.
Percorrendo, em via de regresso, os 620 quilómetros que separam Lousame da minha actual toca, na margem sul do Tejo, procuro recapitular a experiência recolhida durante as Jornadas atrás referidas. Mencionei já que, por motivo dos meus interesses mais imediatos, deveria ter estado aqui no ano passado (sem prejuízo deste) e se não estive foi só porque outros deveres me levavam, exactamente nos mesmos dias, a terras de Lovaina. Tendo o ano 52 semanas, logo haviam ambos os acontecimentos de cair na mesma... Galo nítido!
.
O primeiro ponto a registar, são as próprias jornadas. Não é comum que um concelho do interior de uma região importante, ainda que não muito afastado de rias penetrantes e activas, com uma população dispersa e eminentemente ligada (hoje) a actividades agrícolas e pecuárias, desenvolva uma sequência de jornadas dedicadas ao património, em que já vai na terceira, organizadas pela Concelleria de Cultura do Concello de Lousame (o que aqui chamarámos de "Pelouro da Cultura") com o apoio da Vicereitoria de Cultura da Universidade de Santiago de Compostela (USC) constituindo um crédito para o curriculo académico dos respectivos alunos, do Instituto Camões, da Deputação da Corunha e da Fundação Comarcal de Noia, que inclui Lousame. E não é comum que, nesta terceira edição, o acontecimento tenha contado com 68 presenças - no momento em que outros cursos e actividades culturais de verão tiveram menores afluências. Significa isto muito trabalho, muita dedicação, muita abertura de espaços e, certamente, a mobilização de entidades que são reconhecidas e que, com as suas comunicações, "atraem interesse" e fazem um "marketing positivo" do evento. As visitas incluídas no programa complementam, numa perspectiva também patrimonial, o conhecimento duma área recheada de belezas naturais e de monumentos a mostrar. Dizem-me que estas iniciativas são frequentes numa Galiza moderna e sequiosa de exprimir o seu carácter próprio, aliás tão chegado a um passado que, para cá e para lá, nos é sensível. Serão também frequentes em alguns concelhos portugueses. Noutros não.
A Casa da Cultura de Lousame, em Portobravo As instalações: A casa da Cultura do concelho, instalada em Portobravo de Lousame, perto da sede do município, oferece todas as condições para albergar acontecimentos deste género e dimensão. De dois pisos, com um anfiteatro bem equipado, de capacidade suficientemente ampla (superior a 100-120 pessoas), e áreas para actividades de animação, dispõe ainda de um amplo espaço onde, de momento, decorre uma exposição etnográfica dedicada às alfaias da actividade agrícola local.
Um pequeno recanto da exposição de alfaias agrícolas Na abertura das jornadas o Professor Xoán Carmona, da USC, director das Jornadas, saudou o interesse que estas criando, como uma sempre crescente afluência, demonstra e situou o conhecimento patrimonial nos aspectos essenciais de catalogação, conhecimento local, maior interesse pelo património e necessidade do estabeler um fio condutor. Sublinhou as presenças portuguesas e explicou o motivo temático do presente ano, quando - ano passado - as jornadas foram dirigidas à mineração do volfrâmio, em que o concelho teve relevante papel. Intervém seguidamente o Director Regional de Patrimonio, Filipe Arias Vilas, que, "tendo vindo mais para ouvir que para falar", e após ter caracterizado o patrimonio industrial como componente do património cultural, ambos multidisciplinares, salientou a necessidade do inventário - reconhecendo que não está ainda eficientemente catalogado, por razões muito diversas, o que afecta a sua protecção. Uma dessas razões reside no regime de propriedade particular em que a maioria desse património se situa. Nada tendo a favor ou contra esse regime, a possibilidade de intervenção da Administração, mesmo em termos de apoio, está em grande parte limitada e requere a prova do valor social da iniciativa, para poder encontrar justificação. Essa uma dificuldade. Falou, finalmente, o Alcalde de Lousame, José Santiago Freire, um veterinário bem conhecedor do terreno e que actualmente está em segundo mandato, que reiterou o empenho da Câmara em prosseguir estas Jornadas, cumprimentou o respectivo Director e saudou a Concelleria de Cultura, na pessoa da respeciva "concelleira" (vereadora, para nós) Maria Teresa Villaverde Pais e da secretaria Maria Dolores Suárez por esta realização.
Com a parte galega das jornadas dedicada este ano ao património marítimo, acompanhamos , no primeiro dia, as exposições de Dionísio Pereira sobre o "Património Marítimo da Galiza" e de Juan Rodriguez e Villasante Prieto, apresentada por este último, sobre "O arsenal militar do Ferrol como património industrial. Seria demasiado longo trazer aqui uma exposição desenvolvida sobre ambas as comunicações e a viva participação que, em debate, a ambas se seguiu (e que confronta com a lassitude ou generalidade de muitos auditórios).
Passando às conclusões do primeiro, em que foram relatadas várias situações dramáticas, como a odisseia do "Galatea", que foi navio-escola da Armada Espanhola e que tem alguns paralelos com a sorte dos nossos "três" - ou 2+1 - "manos" ("Creoula", "Santa Maria Manuela" e "Argus", dos quais o mais desgraçado é ainda o segundo...) e referida a diferença de atitude entre a Espanha e os países do Norte (Escandinávia e Reino Unido), estes bastante mais atentos, Dionísio Pereira concluiu por (a) a necessidade de uma política de património marítimo ao nível autonómico; (b) definir / precisar, nomeadamente por via de um esforço de inventariação, as existências, as entidades e as "mesas do mar"; (c) atrair ao tema as Universidades que a este estão alheias; (d) analisar o tecido associativo dinâmico, com as suas variantes locais (citou-se o exemplo das confrarias marítimas, destacando-se a da Lira, com a sua experiência de 5 anos [1]); (e) ultrapassar a complacência e auto-publicidade dos poderes públicos, motivando a sua intervenção; e (f) orientar a acção turística para que, não cortando a actividade profissional normal, possa dela participar (ou seja, continuando os profissionais a serem profissionais, exercendo como tal, e não meros manequins vivos para contemplação) e ultrapassando as dificuldades formais e burocráticas que ainda se levantam.
As perguntas e comentários que esta intervenção suscitou incidiram em: (a) estado dos inventários existentes; (b) o "viver do Património" (o Autor insiste, e com razão, na necessidade de colocar o turismo como actividade complementar para exercícios profissionais existentes, ou seja "fazer de marinheiro não pega"); (c) acções pontuais e ausência de uma política geral; (d) qual o valor das inclusões nos catálogos municipais?.
Na segunds exposição, Villasante Prieto, oficial de Marinha e que está no projecto de levar o Arsenal do Ferrol a "Património da Humanidade", expôs as fases metodológicas em que se desenvolve esse projecto, nos termos do processo de candidatura, e que se situam em três áreas fundamentais: (a) conhecer; (b) valorizar; (c) conservar; e (d) transmitir. O Ferrol, neste particular, apresenta um carácter muito especial, em que "grass-roots" (i.e. do nada!) foram criadas estruturas de fortificação e de logística que atendiam às necessidades de construir, manter e aprovisionar, chegando a empregar 10000 pessoas e criando um vasto património imaterial e material, um verdadeiro crisol de tecnologia, aplicação e organização. Referida a necessidade de conhecimento, através de extenso inventário com formulários próprios, o exponente abordou os critérios de valorizaçao propostos e prosseguiu com um conjunto de significativas projecções. dos principais edifícios (não deixando de assinalar a similitude da arcada da Grande Aula do Mar com a do Terreiro do Paço, em Lisboa, aliás praticamente coevas) [2] .
As perguntas e comentários que esta intervenção suscitou incidiram em: (a) o estudo do fosso do Arsenal (foram referidas as soluções previstas); (b) a situação das baterias de costa (recordando-se que o projecto do Arsenal se limita no reinado de Isabel II, inclusive); (c) a celebração da memória dos fuzilados no Arsenal em Setembro de 1936 (relembrando-se as dúvidas existentes entre o Arsenal e o Castelo de San Filipe, onde já existe uma memória , e outros precedentes sangrentos no mesmo Arsenal durante os secs. XVIII e XIX); e (d) a possível recuperação de um barco de guerra na doca seca do Arsenal (similitude com o "La Union" em Rochefort, mas aqui possivelmente substituível pela eventual solução - o tema não está esquecido! - de construir uma fragata mercantil na doca seca mais pequena de La Cabana, em que estas eram construídas).
Vista parcial e algo nublada de Muro, vendo-se os moinhos de maré O primeiro dia concluiu com o passeio marítimo a Muro, concelho muito típico do lado norte da Ria de Noia e Muro, tendo o embarque sido efectuado em PortoSin e com regresso, com águas muito mais calmas, ao mesmo porto. Localizaram-se fábricas de salga em ruínas e em recuperação (uma delas precisamente a que representada na portada do programa) e os moinhos de maré, estes recuperados.
No regresso a PortoSin O segundo dia teve três comunicações: a do Professor da USC Xoán Carmona ("Os fomentadores catalães e a salga da sardinha; mitos e pegadas de uma indústria tradicional" ), do Professor da UMinho José Manuel Lopes Cordeiro ("Panorama do Património Industrial em Portugal)" e da Directora do Museu do Papel de Santa Maria da Feira, Maria José Santos ("O Património da Indústria Papeleira Portuguesa. A experiência de reabilitação e de gestão no Museu do Papel de Santa Maria da Feira").
Recordando que houve na zona mais de 300 fábricas de salga de sardinha (hoje serão à volta de 30), o exponente começou por apresentar fotografias e desenhos demonstrativos da sua estrutura típica, como elementos patrimoniais de grande singularidade mas com similitude, também presentes em Portugal e Huelva. Referiu o característico predomínio de mão-de-obra feminina e detalhou a "clientela" típica deste negócio: mineiros, operariado industrial (a que em Portugal eu juntaria a gente dos ranchos das vindimas) , para a qual o pequeno-almoço era, frequentemente, uma sardinha com pão [3]. Prossegue, apreciando o papel dos catalães na indústria de salga galega: chegam perseguindo a sardinha, impõem-se por possuirem procedimentos técnicos com maior produtividade que a dos até então usados na Galiza, e têm ainda a vantagem de trazerem consigo um mercado importante, que era o mercado catalão (indústria textil, p.ex.) - passando a sardinha galega a constituir uma útil fonte de proteínas para o proletariado fabril catalão. Parece porém claro que o conhecimento e prática industrial da salga já existiam aqui.
Apreciando como imperfeita mas inelutavelmente instalada a expressão "Arqueologia Industrial" [4], aliás com o luso precedente de Sousa Viterbo, o Professor Lopes Cordeiro referiu-se às Lei 13/85, de 6 de Julho, substituída pela Lei 107/2001, de 8 de Setembro, ambas unanimemente aprovadas mas que, sendo leis de bases, como tal se ficaram - sem que, até ao momento tenham surgido os diplomas que as regulamentavam e que inclusive tinham definido um prazo de apresentação. A situação é de facto grave: existem pedidos de edificação importantes, falta o inventário do património industrial e este está rigorosamente desprotegido a nível nacional, no que uma política regional poderia bem melhor dispor. Dos 306 municípios portugueses (menos em número que os municípios da Galiza) apenas 6 (seis!!!) se preocuparam com o assunto e procederam, no âmfbito dos Planos Directores, a uma inventariação do património industrial. Os efeitos vêem-se! Relatando a acção da APPI, na linha da TICCIH , foram referidos como paradigmáticos e apresentados em projecções os casos de Rio Maior (em que se pensa que uma acção junto da autarquia possa ter evitado que a fábrica de briquetes do Espadanal, um exemplo típico mas quase desconhecido de um edifício industrial imponente, tenha sido abatida para construir uma grande superfície... em frente de outra, que já lá está), do Alto Forno da SN (Siderurgia Nacional) no Seixal e das instalações fabris da Fibra Industrial Lusitana na Boavista, Porto. Falta preservar pelo registo, pelo menos isso. A imposição de medidas no tocante a escavações, resultante de determinação europeia, trouxe consigo um contributo positivo: as empresas de arqueologia surgem em Portugal mas subsistem diversas questões para a eficácia da sua intervenção (falta de tempo para um trabalho mais aturado, intervenções de emergência e a magna questão de onde colocar os resultados que obtém); cita-se o caso dos três fornos da antiga Cerâmica de Massarelos, Porto, reconhecidos numa intervenção deste tipo. E refere-se também o estado actual do Real Filatório de Chacim, em Macedo de Cavaleiros: reserva arqueológica? A necessidade de inventário é acompanhada pela necessidade de colecções de referência (citam-se os catálogos das fábricas vidreiras e o grande esforço de Santos Simões quanto à azulejaria portuguesa, esforço interrompido pela morte precoce do Autor, quando concluía a catalogação do sec. XVIII e que deixou em aberto o sec. XIX). Finalmente, referindo os museus industriais, Lopes Cordeiro recordou que um Museu deve (a) investigar; (b) conservar; e (c) expor, por esta ordem de prioridades. Enumerou, seguidamente, os principais Museus dedicados ao Património Industrial que existem em Portugal.
Numa comunicação muito ilustrada e dinâmica, a Directora do Nuseu do Papel de Santa Maria da Feira (Doutora Maria josé Simões) fez a apresentação do Museu que dirige, fundado em 2001. Focando a necessidade de credibilização dos chamados museus industriais ("só se credibilizam os que dêem lugar à investigação") , que devem fundamentar trabalhos e afirmar a sua identidade - e não constituir simulacros de museologia que não são Museus, a exponente traçou uma breve evolução histórica da produção do papel em Portugal e posicionou, nesta o museu de Santa Maria da Feira como antiga fábrica e significativo exemplo da "família papeleira". Invocando a importância de parar e reflectir em Museologia, ouvindo "as vozes do silêncio" que esse património encerra, expôs as linhas gerais adoptadas para aquele caso concreto: de musealização: o apercebimento da vida papeleira (vg. o contrasenso do namoro com o rio e as exigências da secagem), o - na reabilitação - mostrar o novo como novo, sem esconder, o sentido do rentável, a necessidade de uma dinâmica de Museu ( com a recusa do Museu como "forum cultural"), a divulgação e documentação (sem isso um Museu fecha-se sobre si mesmo e por isso deve conter um centro de documentação aberto, proporcionando estudos [5]), a actividade demonstrativa (a máquina prossegue a sua actividade num determinado dia da semana), as actividades culturais de exigência temática (não existem essas actividades, aliás múltiplas, "sem que cheirem a papel"), o recurso a iniciativas de animação (a realização do "turno da noite" patrocinado por bares locais, com a presença dos seus jovens clientes, os defiles de moda com vestidos ou acessórios em papel, a criação de histórias e personagens em torno do papel para as crianças visitantes, o lançamento de "papagaios sem penas", a intervenção em cortejos medievais, etc.), a criação de actividades atractivas para surdos e cegos. O Museu desenvolveu, ainda, a temática dos Aerogramas da Guerra Colonial, com bastante sucesso, o estudo e colecção de marcas de água, o registo e preservação da memória (ouvindo e registando histórias e comportamentos de vida de quem andou naquela indústria), a realização de filmes e documentários. Para além do apoio em espécie e tecnologia da comunidade papeleira, o Museu , que ainda não é autosuficiente, depende economicamente da Câmara Municipal e é em 50% financiado pelo FEDER.
Pelo adiantado da hora e a necessidade de cumprir o programa da tarde, a discussão cingiu-se a uma única questão: a questão, em Portugal, da documentação das empresas em processo de falência. Constituídos os lotes de bens vendáveis ou colocáveis em benefício dos credores, a lei ignora os arquivos da sociedade - salvo os livros obrigatórios que devem acompanhar o processo e que se limitam geralmente ao vector contabilístico. Estes, os arquivos, são deixados ao Deus dará - e assim se tem perdido importantes acervos documentais sobre a indústria em Portugal. Bastaria uma simplicíssima disposição legal. como salientou o Professor Lopes Cordeiro, imponfo a entrega dos arquivos ao arquivo municipal do concelho onde se situa a sede social da empresa falida para ocorrer eficazmente a tal vicissitude. Mas todos os esforços nesse sentido têm sido baldados.
A torre do designado Poço Novo, nas minas de San Finx
As Jornadas concluiram na tarde desse ultimo dia, com a deslocação às minas de San Finx, em que se visitou o Centro de Interpretação realizado pela Autarquia, as ruínas do designado "Poço Novo", com a sua torre em betão, a casa dos compressores (a recuperar, com duas máquinas IR, uma horizontal e outra vertical, aparentemente ainda não vandalizadas) e as instalações anexas (também a recuperar) e, para fecho, ao já atrás referido Mosteiro de San Xusto de Toxosoutos [6].