terça-feira, 3 de junho de 2014

A Audiência das Aves

Uma  homónima crónica de Amílcar Neves, publicada a 28 de Maio ultimo no Diário Catarinense  (Brasil) que agradeço e  que, com a devida vénia ao Autor e à publicação, seguidamente reproduzo, sugerindo aos que a lerem o reconhecimento de idênticos comportamentos em idênticas audiências do lado de cá do mar. Afinal aves são aves e passarões há-os em qualquer latitude. 

Por algum motivo (sempre nebuloso), chegaram à conclusão de que era urgente convocar uma audiência pública das aves. Engenheiros disseram que havia n + 1 motivos para essa convocação, peritos foram ouvidos, estrategistas foram consultados, videntes foram sondadas, marqueteiros foram inquiridos e a conclusão foi unânime (já que todos estavam do mesmo lado): audiência já!

Antes que algum espírito malévolo aí desse lado do jornal (ou aí desse lado da tela do smart, do tablet ou do note) destile o veneno habitual da intriga e da maledicência, desde agora manifesto solenemente que este texto nada tem a ver (e seriam assaz insolentes tanto texto como autor caso pretendessem ter) com a Assembleia das Aves, obra poético-satírica composta por Marcelino Antônio Dutra, um açoriano-madeirense nascido na vila do Ribeirão da Ilha em 1809 (morreu velhinho na mesma Desterro, que o viu nascer, no distante ano de 1869). Um dos talentos desse professor, promotor público, poeta, jornalista, polemista, administrador do primeiro cemitério público da Ilha e vibrante político, que chegou à deputação e à Presidência da Assembleia Provincial, era o de compor epitáfios. Uma dessas suas peculiares composições literárias mais marcantes diz o seguinte: Aqui jaz / Marcelino Antônio Dutra / Que mil e poucos registrou / E que, no final / Também entrou. Acertou na previsão de que um dia morreria, mas não no vaticínio de que seria enterrado com vista para a futura cabeceira ilhoa da Ponte Hercílio Luz: entregaram seus restos às terras do Ribeirão, seu torrão natal.

Aves são bichos diversos e sua diversidade (assim como qualquer diversidade) tem de ser aceita e, mais ainda, respeitada. Avestruzes e colibris, por exemplo, são igualmente aves, a despeito de porte ou comportamento. Ao tomar conhecimento da convocação (ou convite) para a audiência, o avestruz enfiou a cabeça no primeiro buraco que encontrou (por sorte sua amada esposa encontrava-se fora) e ali ficou, à espera de que tudo passasse e a reunião enfim findasse. Já o beija-flor deu de enfiar bico e língua, longos, até onde não era chamado.

Dada a multiplicidade de espécies, famílias, gêneros e coisas do tipo, o que levava a um tumulto sem fim sempre que se inciava uma discussão (invariavelmente pavorosa e inconclusiva) sobre qualquer assunto, a audiência pública proposta e, de imediato, convocada, visava auscultar a população de penas para saber de suas ideias e preferências a respeito da melhor maneira de voar, consubstanciada no Sistema Ornitológico de Voo, bem como sobre o caminho supostamente ideal para alcançar-se tal intento, expresso nas inúmeras páginas do Plano Ornitológico de Voo, de cujo documento (um documento indiscutivelmente maior) brotariam as metas a fim de que, ao fim e ao cabo, todas as aves, até as galinhas, pudessem alçar voos altaneiros e artísticos, pejados de imenso simbolismo alado.

Foi quando, para surpresa geral, a ave que presidia a memorável sessão (não cá declinaremos seu nome a fim de evitar especulações maldosas), um pássaro de penugens esvoaçantes, o que lhe dava suposta autoridade sobre os demais (além de ele voar, suas penugens também esvoaçavam), agradeceu os relatos de todos os que se manifestaram e deu por encerrada a sessão. Aos protestos que se seguiram dada a brevidade dos trabalhos, argumentou que aquilo era mera audiência, de ouvir, o que o isentava de dar satisfações ou maiores explicações, ou seja, de simplesmente falar e dizer.

Amílcar Neves

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Descansem, que este continua!


Para bem da  minha vertente bourbónica.

domingo, 1 de junho de 2014

"Correios" da noite

Paul Delvaux, "Solidão"

Quem se recorda do "prego", devorado a correr na Pampilhosa, e da "bifana", igualmente rápida na Funcheira?  Com  estas recordações, verdadeiras celebrações dos "comboios da noite", pude repescar do meu passado as canções dos mineiros galegos, de regresso (ou visita) à região natal, num León-A Coruña, vindo já, arfante,de Madrid, algures num verão quente dos anos 60?

Mas os "blogues" podem ser como as cerejas, trazendo descobertas umas atrás doutras... A recordação do regresso a Portugal pela Galiza, naqueles anos distantes, levou-me a reduzir algo mais do muito que ainda desconheço, mostrando-me a obra artística de Maruxa Mallo (Ana Maria Gómez Gonzalez; Vivero, Lugo, 1902-Madrid, 1995), pintora surrealista cuja biografia uma outra portada [1] resume - e bem - nas seguintes palavras:
A ignorância que antecede a descoberta - e que não tem fácil explicação para gentes que tão cerca se encontram [2] - seria apenas surpreendida ao verificar que num dicionário do surrealismo editado recentemente em Espanha [3], esta pintora galega, posicionada na designada "Geração de 1927" [5], manifesta e excelentemente surrealista pelas obras que a inter-rede mostra, não tinha merecido uma referência destacada. Mas, voltando às cerejas [4],  a minha busca de mais saber, que ficou inesperadamente suspensa naquela fonte seca, encontrar-se-ia compensada por dois outros preciosos achados que tenho o gosto de transmitir aos que pacientemente me acompanham :  (a) a biografia resumida de Maruxa Mallo, síntese de um trabalho académico de Vanesa Zaro a que se pode na totalidade aceder através portada já aqui referida [1]; (b) o blogue "Mi siglo" [O meu século] assinado por José Julio Perlado (n. Madrid, 1936) e que é um notável repositório de cultura e informação que quero destacar e que - honra  seja feita a quem o escreve -   demonstra a capacidade e potencialidade de expressão do "blogue" por entre outras formas que a "rede" actualmente (e por vezes abusivamente) nos proporciona. De notar o conhecimento e até carinho com que o Autor desse "blog" traz referências ao nosso lado da fronteira. O endereço, para que o visitem, é https://misiglo.wordpress.com.

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[1] Vanesa Zaro, em http://pinturavane.pangea.org, no apartado "Maruja Mallo : La palabra de una mujer libre (Tesina)", trabalho de investigação no "Doctorado en Teoria y Cultura Contemporanea" da Universidade de Girona. A mensagem biográfica, para além da síntese acima inserida e do seu desenvolvimento, inicia-se com três afirmações e quatro perguntas que a complementam "La olvidaron. La taparon. La silenciaron. Por mujer? Por republicana? Por moderna? Por artista?" a que Vanesa Zaro responde, ao fechar o seutexto: "La recordamos. La destapamos. La nombramos. Por mujer. Por republicana. Por moderna. Por artista."
[2] Com Madrid e Rabat quase à mesma distância, quantos de nós já terão lido uma História de Espanha ou uma História de Marrocos?
[3] Refiro-me á obra de Xesus González Gómez, "Dicionario de Surrealismo e Surrealistas", Promocions Culturais Galegas, [Santiago?], 2009. Deve notar-se que esta obra não se considera exaustiva  e não se limita ao surrealismo na expressão pictórica nem exclusivamente à sua representação em Espanha (assinale-se uma notável consideração do surrealismo em Portugal).  De qualquer forma, sendo uma obra editada na Galiza e até face a uma singular simetria dos patronímicos entre o seu Autor e Maruxa Mallo, no seu verdadeiro nome, esta omissão é curiosa e terá por certo uma razão de ser que, de momento, se não descortina.
[4] Que rivalizam em cor com as primeiras pitangas do ano que, no meu jardim e tão longe de Luanda, decidiram mostrar-se finalmente maduras e, assim, oferecerem-se aos bicos gulosos dos melros
[5] Artigo da Wikipedia sobre Maruja Mallo, hoje abordado: http://es.wikipedia.org/wiki/Maruja_Mallo