes modos nascidos da variedade da composição que sempre se fez em segredo, e foi este engano durando tempos, atribuindo-se à ruindade do vidro ao que o mestre dizia, até que depois de passados alguns anos o despediu João Poutz quando entrou na Administração da Fábrica.
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(continua)

quinta-feira, 18 de maio de 2006

O adeus (espero que transitório) a um "blog"

O "Maniasfilosoficoculturais" interrompeu as postagens. Removendo-o do "link" do "Sai-te-daqui" eu estou tentado a dizer precisamente o contrário, ou seja: "não saias, nunca saias!" - e isto dada a grande qualidade a que nos havia habituado. Pode ser que regresse. Espero bem que sim! Daqui um abração e, para tal retorno, um pedido que é este.

Exposição sobre o descalabro da Real Fábrica de Vidros de Coina (5/11)

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(continuação de 17/5)
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Na certeza da geral aceitação com que a fábrica administrada pela fazenda de Sua Magestade laborava neste reino, se esperava que as fábricas estrangeiras suspendessem as expedições dos seus vidros para Portugal; porque naturalmente não permite a prudemte economia do Comércio que este se exercite nos géneros ou manufatcuras de que se não carece.
Porém esta bem fundada esperança se desvanesceu, e pelo contrario foram mais avultadas e em maior frequência as remessas dos vidros estrangeiros que pelo Comércio se introduziam em Portugal, e se moderaram os preços deles para as suas vendas; e isto que pareciam acidentes do negocio porque a abundância diminui o preço, eram efeitos das paixões ocultas, para que vendo-se este Reino com vidros estrangeiros bons e baratos, se tivesse a nova Fábrica por supérflua, e ainda por perniciosa à vista de abundarem em Lisboa os vidros por preços mais acomodados que a nossa fabrica os podia fornecer.
Sem se advertir que tanto a maior abundência de vidros estrangeiros (laborando a nossa fábrica) como a moderação dos preços eram máximas de negociantes neste género, para depois de passados alguns anos ficarem, pela extinção da nossa fábrica, senhores de todo o comércio dele e de o venderem então a seu arbítrio, recuperando os lucros que para se introduzirem e senhorearem deste negócio tinham cedido a Portugal, por uma política oculta de que não faltam exemplos que se omitem para fugir da extensão.

(continua)

A "corrida" ao volfrâmio em Pine Creek

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Não, não foi só cá! Um registo histórico de um "rush" anterior ao volfrâmio (ou tungsténio, se preferirem...) levar-me-ia a Pine Creek, no contraforte californiano das Rochosas. Há uma obra sobre o assunto, mas está esgotada (fica, acima, a gravura da capa!). Vejamos... Afinal não é assim tão diferente... E eles nem sequer têm "castanhas de ovos"!

quarta-feira, 17 de maio de 2006

Exposição sobre o descalabro da Real Fábrica de Vidros de Coina (4/11)

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(continuação de 16/5)
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Porquanto é certo que antes de contratada a Fábrica, correndo a laboração a conta da Real fazenda, eram os vidros de tão boa qualidade e feitios, que mereceram o agrado geral de todas as Pessoas que os viram, e logo depois de contratada a fábrica com João Butler principiou a correr outro influxo porque os vidros se faziam de mais inferior qualidade, sendo os mestres e os fabricantes os mesmos, e pouco a pouco foi decaindo a laboração, de sorte, que conhecidamente parecia estímulo o que principiou agrado, e eram frequentes os clamores contra a fábrica e contra os vidros.
Contra a fábrica, porque não dava vidros bastantes para o uso das gentes, dependia de que viessem de fora os mestres e materiais, e destruía as lenhas nos seus consumos em prejuízo grave dos moradores de Lisboa.
Contra os vidros, por serem de inferior qualidade, poucos, caros, e de ruim feitio; e também o ofício dos vidraceiros proclamava contra a Fabrica por lhe faltarem os vidros precisos para os menesteres da sua subsistência, e surtimentos das suas lógeas.
Todos os referidos clamores eram fundados, porque não há dúvida em que no tempo da administração pela fazenda Real se cortavam nos pinhais vizinhos as lenhas que se gastavam na fábrica, e isto mesmo se praticou no princípio do Contrato com João Butler, enquanto se não usou do carvão de pedra, porque depois era muito moderado o consumo de lenhas. Também não há dúvida em que os mestres fabricantes eram estrangeiros, o que precisamente devia ser, pois em Portugal os não havia, e como estavam criados com os materiais das fábricas estrangeiras, naturalmente pediam, e necessariamente se lhe davam, aqueles mesmos materiais com que nas fábricas estrangeiras se laborava. Também concorreu na inferioridade nos vidros que se experimentou como fica referido, a que se seguiu a decadência da fábrica por espaços, o consumo de tão considerável cabedal que nela meteram os interessados, a desesperação do primeiro contratador na sua morte, e a impensada quebra, e falta de crédito de João Poutz que lhe sucedeu na administração.
Mas estas desordens, de que naquele tempo se ignoravam os princípios, procederam de oposições apaixonadas e ocultas que agora pelos efeitos se manifestam com a experiência, porque sabendo-se que em Portugal estava por ordem de Sua Magestade erecta uma fábrica em que se faziam vidros de excelente bondade e tinha os melhores mestres fabricantes que o desvelo descobriu na Europa; recearam as Fábricas estrangeiras perder a saída daqueles vidros que costumavam expedir para os consumos deste Reino, e Conquistas, e assim pela conveniência própria, e com paixão oculta, recorreram aos meios a que as ideias chegaram para por si mesma decair a nossa fábrica, e se aumentarem as estrangeiras, que este era o melhor modo de evadirem os seus incómodos; e estas paixões opostas contra a nossa fábrica foram o primeiro móvel da sua decadência, e concorreram para a maior parte dos contratempos que tem padecido.
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(continua)

terça-feira, 16 de maio de 2006

Exposição sobre o descalabro da Real Fábrica de Vidros de Coina (3/11)

(continuação de 15/5)

Por um despacho do Conselho da fazenda de 10 de Dezembro de 1737, foi encarregada a João Poutz a Administração da dita fábrica para a fazer laborar, quanto se decidiam as dúvidas e pleitos entre os sócios interessados nela, e querendo o dito João Poutz endireitar a laboração e o governo da Fábrica, começou a variar as formas, fez várias experiências, mas não acertou os meios nem os fins que eram precisos, até que passados mais de três anos se retirou falto de crédito impensadamente, deixando a Fábrica ao desamparo no ano de 1741, - de que bem se pode inferir o estado em que ficou a Fábrica quando o administrador dela a desamparou retirando-se falto de crédito, e tanto que seus credores assinaram um compromisso em que lhe perdoaram metade do que lhes devia.
A este desamparo e nesta decadência da Fábrica acudiu João Beare como quem nela tinha o maior interesse, pois desde o princípio do contrato era sócio do contratador e tinha entrado com o seu cabedal para a caixa, e além da sua entrada estava empenhado com dinheiros de empréstimo, e a juros, que excediam a soma de quarenta mil cruzados, para cujo pagamento por escritura do primeiro de Outubro de 1735 lhe tinham os sócios consignados quatro mil cruzados cada ano na mão do dito Miguel Kelly, porque com essa condição lhe foi cedida a classe dos espelhos, vidraças e vidro verde; e além deste interesse tinha tmbém a parte de João Colnet sócio, por haver dela feito rematação para seu pagamento por Sentença que contra ele alcançou, pelo dinheiro que lhe havia emprestado para entrar na mesma sociedade, motivos assaz bastantes para se empenhar a que a fábrica de todo se não extinguisse no referido desamparo do Administrador falido e ausente.
E sendo-lhe com efeito encarregada a administração por despacho do Conselho da fazenda de 20 de Fevereiro de 1741, se valeu de Guilherme Mauman, e de Francisco Pereira Silva, para lhe assistirem com dinheiros, e para disporem o governo da laboração, a fim de ser a fábrica administrada no melhor modo que fosse possível; e tem mostrado a experiência neste pouco tempo da actual administração, que a maior parte dos contratempos que a Fábrica padeceu e o total princípio da sua decadência procedeu de causas que se não imaginaram.
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(continua)

segunda-feira, 15 de maio de 2006

General Humberto Delgado

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Brogueira,Torres Novas,15/5/1906 - estrada Badajoz/Olivençaª, 13/2/1965

"Ter-nos-ia permitido ganhar tempos, vidas e razões"

(no centenário do nascimento)

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ª assassinado pela PIDE

Exposição sobre o descalabro da Real Fábrica de Vidros de Coina (2/11)

(continuação de 14/5)
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Entrou o dito João Butler a governar a fábrica e foi esta decaindo por espaços, sem se perceber o motivo por que se via serem os vidros mais inferiores que de antes sem se diminuirem as despesas nem variarem as formas com que Sua Magestade a sustentava, e não se examinaram as causas porque João Butler e seus sócios ignoravam os princípios da arte e não tinham experiência da laboração, e foi este contratempo de grande pendor, porque não só fez consumir o cabedal com que os sócios entraram para o contrato , mas também outro bem considerável em que se empenharam.
A este mal se seguiu o de entrarem os sócios em desconfianças, e foi o mesmo que armarem entre si uma guerra contra a fábrica, porque sem indagarem os motivos e princípios dos danos que experimentavam, erravam os meios em que vacilavam para evitar a ruína; e parecendo-lhes que dividindo a fábrica seria mais económico o governo, fizeram cessão e largaram por um contrato a Miguel Kelly a laboração dos espelhos, vidraças e vidro verde, e ficaram só com a laboração do vidro branco; e esta divisão da dita Fábrica foi confirmada por Alvará de 24 de Outubro de 1735 = assinado pela Real mão.
Depois que se dividiu a laboração da fábrica, viram os sócios de João Butler que nem ainda para a classe dos vidros brancos com que ficaram tinham meios, termos em que para de todo não ficarem arruinados, largaram ao mesmo Miguel Kelly por outra cessão tambem a dita classe dos vidros brancos, de que se celebrou escritura no primeiro de Fevereiro de 1736; e logo o dito Miguel Kelly em 6 do mesmo mês e ano por outra escritura fez nova sociedade sobre o contrato de toda a fábrica, porém como o contratador João Butler não tinha convindo, nem foi da sua contentação que se largasse a classe dos vidros brancos ao dito Miguel Kelly, entrou em contendas com os seus sócios animado de um António Gomes Figuerô que naquele tempo estava nesta cidade com casa de homem de negócio, e recorrendo a Sua Magestade, alcançou um Decreto pelo qual se cometeu a um dos Juízes dos feitos da Fazenda a decisão das dúvidas entre o dito João Butler com os seus sócios sobre a dita fábrica, e nascendo desta contenda outras, concorriam todas em dano da mesma fábrica, por não haver certeza de quem haviam ser os verdadeiros interessados na sua laboração.
Durou a contenda, e depois de se julgarem nulas as escrituras feitas sobre a classe dos vidros brancos com Miguel Kelly por sentença proferida em 8 de Janeiro de 1737, em que se mandou entregar ao contratador a administração e uso da fábrica, nasceram sobre a liquidação dos vidros que havia, e sobre a entrega das chaves maiores demandas, as quais ficaram supitas pela morte do dito contratador, posto que já em sua vida não tinha interesse na fábrica, porque Tomás Cornel seu credor lha tinha arrematado em praça por execução de sentença.
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(continua)

domingo, 14 de maio de 2006

Mister Danger e o "Site Meter"

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"Mister Danger" é um gato negro, luzidio, malandro, que, através dos quintais vem, subrepticiamente, requestar a minha "Tora-Bora" - uma ainda-não-anciã mas entradota gata "tortoise-shell", felizmente "preparada" para poder ser sexualmente activa sem parir ninhadas sucessivas e multicolores, obrigando-me a colocar gatitos e gatitas bébés de irresistível laçarote e suficientemente miadores à porta de corações reconhecidamente não-empedernidos. Pois bem, o sabidão do "Mister Danger" sabe mesmo bem juntar o útil ao agradável. Conhece a minha gata, no sentido bíblico do verbo (e se não conhece é parvo!), e lança-se a seguir ao prazer da mesa, mamando a ração da sua querida. Namoros modernos, é o que é! Com a maior desfaçatez entra em casa, vai ao prato e gloriosamente pira-se logo que me vê! "Mister Danger" e disse!
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Mas eu não me refiro a esse. Refiro-me ao outro, ao cérebro-de-avelã que parece andar agora a coleccionar facturas discriminadas de telefones e telecomunicações, à procura da rolha. Num badalado incidente, atribuiu-se a esse mau hábito e à constatação de sms's despachados de minuto em minuto e sempre para o mesmo lado-de-lá a causa de vigorosamente litigada trampa familiar! Mas não é este o caso: o caso é que eu dei-me para pensar em como o gajo poderia gostar de vir ou de mandar um capangão ao meu sitesinho, tão transparente quanto sei lá o quê, e visitar o meu "Site Meter" totalmente franqueado ao bom povo que ele estava. Por culpa minha ou desmazelo meu, diga-se, que o sistema até tem suficientes protecções para quem as eleja. E não é que até havia amigos meus que iam lá todos os dias, ver se eu tinha encontrado o fantasma da Dona Marika Rökk em "A Mulher dos Meus Sonhos". Pois bem: fechou! cerrado! fermé! closed! geschlossen ou similar! E disse!
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É claro que esta atitude é meramente simbólica. Não há nem houve no mundo estado policial nem abelhudo com guita que querendo meter o nariz na vida dos cidadãos (desse ou doutro estado) não arranjasse maneira de o fazer. Com a globalização, os cartões de tudo e nada e com a troca de fichas e ficheiros estamos na glorificação do super-cuscanço e qualquer Grande Timoneiro, mesmo de opereta, acaba por saber o que não deve. Mas, de qualquer forma, um fechar de postigo sempre lhes dificultará mais a vida, aos Mister Danger deste mundo. Já me bastava, como referência, o cavalheiro que encontrei, anos atrás, no fundo da escada, a vasculhar os caixotes do lixo dos vizinhos! E era um hábito que se repetia de madrugada a madrugada, até eu deixar de pensar que "eram ratos"! E tinha-o eu por gajo sério! Porra!

Exposição sobre o descalabro da Real Fábrica de Vidros de Coina (1/11)

Na postagem anterior ficaram abertas e pendentes várias perguntas sobre o estado actual da indústria portuguesa. Há quem tenha escrito sobre isto mas, quanto a esses providenciais escritos, eu estou do lado da oralmente transmitida notícia duma famosa carta que o Professor Eng. Luís Almeida Alves, então subdirector das Fábricas da CUF no Barreiro (Agosto 1953 / Abril 1956), teria dirigido à Secção Técnica daquela empresa, em Lisboa, como resposta a uma "reprimenda" desta quanto a um considerado obeso orçamento para a reparação de uma chaminé: "Lemos a vossa carta à chaminé mas, como ela não a entendeu, acabou mesmo por cair!". Desde o tempo do Ericeira às venturas e desventuras de Sines, do sonho de um Eng. Ferreira Dias à benesse desgastada do cobre, da vontade todo-o-terreno de um Alfredo da Silva aos dramas do condicionamento (cujos arquivos se procuram!) que a indústria é a filha desamada deste mal regado "jardim da Europa" (ouvirei certamente dizer que "os cardos também se vendem"). O documento que vai tomar exagerado espaço neste blog tem uma data (1744) e é um exemplo do "e assim se fazem as cousas" por este ocidente europeu. Apresentado por Vasco Valente na sua obra "O Vidro em Portugal", Porto, Portucalense Editora, 1950, que foi onde eu o li pela primeira vez, é retomado por Jorge Custódio a pags. 274 a 280 da sua excelente obra "A Real Fábrica de Vidros de Coina [1719-1747] e o Vidro em Portugal nos Séculos XVII e XVIII", ed. IPPAR, Lisboa, 2002, de onde também se extraem as seguintes considerações introdutórias:
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Representação de John Beare (1744) ou [Exposição sobre as causas do descalabro da Real Fábrica de Coina]
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[ A "Representação" da Fábrica de Vidros de Coina ao Conselho da Fazenda é um importante documento inserto na Colecção Pombalina, Cod. 672, fls. 142-150, BN, Reservados. Aceitando, genericamente, a leitura apresentada por Vasco Valente e incluída in "O Vidro em Portugal", ob. cit, pp 122-133, fizemos o cotejamento com o manuscrito, procedendo à transcrição de acordo com o original. Mantivemos em subtítulo o título que aquele investigador lhe atribuiu]
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[Adenda do bloguista: Diversamente da preocupação de Jorge Custódio, acima demonstrada, far-se-á a transcrição, tanto quanto possível de acordo com a grafia actual. Para a grafia original recorrer à transcrição referida, daquele Autor]
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"Ilmo. Exmo. Sr.
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Pela frequência com que os Estrangeiros na liberdade do comércio forneciam este Reino de vidros para o uso das gentes, foram decaindo as fábricas que havia nas vilas de Salvaterra, Moita e outras, vindo a extinguir-se quase todas por serem os vidros estrangeiros de melhor qualidade e mais bem feitos que os Portugueses, sendo certo que a diferença de uns a outros procedia de não haver Mestres em Portugal, e do segredo na composição da matéria com que as fábricas estrangeiras laboravam.
Foi Sua Magestade servido ocorrer a este prejuizo de seus vassalos, e na certa ponderação de serem geralmente as fábricas em benefício público do Reino, pois se ocupam as gentes e giram nele os cabedais que pela introdução das manufacturas estrangeiras se extraem, ordenou por especial Decreto de 11 de Abril de 1714 a confirmação do contrato que se fez com João Palada para o estabelecimento de uma nova Fábrica de Vidros no Forte da Junqueira que para ela concedeu Sua Magestade com as condições de serem as despesas nos transportes dos fabricantes á custa da Real fazenda, de dar para a fábrica noventa carradas de lenha de pinho cada mês; de serem livres de todos os direitos assim os vidros, como os materiais para eles; e outras mais prerrogativas a favor da dita fábrica, encarregando a superintendência dela a um dos Vedores da Sua Real fazenda.
E suposto o dito João Palada não desempenhou o conceito que dele se fez, sempre ficou subsistindo no Real ânimo a erecção da Fábrica, e com efeito ordenou se estabelecesse na vila de Coina aonde ao presente se conserva (ainda que à custa de grandes desembolsos, pelos notáveis contratempos que tem padecido), e observando-se depois que os vidros da dita fábrica eram de excelente bondade, e que com eles se podiam prover os consumos do Reino, e fazer expedições para outros Reinos, se deu a laboração por tempo de doze anos a João Butler que por um contrato que se firmou no Conselho da Fazenda, e foi confirmado por Sua Magestade na esperança de florescer a fábrica nelhorando em todas as suas oficinas patra assim ficar perpetuada em Portugal; e para este efeito ordenou Sua Magestade a proibição de se introduzirem vidros estrangeiros, como fazenda de contrabando, e concedeu vários privilégios ao Contrato da dita Fábrica, sendo um deles a liberdade dos direitos assentada nas condições 23 e 26 do mesmo contrato.
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(continua)

sábado, 13 de maio de 2006

Empresas & empresas

Da pag. 10 da revista NS (Notícias Sábado) de hoje sai uma chamada "ilusão" ou "pergunta chata":
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"A EDP é a primeira empresa portuguesa (435º lugar) na lista das duas mil maiores companhias do mundo, organizada pela revista norte-americana "Forbes"; a segunda (457º) é o BCP; a terceira é a PT (512º). Pergunta chata: o que é que estas firmas produzem?"
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Pergunta ainda mais chata, já não da revista: "E as outras?"
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A tempo: do "Dicionário da Língua Portuguesa", 7ª Edição (1994), ed. Porto Editora, Porto, pag. 1301:
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"opar, v. tr. fazer inchar; tornar balofo; fazer intumescer (De etim. obsc.)"
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sexta-feira, 12 de maio de 2006

Prefácio a um dicionário esperantista de 1908

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Comprei desprevenidamente este dicionário Francês-Esperanto e Esperanto-Francês, verdadeiramente de bolso, numa bancada de alfarrabista do Príncipe Real. Pequeno, já gasto, apresentando-se como listagem de radicais (donde mais "Radikaro" que "Vortaro"), recorda ainda o tempo em que uma incursão no Zubrowka estava muito além do experimentar um "luxury vodka of multiply rectified spirits infused with Bison grass native to the Bialowieza forest, home of the european bison; W. Somerset Maugham said that drinking Zubrovka is as delightful as listening to music in the moonlight" como se diz em inglês no polonês local próprio, que é o
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Mas adiante! "Le temps passe" (e com ele nós próprios e todos os Zubrowkas deste mundo que, permanecendo para sempre na memória com os atributos que tiveram e que têm, ganham o gosto-valor do passado que começam a ser). Descobri depois, com alguma frustação de pesquisador sem objecto, que o(s) anterior(es) proprietário(s) do actualmente meu "Radikaro" nada tinham deixado da sua presença salvo um carimbo, mas ao menos este muito significativo: o carimbo redondo de "Shakespeare and Company -Sylvia Beach Whitman - Foundation - Kilometer Zero Paris", a tão lendária pequena e desarrumada livraria que fica perto do Petit Pont e por onde transitaram e certamente sentaram o trazeiro nos desfiados sofás todos os avatares das literaturas europeias e americanas passadas, presentes e futuras, deixando ou não um outro qualquer sinal da sua presença (também ali, tudo e todos importando, ninguém se importaria com isso). Pois por tal atributo, vejamos, o meu "Radikaro", comprado que foi por tuta e meia, aquiriu valor, o que é um facto raro nos hoje-em-dia em que vivemos, entendam estes ou não Esperanto, e mesmo constituinte de um potencial risco, dada a tendência recente em considerar tributável qualquer virtualidade escondida.
Reproduzo agora o título da 1ª página do livro:
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"Dictionnaire
Français - Esperanto
et
Esperanto - Français
Radikaro
Précédé d'un
Résummé de la Grammaire
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Préface
de
Th. Cart
Professeur agrégé de l'Université
Membre du "Lingva Komitato"
- - - «» - - -
Paris
Presa Esperantista Societo
33, Rue Lacèpède,33
1908
--
Tous droits réservés"
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e, deixando lá-mais-pró-Verão a súmula gramatical das páginas xiii a xvii (pois é, basta ao Esperanto poder aprender-se em 5 páginas aproximadamente A6), escrita por C. Dieterlen, volto-me agora para o tal Prefácio, que testemunha o período neonatal de explosivo sucesso da língua universal, quando se poderia pensar que esta saberia ultrapassar fronteiras, divulgar culturas, estreitar amizades e vencer as reservas furiosas que lhe votavam os detentores de uma hegemonia linguística (ao tempo os Francófonos... ainda sem poderem adivinhar o que lhes iria suceder uns cinquenta aninhos depois já que "quem com ferro mata... com ferro morre!") Aí vamos, mas com um final aviso: o texto de pag. iii a ix do meu "Vortaro" (= dicionário) exige uma leitura adequada à época em que foi escrito. Não se pense pois na actualidade de algumas afirmações, ainda que se possa acreditar na permanência de muitas outras:
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"PREFÁCIO
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"Ni fosu nian sulkon!
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Os autores e colaboradores deste Dicionário pediram-me para escrever o seu prefácio. Faço-o da melhor vontade, até porque isso vem dar-me uma excelente oportunidade para expor, a propósito do Esperanto, alguma ideias que me parecem oportunas e que não são mais do que as tantas vezes já expressas pelo próprio Dr. Zamenhof.
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Uma ideia que hoje frequentemente assalta um certo número de iniciados cultos - para quem uma lingua só existe a partir do dia em que começam a aprendê-la - refere-se à consideração do Esperanto como uma língua que, ao sabor das suas próprias preocupações teóricas, lhes desse o direito de sistematicamente a poderem modificar, e esse sentimento surge quase fatal nos que dedicaram especial atenção à questão duma língua internacional, seja porque inventaram uma, seja porque durante muito tempo estudaram as soluções propostas.
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Contudo, provenha a ideia deles ou de outros, quem assim pensa labora num grave erro.
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O Esperanto, ao contrário do que esses imaginam, não é "uma língua para fazer", pois é "uma língua já feita" - e eu não digo "acabada" porque nenhuma língua o é, e esta menos até que qualquer outra. Não é um "projecto de língua", mas sim uma língua viva, empregue por milhares de homens que a lêem, a escrevem, a falam e que só conseguem relacionar-se através dela, que consideram que ela lhes pertence e que não dão a ninguém o direito, nem actualmente reconhecem o poder, de dela dispor a seu talante.
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Procurar saber desde quando o Esperanto é usado torna-se uma questão secundária, pois que o valor de um instrumento de comunicação, como é uma língua, não depende minimamente da respectiva antiguidade e porque o Esperanto se mostra, sem contestação, bem superior a muitos dialectos várias vezes seculares.
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Pelo facto de estar vivo, o Esperanto é tão lógico como qualquer vivente pode ser. Não se lhe deve pedir mais que isso. Ao querer fechá-lo nos quadros rígidos duma lógica rigorosa -- apenas acessível a uma minoria "bem pensante" -- ir-se-á criar uma língua possivelmente útil para um elenco limitado de sábios e pouco mais, mas que se mostrará certamente morta para os cidadãos de instrução média de muitas nações, aos quais foi especialmente destinada [1].
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Pelo facto de estar vivo, o Esperanto evoluirá. Evoluirá como evoluem todas as línguas vivas e do mesmo modo que estas, até possivelmente de forma mais rápida.
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Receia-se que essa evolução livre e natural permita prever um grande perigo para o Esperanto, através de uma crescente complicação e de uma anarquia futura.
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Tal risco é puramente imaginário. Não há qualquer razão para admitir que, ao contrário das outras línguas, o Esperanto se vá complicar [2], desde que se mantenha fiel aos seus princípios essenciais que são os estabelecidos na obra "Fundamento de Esperanto". A necessidade de se manter entendido pelo conjunto dos Esperantistas é uma outra garantia contra fantasias individuais e "deformadoras". Em última instância, a Comissão de Linguística ("Lingva Komitato"), depois de algumas hesitações desculpáveis porque íniciais, cumprirá cada vez melhor as suas funções que são, por um lado, conservar intactos os princípios em que a língua se baseia e, por outro lado, enriquecê-la, consagrando-lhe, após rigoroso controlo, os contributos fornecidos, no domínio da Gramática e do Vocabulário, por um conjunto cada vez mais importante de obras literárias, científicas e lexicográficas [3].
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O presente Dicionário, introdução necessária ao "Grande Dicionário" publicado pela mesma Editora, é um dos trabalhos lexicográficos que se oferecem ao estudo do "Lingva Komitato".
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Os autores esforçaram-se por permanecer muito sóbrios quanto á adição de novos radicais; consideram, de facto, que uma lingua internacional não deve aspirar a traduzir toda e qualquer feição de cada uma das nossas línguas nacionais através de radicais especiais. Um dos méritos do Esperanto é que, mesmo com um vocabulário restrito, poderá, através de afixos e de composição, exprimir qualquer ideia com precisão suficiente. Não se deve inclusivamente esquecer que a possibilidade duma certa imprecisão é uma condição própria de qualqer língua falada: alguns sufixos de sentido muito geral e vago ("a^jo"," ilo"), que foram erradamente criticados, constituíram verdadeiros elementos de sucesso. São vantagens sérias que se devem conservar no Esperanto, mesmo que ao preço de alguns sacrifícios [4].
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Talvez se possam criticar, nesta obra, vários erros de tradução. Tomem-se como inevitáveis, sobretudo num primeiro trabalho. Não os encontramos também, todos os dias, nos nossos dicionários de alemão ou de inglês, em que são menos desculpáveis?
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Poderá surpreender uma certa falta de homogeneidade entre as diferentes partes. Infelizmente esse é um defeito inerente a todos os trabalhos realizados em colaboração quando não podem ser sujeitos a uma revisão, sempre tão trabalhosa que, pela sua natureza, leva a quase indefinidamente atrasar a apresentação da obra.
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Finalmente, notar-se-ão por certo, aqui e além, singularidades na disposição tipográfica, que se apresenta mais prática que sistemática. Essas singularidades, perceptíveis a quem leia o dicionário, passarão quase despercebidas para quem o consulte e que constiruirá uma larga maioria; compensam-se também pelas suas enormes vantagens e permitem apresentar uma quantidade consideravelmente maior de palavras sem que o preço de venda se torne muito elevado.
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Estamos convencidos, quanto a estas imperfeições, que serão desculpadas pelo mundo esperantista, que prefere usar o Esperanto ao gosto de o discutir: de facto não serão prejudiciais à propagação da língua, enquanto que a publicação do presente livro, preenchendo uma necessidade que se sentia de há muito, pode dar uma grande contribuição para a favorecer.
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Solicitamos, além disso, as amáveis observações dos críticos e dos Esperantistas em geral. Só progressivamente se pode atingir uma perfeição relativa. A colaboração do público estudioso torna-se aqui uma absoluta necessidade. Permitimo-nos esperar que não deixe de corresponder à nossa boa vontade e que, aprovando o nosso esforço, nos ajude a fazer sempre melhor.
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Este é o mais forte desejo dos autores e editores deste Dicionário.
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21 de Novembro de 1907
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Th. Cart
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[1] Um estudo muito interessante poderá incidir sobre os "ilogismos" comuns num grande número de línguas e que, por isso mesmo, não são linguisticamente "ilogismos". Porque o princípio do internacionalismo, condição essencial desta utilidade comum, prevalece sobre qualquer outro, o Esperanto não deve procurar rectificar essas situações (v. P. Fructier, Sintakso, Antaüparolo).
[2] Ver The British Esperantist, 1907, Agosto; Lingvo Internacia, 1907, pag.422.
[3] Apresentamos seguidamente, como formulações bem precisas, as sábias instruções do Dr. Zamenhof para orientar a evolução natural da língua:
1. Até à adopção oficial do Esperanto pelos governos, o único livro obrigatório e com autoridade absoluta é a obra intitulada "Fundamento de Esperanto" (Declaração de Bolonha).
2. Os avisos e deliberações do Lingva Komitato, presidido pelo Dr. Zamenhof, não têm carácter imperativo, mas devem ser tidos em séria consideração por todos os Esperantistas.
3. Porque o Esperanto é uma língua viva, nenhuma palavra, nenhuma construção poderá ser recomendada pelo "Lingvo Komitato" sem que o seu uso fosse previamente testado em termos de utilidade e valor prático. Qualquer forma de proceder que desta diferisse seria revolucionária e, porque se trata de uma língua que vive, linguisticamente não-científica.
É preciso ainda recordar que o que está aqui em vista é a língua comum e a língua literária: o vocabulário técnico tem as suas regras próprias e será sempre, em alto grau, artificial, convencional e susceptível de revisão.
[4] Ver, a propósito do sufixo "a^jo", a nota tão sugestiva e justa do Dr.Zamenhof na "Revuo", 1907, p.374. "Se convém permanecer reservado na adição de radicais e de sufixos, também não haverá melhores razões para, como foi proposto, introduzir novas preposições sob o pretexto de que certas locuções francesas são difíceis de se exprimir em Esperanto: procurar uma outra forma é sempre possível, senão fácil."
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Tradução (algo livre) do "blogisto"
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As notas [1] e [2] estão, como (1) e (2), na pag v do original;
a nota [3] é a nota (1) da pag. vi;
a nota [4] é a nota (1) da pag. vii
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"Ni fosu nian sulkon !" = Abramos o nosso trilho !

quinta-feira, 11 de maio de 2006

Nicolau Stepanovitch Gumilev (1886-1921)

A. Onde eu, muitos anos atrás, soube de um poeta russo chamado Nicolau Gumilev:
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[Deixando atrás de si a Catalunha derrotada da revolta de 1917, Victor Serge dirige-se a Paris para obter transporte para a Rússia, onde triunfara a revolução que depusera o Czar e onde se avizinhava a revolução de Outubro. É dessa passagem por Paris que ficou, entre outros, o apontamento em tempos recolhido e seguidamente transcrito:]
" [...]
Nas antecâmaras do Estado-Maior, travei conhecimento com um soldado russo de cerca de trinta anos, recentemente chegado da Transjordânia, onde tinha combatido no exército inglês. Como eu, ele tentava regressar por razões diferentes, e conseguiu-o antes de mim. Logo na nossa primeira conversa, definiu-se: «Sou tradicionalista, monárquico, imperialista, pan-eslavista. Tenho em mim a verdadeira natureza russa, tal qual a fez o cristianismo ortodoxo. Você também, você tem a autêntica natureza russa, mas no seu extremo oposto, do lado a anarquia expontânea, dos desencadeamentos de fúrias elementares, das crenças desordenadas... Eu amo tudo na Rússia, mesmo o que nela quero combater, aquilo que você representa...» Sobre estes assuntos, travamos nós, calcorreando a esplanada dos Inválidos, belas discussões. Ele era, pelo menos, exacto, corajoso no seu pensamento, intensamente apaixonado pela aventura e pelo combate - e de vez em quando recitava versos mágicos. Relativamente magro, de uma fealdade singular, de cara demasiado longa, boca e nariz fortes, fronte cónica, de olhos estranhos, azul-esverdeados - demasiado grandes - de peixe ou de ídolo oriental; e, precisamente, tinha uma afeição especial pelas figuras hieráticas da Assíria, com as quais acabávamos por lhe encontrar uma semelhança. Era um dos maiores poetas russos da nossa geração, já então célebre, Nicolau Stepanovitch Gumilev. Devíamos voltar a encontrar-nos várias vezes na Rússia, em campos opostos mas amigos. Em 1921, havia de lutar durante vários dias, em vão, para impedir que a Tchéka o fuzilasse.. Mas deste futuro próximo não tínhamos nenhuma presciência.
[...]"
Victor Serge, O Ofício de Revolucionário, Moraes Ed., Lisboa, 1968 [1951], p.74-75
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B. Uma rápida biografia de Nikolai Stepanovich Gumilev (1886-1921):
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Nicolau Stepanovich Gumilev foi um poeta russo que nasceu a 3 de Abril de 1886 [fez recentemente 120 anos] em Kronstadt, filho do médico naval S.Y. Gumilev. Em 1887, a família Gumilev mudou-se para Tsarkoie Selo, onde o jovem Nicolau iniciou os seus estudos na escola de Gurevich. Em 1900, a família Gumilev voltou a mudar-se, agora para a cidade de Tiflis, no Cáucaso, para robustecer a saúde das crianças. Nicolau frequentou a melhor escola da região, Tiflis 1. Foi aí que o seu primeiro poema publicado, intitulado "Pela floresta eu deixei as cidades", assinado "K.Gumilev", surgiu na revista "Tiflis Listok". Em 1903, a família Gumilev regressou a Tsarkoie Selo, ingressando Nicolau no 7º ano do Liceu Nikolaevsky daquela cidade. Foi então que Gumilev conheceu a sua futura mulher, A. Gorenko, que como poetisa haveria de ser conhecida sob o nome de "Anna Akhmatova".
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Concluído o liceu em Tsarkoie Selo, Gumilev viajou para Paris, onde estudou literatura francesa e arte na Sorbonne. Durante essa sua estadia, teve a oportunidade de publicar a primeira colectânea dos seus poemas, em 1905, sob o nome de "Caminho dos Conquistadores". Considerando essa obra um fracasso, Gumilev nunca a republicou. Em Paris, em 1907, Gumilev iniciou a publicação de uma revista literária quinzenal, intitulada "Sirius", em que publicou os seus próprios poemas sob vários pseudónimos ("Anatoly Grant", "K-o" e "K") bem como as poesias da jovem poetisa Anna Akhmatova. No princípio do verão de 1907, fez a sua primeira viagem a África. Em Janeiro de 1908 publicou o seu segundo livro, denominado "Cores Românticas", que dedicou a A. Gorenko.
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Em Agosto de 1908, Gumilev inscreveu-se na Escola de Direito de S.Petersburgo, mas nunca concluiria os seus estudos para jurista. Em Maio de 1911 apresentou o seu pedido de desistência dessa licenciatura, para prosseguir estudos no Departamento de Línguas Românicas e Germânicas da Faculdade de Filologia da Universidade de St. Petersburgo. Tornou-se então membro do Clube de Línguas Românicas e Germânicas. De Novembro de 1909 a Fevereiro de 1910, Gumilev viajou pela Abissímia, integrado numa expedição organizada pelo seu colega V. Radlovy. As suas experiências na Abissínia inspiraram os seus poemas "Mik" (1914) e "Canção Etíope". Ao todo, Gumilev fez três viagens à Abissínia. A segunda e a terceira viagens decorreram, respectivamente, de Setembro 1910 a Março 1911 e de Abril a Setembro de 1913. Na última destas viagens, Gumilev já participava como guia. As imagens e peças recolhidos durante essas suas viagens foram, mais tarde, doados ao Museu de Antropologia.
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No verão de 1910, Gumilev publicou a sua terceira colectânea de poemas, sob o título " Pérola". Dedicada a V. Bryusov, trouxe a Gumilev considerável fama. Em Agosto de 1911, foi criada a "Oficina do Poeta". Gumilev e Gorodetsky lideraram esse grupo, que publicou artigos em louvor do aparecimento de um novo movimento artístico, denominado "Acmeísmo". Também começaram a editar uma revista, "Giperborey", editada por Gumilev, Gorodetsky e Lozinsky. Em 1912, nova colectânea de poemas, agora sob a epígrafe "Céu Estranho". Nesta colectânea, Gumilev inseriu poemas seus bem como as suas traduções de obras de Teofil Gothe. No início de 1913, um grupo de estudantes de S.Petersburgo representou, num espectáculo amador, a sua peça "Don Juan no Egipto"- que estaria em cena no Teatro Trotski, em Abril desse mesmo ano.
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Em Agosto de 1914 começou a I Grande Guerra. Gumilev alistou-se voluntariamente e serviu no regimento de lanceiros da Guarda. Também serviu no regimento Gusarsky Alexandrisky, tendo recebido duas Cruzes Georgievsky. Algumas das suas histórias de guerra foram contadas em "Notas de Um Soldado de Cavalaria", publicadas no jornal diário "Birzhevy Vedomost" de fevreiro 1915 a janeiro de 1916 e numa colectânea de poemas epigrafada "Kolchan", em 1915.
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Quando da revolução de Outubro de 1917, Gumilev estava no estrangeiro, para onde havia sido designado em Maio daquele ano. Viveu em Londres e Paris, estudou literatura oriental, fez traduções e trabalhou no drama "A Tunica Desfeita". Em Abril de 1918 tegressou a Petrogrado. Na companhia de outros escritores conhecidos, como A. Blok, M. Lozinsky e K. Chukovsky, Gumilev começou a trabalhar na casa editora "Literatura Mundial" que tinha sido fundada por A. M. Gorky, em que Gumilev foi designado para chefiar o departamento de Literatura Francesa. Era também membro de uma comissão para a edição de poesias traduzidas. O próprio Gumilev tinha traduzido muitas obras poéticas. Nesse verão editou dois livros: "Fogueira" e "Pavilhão de Porcelana (Poesia Chinesa)". Em Novembro de 1918 o Instituto de Línguas Vivas iniciou as suas actividades e Gumilev foi convidado para aí proferir conferências sobre teoria e história poéticas. Começou também a ensinar no Instituro de História da Arte e noutras escolas literárias. Na primavera de 1920, Gumilev foi escolhido para membro da Comissão de Recepção do Departamento de Petrogrado da União de Escritores de Todas-as-Rússias. Mais tarde, já em 1921, foi seleccionado como chefe do departamento de Petrogrado da União de Poetas de Todas-as-Rússias. No verão de 1921 publicou duas novas colectâneas poéticas: "Marquise" e "Pilar de Fogo", esta dedicada à sua segunda mulher, A. N. Engelhardt. Em Agosto de 1921 a vida de Nicolau Gumilev terá um fim trágico - é executado pelo polícia política soviética sob a alegação de actividades conspirativas.
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tradução algo livre do texto publicado em www.PoemHunter.com
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C. Para ler, em tradução, algumas obras poéticas de Nicolau Gumilev:
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Começar por visitar o local:
e/0u, a seguir,

quarta-feira, 10 de maio de 2006

Centenário do nascimento de D. António Ferreira Gomes, Bispo do Porto

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10 de Maio de 1906: Nasce na freguesia de Milhundos, Penafiel.
28 de Maio de 1926: Golpe militar que impõe a Ditadura em Portugal, depois dos anos conturbados da 1ª República.
1948: É nomeado bispo de Portalegre.
1952: António Ferreira Gomes é nomeado bispo do Porto, depois de ter estado cinco anos a dirigir a diocese de Portalegre.
8 de Junho de 1958: Eleições presidenciais que opõem o general Humberto Delgado, pela oposição, ao almirante Américo Thomaz, pelo Regime. Este último venceu sob a acusação de fraude.
13 de Junho de 1958: D. António escreve a polémica carta ao primeiro ministro António de Oliveira Salazar, que de imediato começa a efectuar diligências para afastar o bispo incómodo.
2 de Dezembro de 1958: O bispo do Porto escreve uma segunda carta a Salazar, muito mais moderada que a primeira, no que parece uma tentativa de apaziguar os ânimos.
23 de Maio de 1959: Em carta dirigida à Conferência Episcopal e enviada a todos os bispos, D. António critica o silêncio dos colegas, não só relativamente à situação política e social do país como também em relação aos ataques que, por parte do Governo, ele vinha sofrendo.
24 de Julho de 1959: D. António sai do país e é impedido de regressar durante dez anos, período que durou o exílio imposto pela ditadura.
16 de Julho de 1968: Ao fim de já nove anos de exílio, D. António envia uma carta violenta ao Cardeal Cerejeira, patriarca de Lisboa, onde afirma que nunca se poderão entender, porque a visão de Igreja que defendem é muito diferente.
4 de Julho de 1969: Já com Marcelo Caetano no Governo, a substituir Salazar, D. António recebe permissão para regressar a Portugal e neste dia chega à diocese do Porto, retomando aí o seu lugar.
24 de Abril de 1974: Ano da revolução, que pôs fim à ditadura e implementou um regime democrático no país.
1982: Aos 75 anos, resigna ao cargo de bispo do Porto, o que é aceite pela Santa Sé.
1986: Já bispo emérito, escreve as "Cartas ao Papa", em forma de livro, onde aborda questões religiosas de grande melindre. A obra foi publicada pela Liv. Figueirinhas, no Porto, e teve uma 2ª edição em 1987. João Paulo II nunca responderia às questões levantadas.
13 de Abril de 1989: Morre, de madrugada, em Ermesinde, nos arredores do Porto.

Notas:
  • Foto de quadro a óleo e essencial da biografia extraídos, com a defida vénia, do portal da Fundação SPES, em http://www.fspes.pt, onde se encontra um importante texto subscrito por D. Manuel da Silva Martins, bispo resignatário de Setúbal e presidente daquela Fundação;
  • Outro contributo a não perder é a entrevista feita por Manuel Vilas Boas a D.Januário Torgal Ferreira e transmitido pela TSF às 15:17 horas de hoje. Está disponível no local daquela emissora , em http://www.tsf.pt procurando depois em Arquivo programas > Especial TSF > 15:17 10Mai06 Memórias do Bispo do Porto.