sábado, 24 de setembro de 2016

Coroemo-nos de rosas, antes que (estas) murchem...

... ou antes que nós murchemos.

Conheci esta frase latina apontada a lápis, com uma excelente caligrafia, numa página de um livro antigo, na Biblioteca Municipal do Porto e achei-a tão curiosa que logo a anotei. Terá possivelmente sido o Professor Cruz Malpique que m'a traduziu e explicou. Lembro-me que a discuti, no Liceu (o LAH, claro)  com o Manel, que ainda só era "o Manel" mas que já a tinha conhecido por outra via [1].  Naquele tempo, ou algo antes disso, o rigor vigente  nos restos do Império tinha proibido uma música carnavalesca importada do Brasil e que, numa forma muito mais popular, tinha o refrão saturante e incessantemente repetido pela rádio (até a zelosa censura o proibir, claro)  de "o que se leva desta vida é o que se come, o que se bebe, o que se brinca, ai ai". Encanta-me repetir aqui o que então foi proibido e especial e arrogantemente  fazê-lo quando, no mundo em que vivemos, tudo se nos volta a ser servido com o apagamento da alegria sob um manto negro de terror. Abrimos o jornal, ou ligamos a TV,  e logo o terror aparece. Estamos sempre no risco de qualquer resgate, na iminência de qualquer desgraça, na ameaça permanente de qualquer insegurança, no comportamento insólito dos que deveriam dar algum exemplo (e dão precisamente o contrário), na expetativa do que poderia apresentar alguma esperança (e logo qualquer esperança é criticada).  Ironicamente, foi a Nona,  a Nona  que  enroupou  em música a ode   "Sobre a  Alegria" que Schiller nos deixou, o escolhido hino para uma Europa que tantas vezes já se dilacerou e que parece querer viver no frenesi triste e de mal agouro de 1913 -   e mais não digo. Coroemo-nos de rosas... e há logo quem vá à pressa buscar ao Livro (ao "nosso", claro, e nos leve ao Sab 2,8) o versículo que, por isso, imediatamente nos desqualifica e  nos condena [3] - talqualmente como, nos anos 40 ou 50,  se fez proibir o samba em modelo pre-pimba ou como a criança infeliz que traduzia a infelicidade que testemunhava por um "aqui ninguém se ri". Austeridade pois, mas só de fachada. Porque, invocando a austeridade, o que efetivamente se procura é a desregulação discriminatória, exatamente o contrário das virtudes que se pretendem exaltar. Mata-se a alegria, exportam-se os jovens (que, tanto aqui como na Estónia, se fartam de consumir tranquilizantes), (des)consideram-se os velhos... mas em todos esses capítulos alguém  procurará prudentemente colocar o seletivo "alguns": "alguma" alegria (outros que a possam ter), "alguns" jovens(outros que possam empanturrar-se na zona de conforto que ainda fique), "alguns" velhos (que tenham tido a prudência de traduzir a tempo a expressão "off shore"). Aos outros, o monstro informático que os trate como números, que lhes invada a privacidade, que os sature com redes ditas sociais (sociais o tanas), que os amarre à uma imposição sucessivamente crescente, que lhes imponha um PIB e lhes saque por todas as formas o que possam ter, que lhes mostre o descrédito das instituições que poderiam esperar e desejar ter como firmes - e que, ainda por cima, sempre façam isso com um dedo apontado. Queixemo-nos depois, nós que a fizemos,  de que a geração que deixamos é pior que a "nossa, pois que o tempo corre e com ele se perde o momento  de dar uma biqueirada em muita coisa que nos rodeia, ao nível do que podemos e enquanto podemos - antes que nós próprios murchemos, como as rosas.

Daí o ter encontrado na "net" (essa excelente via de conhecimento  que tão mal usada também é) o poema que um  Thomas Jordan (1612?–1685) escreveu e  que Arthur Quiller-Couch, transcreveu  no "The Oxford Book of English Verse: 1250–1900" editado em 1919 [2]:
  

"Coronemus nos Rosis antequam marcescant...
  

LET us drink and be merry, dance, joke, and rejoice,
With claret and sherry, theorbo and voice!
The changeable world to our joy is unjust,
      All treasure 's uncertain,
      Then down with your dust!
In frolics dispose your pounds, shillings, and pence,
For we shall be nothing a hundred years hence.
.
We'll sport and be free with Moll, Betty, and Dolly,
Have oysters and lobsters to cure melancholy:
Fish-dinners will make a man spring like a flea,
      Dame Venus, love's lady,
      Was born of the sea;
With her and with Bacchus we'll tickle the sense,
For we shall be past it a hundred years hence.
.
Your most beautiful bride who with garlands is crown'd
And kills with each glance as she treads on the ground,
Whose lightness and brightness doth shine in such splendour
      That none but the stars
      Are thought fit to attend her,
Though now she be pleasant and sweet to the sense,
Will be damnable mouldy a hundred years hence.
.
Then why should we turmoil in cares and in fears,
Turn all our tranquill'ty to sighs and to tears?
Let 's eat, drink, and play till the worms do corrupt us,
      'Tis certain, Post mortem
      Nulla voluptas.
For health, wealth and beauty, wit, learning and sense,
Must all come to nothing a hundred years hence."

Boa noite e bons sonhos, no  que a valeriana (com "v") ainda ajuda - já que com "V" seguramente melhor seria.

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[1] E que até, ele próprio, acabou por escrever um poema nela inspirado, publicado no jornal do Liceu,  quiçá um dos primeiros poemas do Manuel Alegre a ser  divulgado em forma impressa. Sobre o assunto ( o poema, o Professor Cruz Malpique e o "Prelúdio", cuja 1ª Série ainda acabará um dia por aparecer digitalizada) ver:
alem do já referido "blogue da malta de 1954" que no dia 4 se vai novamente reunir no Porto e que nesse veículo deda memória conta muito mais coisas.

 [2] Cortesia a www.bartleby.com/101/325.html (mas também www.bartleby.com/40/246.html, de uma outra antologia, de 1909, e tendo o primeiro verso como título). Aliás se procurarem Thomas Jordan com um motor de busca, sair-vos-á, antes do poeta do sec.XVII e com mais desenvolvimento, um hodierno, homónimo e inesperado economista e administrador bancário suíço. Sinal dos tempos!

[3] As reservas ao coroar com rosas vão muito mais longe do que eu pensava. Se se fizer uma procura em motor de busca, quer pela frase, quer pela imagem, encontrar-se-á o património religioso a dominar. a amarfanhar mesmo, a representação ou expressão profana. Uma razão emergente poderá provir da frase, assaz repetida, de que "uma coroa de rosas também é uma coroa de espinhos" - trazendo imediatamente o peso negativo e condenatório da Paixão de Cristo. Mas - passando de lado a questão botânica e secundária  da feitura da "coroa de espinhos" (i.e. se seria uma coroa de silvas, ou de rosas ou de eufórbias) - o versículo citado, do Livro da Sabedoria, possivelmente coevo da erupção de Santorin e da destruição da civilização minoica, antecede - e por  muito tempo mesmo - o drama do Calvário. Verdade, verdadinha, é que a frase latina pareceu inspirar a poesia e até a música a esta aliada (Tchaikovski fecit)  mas não entusiasmou, ao que eu saiba,  a pintura clássica.
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quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Do Liceu de Alexandre Herculano, no Porto, à Trisavó de todas as Guerras, no Mundo


No dia 29 de Maio p.p. coloquei neste blog uma breve notícia sobre a questão legislada (em 1911) entre  ensino público e privado em Portugal e agora reaberta, em amarelo, pelos homólogos dos que então já aberto a tinham. Daí a pergunta no título da postagem, essa. Respondeu-me um respeitável Leitor, a quem eu devo sempre oportunos comentários.  Repliquei à resposta, agradecendo, e levantando mais dúvidas e preocupações sobre o estado atual do LAH, do Porto, que na resposta tinha vindo à conversa - aquele que hoje se chama Escola e se chamava Liceu, ao fundo da Avenida Camilo, e que foi e será sempre, para mim e para muitos de nós, o “nosso Liceu”. Por inépcia minha esse agradecimento e réplica, como verifiquei agora, ficou “no espaço” e, por isso, decidi pedir desculpa ao meu sempre considerado comentador-leitor. Mas alonguei-me na resposta e meti coisas que, sendo adicionais, ouso presumir como podendo ter alguma utilidade ou interesse e – por isso – acrescem, quais epífitas,  à essência original da resposta (que era e é uma apreensão manifesta pelo LAH) e ao agradecimento e o mais que adiante se verá. Decidi depois transportar toda essa resposta para o texto principal tal como o poria no blogue  que existe, se não tivesse entretanto perdido os respetivos códigos e palavras-chaves pelas esquinetas de uma memória cada vez mais qsf [1]. Transcrevo o que foi possível refazer e o que acrescentei: 

“Muito agradeço pelo aviso sobre o LAH [2] E volto à minha pergunta, já deixada noutro local:  o que será feito das excelentes coleções de mineralogia e geologia, da sala de Ciências Naturais, da vidraria e dos aparelhos e modelos dos laboratórios de Química e de Física e até da Sala de Geografia, que muito teria para contar em termos de modificação de fronteiras e de espíritos neste Mundo ainda em crise de mudança de milénio. Mesmo que estejam inventariadas e bem arrecadadas – assim o espero –, estão de qualquer forma perdidas quanto à utilidade pública do seu valor e divulgação, só por si merecedores de uma recolha e apresentação museológica. Entretanto, numa das minhas divagações, fui encontrar a designação adrede de uma comissão para superintender e acompanhar a construção do novo edifício para o Liceu de Alexandre Herculano, no Porto (DG - 1914 - 2ª Série - nº 206, de 3 de Setembro, pag. 3104), quando, noutras sedes, já se começava a descrer na ideia ingénua de que a 1ª Guerra pudesse acabar pelo Natal!). As expropriações dos terrenos e a designação de quem as outorgou, por parte do Governo, estão também acessíveis por ali e levantam uma outra curiosa questão [3]. Velhinho Alexandre... durou mais que impérios sortidos e de diversas cores, com ou sem dourados, que então ainda existiam... e de outros que, pelo meio, foram e vieram. Numa deriva que a coincidência cronológica e os centenários que vivemos vieram sugerir, direi apenas, fazendo uma  agulha, quanto  entretanto se foi gradualmente diluindo, em termos de candura, a imagem que tinha de um  Presidente Wilson idealista e sonhador (aliás o primeiro presidente sulista dos EUA, após a Guerra da Secessão). E o mesmo direi para outros ícones do mesmo conflito.  Obviamente que há muitos livros publicados e a publicar sobre a WW1, mas, dos que li, há um, pequenino em tamanho, que considero essencial e que me parece suprir, para uma abordagem imediata,  muitos e bem mais avantajados volumes: a obra de NORMAN STONE "Primeira Guerra Mundial - uma História Concisa", entre nós editada pela D.Quixote. Está lá (quase) tudo o que é importante! E, embora a tradução seja muito aceitável, quem se quiser deleitar com o compreensível e leve  Inglês do Autor, poderá recorrer à  versão original  editada pela Penguin ("A Short WW1 History"). Vem ainda a propósito dizer que, quanto à nossa intervenção nesse conflito global -- que, extrapolando o dito do Saddan, se poderia designar por "Trisavó de todas as Guerras” --  encontrei ultimamente uma tese norte americana que aborda um tema ainda hoje e aqui polémico e aborda-o positivamente, numa visão que procura  isentar-se  de polarizações norte-europeias (o que é raro quando de nós falam - seja de WW1, seja do raio que os parta). Pois aí vão as referências já que todo o texto se pode procurar, encontrar e descarregar da "net":  PYLE, James (2012) "The Portuguese Expeditionary Corps in World War I . From Inception to Combat Destruction 1916-1918", University of North Texas. Boas leituras…[4]

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[1] O blog existe em www.lah-1954. blogspot.com e está saudável, graças ao esforço e perseverança do Colega que o mantém e  subscreve e que generosamente permite recuperar a memória desse quanto se foi. 
[2] Tratava-se tanto da oportuna intervenção do Dr. José Pacheco Pereira, ex aluno do LAH, publicada no Jornal "Público" de 28 de Maio p.p. e reportada no blogue citado em [1], supra como da documentada reportagem de Patrícia Leitão em  https://jpn.up.pt/2016/05/24/alexandre-herculano-liceu-historico-quer-reerguer-da-degradacao/
[3] Tendo as expropriações por utilidade pública sido feitas com um objetivo preciso e de propósito bem definido, como consta do DG, será possível que permitam reversões caso os terrenos expropriados venham a ser dirigidos para outras finalidades, quiçá distintas dum objetivo de ensino  e / ou especulativas, como já zuniu por aí? E, muito em especial, se se deixar arruinar o edificado para, pela ruína deste,  eventualmente se invoque como justificável um  tal desvio de propósito?
[4] Convida-se o leitor a mais uma leitura edificante e "caçável na net", com a caraterística peculiar de ter sido escrita antes da intervenção americana na WW1 por um sociólogo e economista  pouco conhecido entre nós e que teve um percurso académico muito singular, Thorstein VEBLEN. O texto chama-se "Imperial Germany and the Industrial Revolution". E quem quiser melhor conhecer Veblen, num âmbito algo diferenciado daquele,  poderá também pescar na "net" uma sua obra-mestra, intitulada  "Theory of the Leisure Class".