quinta-feira, 30 de julho de 2009

Aviso à navegação

Discursos Parlamentares - 3 (O 2º Discurso do Porto Pireu,: a tréplica de José Estevão) ... em 5 partes...

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Embora estivesse desde essa data esboçado, só agora foi colocada no devido padrão temporal (7 do corrente) a primeira parte do 2º Discurso do Porto Pireu, com que José Estevão respondeu à resposta de Almeida Garrett. As razões desta demora foram diversas: ausência e macacoas do bloguista, extensão do texto, dificuldade de encontrar um texto de confronto e manifestas deficiências no texto existente. Na medida do possível procuraram-se ultrapassar essas discrepâncias, no sentido de manter a clareza do discurso. Todas as alterações feitas foram colocadas entre parêntesis rectos, para que se saiba onde - bem ou mal - se mexeu. Este trabalho de interpretação, aliado à extensão do discurso, fez com que este se publique neste blogue em 5 partes - o que, embora também longos, não sucedeu com os anteriores discursos. Mas o sentido de uma maior clareza justifica este tratamento e demora. Além disso, talvez mais que nos outros dois discursos, o 2º discurso do Porto Pireu, de José Estevão, parece dirigido a um País que hoje conhecemos e que é o mesmo a quem, através dos ilustres deputados de um Centrão tão cêntrico quanto o (não) era a Terra pre-galilaica (ou pre-coperniana, como queiram). "Nihil nove sub sole!", já lá dizia Salomão, que era rei e sabidão - o que, por mor da identidade de situações sem que se arrime a uma cura, é para nós uma constatação triste. A propósito de rei e rainha: se se fizeram algumas correcções ao texto que se obteve na net, não se alteraram as maiúsculas/minúsculas que lá vinham. Não se estranhe por isso encontrar minúscula onde se poderia esperar maiúscula ou mutatis mutandis: se isso desgostar alguém, que se vá queixar à época. Mantém-se a sugestão-convite-desafio aos portais dedicados á celebração do tribuno aveirense, para que procedam a uma revisão e fixação crítica dos respectivos textos, tarefa em que terão certamente mais competência que o "mim". E..., com esta, me vou de abalada e vos deixo lá (a 7 do corrente) o texto... na primeira das suas cinco partes - com exactamente este preâmbulo, só para relembrar.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Duas medidas dos "anos 20"


Feriados que caíam ao domingo

Fala-se frequentemente da solução vigente em certos países de transferir o gozo de um feriado que calhe ao domingo para a 2ª feira seguinte. Pois, em Portugal, essa solução já existiu, determinada por um decreto de 30 de Dezembro de 1910. Este regime seria, no entanto, revogado pela Lei nº 1845, publicada a 1 de Março de 1926 (ou seja, ainda no troço pós-sidónio da I República), juntamente com a proibição de tolerâncias ao pessoal das repartições públicas. Título da notícia num jornal regional: "É preciso trabalhar!"


Circular pela direita

Portugal era dos países europeus em que a circulação de viaturas se fazia "pela esquerda", como se mantém em Inglaterra. Entre nós, a situação mudou às 00:00 horas do dia 1 de Junho de 1928. "aproximando-nos" da Europa Continental (salvo a Suécia, que só muito mais tarde adoptará a "mão" pela direita.) Vestígios continentais dessa norma inglesa são ainda os comboios que, sendo uma invenção inglesa, mantiveram até hoje - nas linhas de via dupla, claro! - a circulação pela esquerda (o próprio Metro de Lisboa, que não o do Porto, ainda circula assim). No mesmo dia 1 de Junho entrou em vigor o Código de Estrada.
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terça-feira, 28 de julho de 2009

Virologia providencial

A mais recente manifestação: influenza xiló-fuga


segunda-feira, 27 de julho de 2009

Portunhol

"D.Quixote", por Daumier

Acabo de assistir a um excelente documentário que o Canal História dedicou a Cervantes e, sobretudo, ao seu imortal D.Quixote. Convidadas, várias figuras da literatura espanhola e mundial deram o seu depoimento. Gunther Grass, um Prémio Nobel, falou em alemão. apenas em alemão - obviamente legendado. Saramago, outro Prémio Nobel, que deveria ter falado em Português espaçado e compreensível, não resistiu à tentação corrente de falar em portunhol. Se ouvir figuras gradas da nossa hierarquia política, representantes da nossa soberania, falarem em portunhol nos faz assistir a um espectáculo ridículo que recorda a mensagem do "Palhaço Claudio" (e note-se que sem lugar à mínima benevolência de um ridículo simétrico), ouvir figuras gradas da nossa cultura cair na mesma ratoeira é simplesmente triste.

E não me venham dizer que nomes famosos das nossas Letras nos secs. XV, XVI e até XVII se exprimitam em Castelhano. São coisas diferentes, porque o fizeram e bem em Castelhano, tal como Pessoa sonetou e bem em Inglês. Haveria um franzir de sobrolhos mas uma relativa compreensão se, naquele programa, Saramago se tivesse exprimido em Castelhano correcto - o que já não seria de todo admissível aos tais pilares da soberania. Mas... em portunhol?! Nem àquele, nem aos outros e nunca! Poupem-me!
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domingo, 26 de julho de 2009

Obrar mal... e inoportunamente!

Senado Romano: menos complexo que muitas Assembleias Municipais no Portugal de hoje

Quiseram os fados que eu tivesse de viajar 300 e tal quilómetros, afastando-me das AE's e, circulando pelas vias que havia antes das ditas, atravessando diversos concelhos até aterrar entre os meus vasos de Cosmos bipinatus, Cosmos sulphureus, Centaurea cyanus e outras flores predilectas. Foi uma prova dramática para o meu elementaríssimo GPS, ainda que actualizado mas, mesmo assim, levado à incapacidade por inesperados obstáculos e anomalias. Se cada placa inesperadamente encontrada correspondesse a uma povoação, eu teria atravessado não sei quantas terras chamadas "Desvio" e outras tantas "Obras", todas simultâneas, todas autárquicas, todas pressurosas no intuito de demonstrar obra feita nas eleições que aí vêm. Na minha própria terra, o mesmo! E tiveram os dignos autarcas 4 anos para isto... Que pensar então desta epidemia? Como os "premiar" por este obrar súbito depois de uma constipação (na acepção inglesa) de 3/4 de mandato?

Eu pensei. E pensei numa coisa jocosa e noutra séria. A jocosa, estaria eu nos meus 12 anos, quando assisti a uma cerimónia religiosa em que se rezava a um Santo, S. Vicente de Paula creio, e na oração se explicitamente se rogava "fazei-nos obrar bem e rectamente". Estraguei a santa tranquilidade de minha Tia, que eu acompanhava, ao perguntar-lhe apenas, num impensado súpeto dos meus 12 anos: "Oh Tia! já reparou bem no que estão a pedir ao Santo?". Na contabilidade de todas as minhas faltas esta deve estar a vermelho e com peso redobrado, já que aquela Senhora - que compensava muita devoção com um especial senso de humor - nunca mais abordou pacificamente a referida prece.

Pois tínhamos aqui exactamente o contrário: autarquias a obrar mal... e inoportunamente, como os alunos que querem colar com cuspo toda uma disciplina nas duas semanas que precedem o exame. E portanto brotou-me o pensamento sério - e tão sério que será geralmente considerado inexequível.

Convém, também num breve desvio, deixar aqui bem explícito que eu considero que a legislação autárquica padece de diversos defeitos. Sou, por exemplo, contra a duplicação partidária plúrima na Câmara e na Assembleia Municipal. A Câmara deveria ser unicolor, para que a responsabilidade assumida fosse clara e não existissem vereadores do "pro" e do "contra" dentro de um órgão executivo. Essa representação plúrima estaria garantida no órgão fiscalizador, a assembleia - reforcem-se para isso os respectivos poderes, se for preciso. O funcionamento seria certamente muito mais eficaz [2]. Mas mesmo na assembleia municipal eu acabaria com a distorção estranhamente aberrante da coabitação votante de eleitos e de inerentes votados para outro órgão: refiro-me aos presidentes das juntas de freguesia, adquirentes pela actual lei do direito a voto na assembleia municipal. Poderiam certamente estar presentes e usar da palavra, mas não se lhes concederia o direito a voto. A ideia peregrina, dizem-me que importada de Israel, dá lugar aos volte-faces que se conhecem, a ingovernabilidades indesejadas, a assembleias enormes em alguns concelhos (o número dos inerentes determina o número de deputados municipais) - e nada disto é, certamente, a favor da eficácia. E eu, como cidadão, sinto-me logrado: votei em X para a freguesia, e X aparece-me quer na freguesia, quer na assembleia municipal. Eu NÃO VOTEI em X para a Assembleia Municipal. Que vá lá defender os interesses da SUA/NOSSA freguesia, ainda bem: mas que tem ele que intervir nos assuntos do concelho, incluindo as freguesias que não são a SUA/NOSSA?

Acabado este desvio, para dizer o que penso, vem agora a terceira sugestão... que me foi despertada pelas malfadadas obras no percurso. À semelhança do senado americano, nem todos os mandatos autárquicos seriam iniciados no mesmo ano. Até a regionalização ser finalmente conseguida e permitir determinar sobre o assunto, os concelhos receberiam aleatoriamente um número, de 1 a 4, e em cada ano seriam eleitos, por 4 anos, os autarcas referentes aos concelhos de um destes números. Ou seja: cada ano teria eleições autárquicas mas apenas em 25% dos concelhos. Isto significava um maior hábito eleitoral, uma maior intervenção de cidadania, uma diluição do dramatismo eleitoral global e uma necessária distribuição de projectos e obras, evitando todos os tipos de avalanches. Não deixaria de ser interessante... [1]

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[1] Aliás, combinada com o processo de regionalização e repartição por províncias, a realização de eleições locais em anos diferentes dentro do mesmo país tem já precedentes. É, por exemplo não único, o caso do Canadá: ver http://en.wikipedia.org/wiki/Municipal_elections_in_Canada.
[2] Lamenta-se que tenha ficado em "àguas de bacalhau", por partidarite aguda, uma proposta trabalhada e mesmo acordada nesse sentido. Perder tempo é uma pecha nacional.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

75º aniversário... e ainda boazona q.b. ! Parabéns, Betty Boop!

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E, já agora, em homenagem à dona das mais antigas e constantes pernocas-modelos,um desenho animado da mesma proibido em 1934... pelo uso do gás hilariante, então em moda nos dentistas... Repare-se que se trata do primeiro objecto móvel e sonoro inserido neste blogue! Só esta BB (ou a outra, nos seus fabulosos 19 aninhos em Cannes ou, por conhecida e pessoal fraqueza, a CC, d' "A Rapariga da Mala" a "O Leopardo") me poderiam levar a tal! Para já esta, que ficou virtual de todo!


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Agradecimentos a http://www.youtube.com/watch?v=E9Tb4TMibk0

segunda-feira, 20 de julho de 2009

O dia da Lua... na confeitaria.

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Georges Meliès, Le Voyage à La Lune
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Ao longe, a sua face resplandecia como o luar de Agosto; ao perto não passava de uma utilização do Google Moon, com zoom médio. Hélas!
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domingo, 12 de julho de 2009

Discursos Parlamentares - 3 (O 2º Discurso do Porto Pireu,: a tréplica de José Estevão) 4ª Parte de 5 (Continuação)

(Em: 2010-03-16: Continuação, após revisão, do texto postado a 11 de Julho e que estava em "enlatados", mantendo-se válidas todas as observações anteriores):


"[...]

Notai, senhores, que ligado ao primeiro tratado com a Inglaterra, aparece o nome mais antipático ao país: e os princípios desta aliança como que foram logo sentenciados pelo rancor do povo, nos tratos que ele deu depois ao diplomata que a encetou.

Em virtude do tratado de 1372 começou a guerra. Os ingleses desgostaram-se em breve das fadigas da campanha; depois de vários desastres ajustou-se a paz, e para fazer cumprir os seus artigos tão pouco ajudado foi o rei Fernando pelos seus aliados, que teve de cometer a sua espada à execução do tratado. El-rei de Castela afinal houve-se com lealdade por medo dum desafio.

As forças inglesas tantos flagícios fizeram em nossos campos, tantos distúrbios em nossas cidades, que a animadversão pública se levantou contra elas, e para nos livrarmos de tão impertinentes hóspedes se estipulou, no tratado de paz com o rei de Castela, o transporte deles para a sua ilha.

Há pois quase cinco séculos que os ingleses negoceiam com as mãos das nossas princesas, que vêm ao nosso território combater pelos seus interesses, que arrastam nossos soldados a pelejar pelo seu engrandecimento, e que vexam nossas povoações com suas violências; há quase cinco séculos, finalmente, que nos excitam a guerra, e que nos desamparam na paz.

A nossa bandeira tremulou nos mares de África; ali a espada de nossos capitães avassalou-nos régulos, conquistou-nos terras, e assim ficamos senhores dum novo e rico manancial de comércio. os ingleses, como nossos fiéis aliados e sinceros amigos, não nos quiseram deixar desfrutar sós o resultado de nosso esforço e espírito aventureiro; seus navios começaram a frequentar os portos de África, e a partilhar do comércio daquelas possessões. Isto foi considerado como uma verdadeira intrusão, e deu origem as mais serias desavenças e justas queixas da parte dos portugueses. Para obviar a estes inconvenientes, a rainha Isabel negociou connosco o tratado de comércio de 1571, onde se acham estas palavras: Ut perfecta sit amicitia, et liberum utrirnque commercium.

Esta mesma rainha Isabel, a quem nunca faltou ferro para se vingar das suas rivais e dos inimigos da sua coroa, com manifesta violação do tratado, que mencionei, com quebra de todos os princípios do direito das gentes, só porque seus súbditos se lhe queixavam de que sofriam violências e pilhagens no comércio da costa de África, feitas pelos portugueses, mandou formar uma comissão para julgar estas reclamações, ordenando que fosse paga a sua importância pelas propriedades, que nossos negociantes possuíssem na Grã-Bretanha.

Há quase três séculos, senhores, que os ingleses, debaixo do titulo de nossos amigos, procuram arruinar nossos interesses; há quase três séculos, que nos pregam a doutrina da liberdade de comércio, que nunca seguiram; há quase três séculos, que mandam julgar pelos seus tribunais as reclamações que seus concidadãos fazem contra nós, e que se assenhoreiam das nossas propriedades para satisfazerem essas exigências!

Notai, senhores, a homogeneidade do procedimento do governo da rainha Isabel e do da rainha Vitória; e pasmai desta analogia histórica! Em 1573 a rainha Isabel manda dispor da propriedade portuguesa para pagar as reclamações dos negociantes ingleses da costa de África; em 1839 a rainha Vitória manda dispor dos nossos fundos para pagar as reclamações de Sir John Myl Doyle.

Tais eram as nossas relações comerciais com a Grã-Bretanha, quando o moço D. Sebastião, vítima duma intriga diplomática e dos erros de sua educação, foi deixar em África, com a flor de nossos guerreiros e com as esperanças de sucessão, os penhores da nossa independência. A nossa nacionalidade, ferida mortalmente na batalha de Alcácerquivir expirou nas mãos dum eclesiástico, cujo animo, índole e hábitos eram muito inferiores a grande missão de segurar coroa vacilante.

Portugal foi no fim unido a Espanha, e esta uma o foi a morte do comércio e da influência inglesa no nosso país. Saída dos nossos portos, a armada invencível assoberbou as costas da Grã-Bretanha, e o princípio taxativo, sempre predominante em Espanha, vexou o seu comércio, que até ali gozava as franquias que nossos tratados lhe concediam.

Quando o trono popular de João IV se levantou de entre os piques e machados dos anarquistas do largo da Sé, desses anarquistas que têm sagrado mais tronos do que o direito divino, Portugal, saído do domínio estrangeiro, apareceu fraco, abatido, roubado, e desprovido diante duma Europa nova, da Europa que se tinha engrandecido durante o longo sono de nossa servidão.

Na Inglaterra fervia a luta dos princípios políticos e religiosos, e todos os elementos sociais se dispunham a tomar uma nova organização. Estas lutas as vezes gastam a vida dos povos e extinguem o seu poder, outras vezes remoçam-nos, validam-nos, e depois de longas enfermidades dão-lhe, como por encanto, a saúde e a força da juventude. As revoluções de Inglaterra tiveram esta sorte; custaram sangue e mortes, mas criaram uma nação, de cujo exorbitante poder nós somos agora a mais nobre e deplorável vítima. A Holanda tinha criado a sombra da sua constituição um grande poder marítimo; seu pavilhão dominava todos os mares, e tremulava afincado em todas as partes do mundo conhecido. A Haya era a sede da diplomacia, e a árbitra dos destinos europeus. Em França já começavam a raiar as luzes que enobreceram o reinado de Luís XIV, e principiava a criar-se esta força de concepção governativa, que depois. desfechou nos mais gigante cos projectos. Finalmente toda a Europa entrava numa nova era de força e vigor: e nós, diante deste século novo, apresentamo-nos pequenos, mas atrevidos, mostrando nos fragmentos duma coroa estrangeira a alforria da nossa nacionalidade.

O cometimento da revolução de 1640 foi sem duvida audaz; mas não podia a sua obra consolidar-se só pela força de nossos braços, e o trono de João IV pediu a Europa a sanção de seus direitos. Aqui nasceu uma sede de negociações e tratados com os ingleses, que, se nos asseguraram até hoje a dinastia da casa de Bragança, arruinaram, é força confessá-lo, a nossa prosperidade.

Ainda no reinado de Carlos 1 estipulámos o tratado de 1642, e, a troco do reconhecimento da nova dinastia, concedemos a Inglaterra entre outras vantagens a franquia de nossos portos da Europa, a extinção de todos os monopólios de comércio, a liberdade de seu culto, a segurança de suas propriedades e a restrição dos confiscos da inquisição sobre os bens portugueses hipotecados a credores ingleses. E notai, senhores, que no artigo 4." deste tratado se repõem no pé em que se achavam antes da união com a Espanha as nossas relações comerciais com a Inglaterra; estipulação esta altamente significativa, e que reúne em si os dados para a resolução de grandes problemas políticos.

Há, pois, quase dois séculos, senhores, que os ingleses alcançam de nós concessões repugnantes a natureza do nosso governo; há quase dois séculos, que os ingleses revogam nossas leis e nossos usos em proveito seu: há quase dois séculos, que os ingleses procuram a entrada de nossos portos como objecto 4e grande interesse; há quase dois séculos, que eles diligenciam a extinção de todos os privilégios protectores de nossas indústrias!

Por estes tempos D. Francisco de Sousa Coutinho, este Atílio Régulo da diplomacia portuguesa, arredava por um engano político da cidade de Pernambuco uma armada holandesa, e escrevia a el-rei seu amo: «Senhor, salvei-vos Pernambuco, prometendo que vós o entregareis ao inimigo; aproveitai-vos deste engano para o abastecer de armas e homens, e eu ponho nas vossas mãos a minha cabeça, por empenhar em vão a vossa palavra». Esta devoção do diplomata português desagradou ao governo da Haia, e as instancias repetiram-se para que ele fosse retirado. Enfim, estas instâncias foram atendidas, e António de Sousa Macedo foi substitui-lo. Este homem também era português; os interesses do nosso país eram os mesmos; ele adoptou portanto a política do seu antecessor, e o governo holandês não tardou a queixar-se de que lhe tinham mudado a pessoa, mas não 0 ministro.

Ah! senhores, se esta política de iludir as instâncias do estrangeiro, de galardoar com provas de confiança os ministros beneméritos; se esta política de satisfazer as exigências da diplomacia, mudando-lhes as pessoas, mas nunca os ministros; se esta política enérgica e prudente, autorizada como exemplo do augusto chefe da casa de Bragança, acreditada com a salvação da sua coroa, nunca desamparasse os conselhos do mais nobre, mais virtuoso, e mais augusto ramo desta dinastia nacional!... Notai, senhores, esta confrontação histórica, e moralizai-a como ela merece...

Quando a cabeça do infeliz Carlos 1 se inclinava já para o cepo ensanguentado das revoluções da Inglaterra, a marinha britânica, lutando entre a lealdade monárquica e o princípio revolucionário, desmembrou-se, seguindo diversos partidos e tomando por isso diferentes destinos. A parte fiel a realeza, saindo dos portos de Holanda para fugir as perseguições do protector Cromwell, entrou acossada do tempo pela foz do nosso Tejo, e pediu a protecção das nossas leis e da nossa hospitalidade. Uma esquadra da republica bloqueou Lisboa, e pediu a entrega dos rebeldes. Que respondemos nós a esta feroz exigência? «Não queremos, porque o infortúnio achou sempre amparo na nossa terra; porque nós não atraiçoamos quem se confia aos nossos lares!» O almirante inglês não ousou penetrar para a quem das nossas fortalezas, e vingou-se da nossa firmeza fazendo uma rica presa em nossos navios. Deste modo os ingleses acrescentaram suas riquezas, contentaram sua ambição; nós demos um exemplo de virtude, e acrescentamos mais uma página brilhante a nossa história.

Este procedimento do protector foi uma ofensa flagrante dos princípios da neutralidade, e uma infracção manifesta do art. 19." do tratado de 1642, que determinava que «e alguma coisa se empreendesse, perpetrasse ou fizesse por alguma das partes contratantes, contrário a força e efeito do tratado, isto não dana direito ao rompimento das hostilidades, mas simplesmente a uma justa satisfação dada pela parte infractora.» E deve notar-se que além disto os ingleses, a despeito do referido tratado, forneceram sempre armas aos nossos inimigos castelhanos.

Estes acontecimentos, o poder do protectorado e a debilidade da nossa monarquia nascente, tomaram necessária a renovação de estipulações de aliança e de comércio com o novo governo de Inglaterra, e negociou-se o tratado de 1654, que em cada um dos artigos atesta a prepotência de nossos aliados e a miséria da nossa fraqueza. Neste tratado renova-se e revalida-se tudo o que se havia contratado no anterior, e de mais estabelecem-se as conservatórias, concede-se aos ingleses a franquia do comércio das colónias, e entregam-se as desavenças ocorridas entre negociantes ingleses e oficiais da alfândega a decisão de árbitros ingleses, colhidos pelo governo ou cônsul inglês; e finalmente obriga-se Portugal a pagar todas as dividas contraídas entre o nosso governo e súbditos ingleses, e por um princípio de bela reciprocidade sujeita-se a restituição toda a propriedade britânica, que se havia apreendido em represálias da pirataria do almirante Blake.

Há quase dois séculos, senhores, que os ingleses tomam arbitrariamente os nossos navios; há quase dois séculos, que os ingleses castigam como roubo a nossa virtude; há quase dois séculos, que os ingleses infringem descaradamente os tratados para nos vexarem; há quase dois séculos, que os ingleses, depois de nos injuriarem, nos obrigam a estipulações desonrosas; há quase dois séculos, que os ingleses sujeitam nossos concidadãos ao árbitro de seus juizes; há quase dois séculos, que se declaram legítimos senhores daquilo que contra direito houveram de nos, e nos pedem o pagamento do que devemos!

E quando nós assim favorecíamos o comércio inglês com concessões tão vantajosas, Cromwell prejudicava altamente os interesses da nossa marinha mercante, promulgando o celebre «acto de navegação», base fundamental do poder marítimo da Inglaterra: esse acto de navegação, de que o sistema continental de Napoleáo é apenas uma paródia; esse acto de navegação, que o protector decretou principalmente para castigar a Holanda da resistência que opunha a revolução popular da Inglaterra; esse acto de navegação, que nós deveríamos copiar agora, para nos desforrarmos das resistências, que a Inglaterra tem oposto a revolução popular de Portugal!

Pela morte de D. João IV as pretensões da Espanha tomaram novo vigor. O gabinete de Madrid julgou que os brios da nossa nacionalidade iam ao túmulo com o cadáver do nosso rei. A França era inimiga da nossa revolução; a influência do cardeal Mazarino entretinha esta hostilidade, e a corte de Paris era inspirada tal política por algumas vistas interesseiras e por intrigas mulheris. Afinal na paz dos Pirenéus, a França por seus enviados propôs abertamente a conveniência duma restauração em Portugal deixando apenas a casa de Bragança um vice-reinado interino. O nosso plenipotenciário respondeu a tão humilhante proposta com lealdade e energia, e lá soou nas terras de França esse primeiro não histórico, que tantos anos depois foi repetido por outro português nas mesmas terras diante do maior capitão do século! Ah! senhores, quando aprenderemos nós também a dizer não ao governo inglês?... Dentro em pouco a morte do cardeal ministro e outras ocorrências abrandaram o governo francês sobre as coisas de Portugal, e a nova dinastia de Bragança contou de menos um adversário. Então a política instintiva de dominar Portugal e enfraquecer a Espanha, que a Inglaterra tem sempre seguido. aproveitou-se deste ensejo para segurar com menos embaraço os seus interesses, segurando a revolução de 1640, que lhe tinha aberto novamente a influência na Península. Para isto estipulou-se o tratado de 1661.

E que concedemos nos a Inglaterra por este tratado? A mão da princesa Catarina para o seu rei, princesa que não só se era formosa, mas que podia ser esposa de Luís XIV: a posse de Tanger, troféu glorioso de nossas campanhas africanas: a cessão de Bombaim, hoje importante capital de todos os domínios ingleses na índia: finalmente; boas somas de dinheiro, e o direito a todas as conquistas, que das nossas terras fizessem aos holandeses. E a que se obrigaram os ingleses no mesmo tratado? Obrigaram-se a defender-nos como a si próprios; a segurar-nos as nossas colónias; a restituir-nos todas as possessões que a Holanda nos tomasse depois daquele tratado; e finalmente a restituir-nos a parte das rendas e território de Columbo, quando esta ilha por qualquer modo lhes viesse a mão. E como cumpríramos ingleses estas estipulações? Escuso recordá-lo, porque os factos aí estão bradando contra a sua deslealdade e má fé!

Já que toquei na questão de Columbo, eu rogo aos ministros que se expliquem categoricamente sobre o direito com que nos julgam a esta reclamação. Tem-se escrito tanto sobre este objecto; tem-se interpretado de tal modo os tratados; o Corrojo, conhecido jornal da diplomacia inglesa, e órgão semi-oficial do governo, tem apresentado tão risíveis dissertações sobre este assunto, que eu julgo necessário invocar a autoridade dos Srs. ministros para fixar este ponto controverso.

O tratado de 1661 acha-se julgado pelos ingleses em importantes documentos. No discurso que Carlos 11 pronunciou na primeira apertura do parlamento, depois de concluído esse tratado, dando parte do ajustado casamento com a princesa de Portugal, o rei diz «que o seu conselho privado julgava aquela aliança preferível a todas quantas lhe cometeram, e que esperava que as câmaras seguissem a mesma opinião.» Depois disto o chanceler fez um longo discurso, para provar as vantagens da aliança com Portugal, e analisou, ridicularizando-os, todos os partidos que a diplomacia tinha oferecido ao seu rei.

O tratado de 1661, posto que desagradasse a Espanha, não a fez desistir de seus planos: a guerra continuou por algum tempo, e com sucessos. Os auxiliares ingleses combateram a nosso lado, acompanharam-nos, e, se a bravura dos soldados não prejudicou nossas operações, a rivalidade dos seus chefes não lhes suscitou poucos embaraços. A despeito deles, a vitória favoreceu-nos no Amexial: as armas de D. João da Áustria caíram aos pés dos nossos soldados, e grande foi a colheita de pendões castelhanos. Aqui, Senhores, se levantou uma espada portuguesa; aqui e enobreceu e fez célebre. A munificência do rei enfiou então nesta espada uma coroa de conde; nesta coroa, que atravessou dois séculos sempre fiel, rebenta agora um florão ducal, e sobre este florão esta um açor aberto com pólvora e sangue. Esta espada sagrada para a independência e glória do país, e todas as espadas tão nobres como esta, e todas menos engrandecidas, mas tão patrióticas, e as alabardas dos nossos sargentos, e as baionetas dos nossos soldados, e os chuços dos nossos paisanos - todas são do país, todas lhe pertencem! 0 pó dos partidos não as pode enxovalhar, nem elas podem dormir aos pés dum governo, que só vela para comprometer a dignidade nacional! Sim, senhores, todo o nosso exército, tão pequeno como bravo, tão pobre como patriota, cerra os ouvidos à voz das facções, para escutar as queixas da nação agravada. E nesse exército há uma mocidade desinteressada e cavalheiresca, em cujos corações as rixas políticas não têm amortecido a luz da virtude, mocidade a que eu me desvaneço de pertencer, e que como eu saiu das escolas com as mãos ainda doridas das palmatoadas, para ir tomar as armas a favor da liberdade; mocidade, que comigo despreza as rabuges da velhice e o despeito da obscuridade; mocidade, que só tem por timbre a honra do país, e por glória e fortuna - morrer para a conservar'...

Em Montesclaros, Aljubarrota da família Bragantina, outra espada portuguesa abateu o orgulho de Castela, e o trono de João IV ficou cimentado em cadáveres portugueses.

Os ingleses não se deram em como cheiro da pólvora destas duas grandes batalhas, e, apenas começada a guerra, trataram logo de nos conduzir A paz. Queriam-se desembaraçados para desfrutarem no Oriente o tratado de 1661. empregando todas as suas forças para conquistarem aos holandeses as terras, de que lhes havíamos cedido nossos direitos. Além disto, contavam shilling por shilling todas as despesas que faziam na guerra com Castela, e sobre tudo queriam estorvar a aliança da França, que já se inclinava para nós, e que começava a ser infesta às pretensões espanholas. A grande rivalidade com a França, que depois desfechou com a guerra da sucessão, e o crescente poder de Luís XIV já inquietavam a nossa aliada. Por todas estas considerações, e por meio dos mais astuciosos manejos, a Inglaterra levou-nos à paz com a Espanha pelo tratado de 1668, tratado inspirado ao gabinete de Londres por economia, por política e por princípios de engrandecimento. Uma das condições da paz foi a cessão de Ceuta, primícia de nossa glória Africana; e os ingleses, que e tinham obrigado a defender-nos como a si próprios pelo tratado de 1661, e a garantir a integridade do nosso território, foram os mesmos que nos abrigaram a uma paz feita A custa da desmembração dos domínios da coroa portuguesa! E eis aqui como os ingleses entendem e cumprem os tratados!

Não foi adoptada sem oposição esta paz desonrosa, e a partido do povo que então era poderoso, porque o trono era feitura dele, como agora ë também poderoso, porque tem imposto ao trono por três vezes o selo das suas armas, foi arrastado pelas intrigas e pelas corrupções inglesas a adoptar a opinião pacificadora. Então Roberto Southwell, negociador inglês, comprou o Juiz do Povo; hoje que o povo tem aqui muitos juizes, e que não são venais, Lord Howard manda-os matar, - e o punhal é o censo! Notai, senhores, ainda mais esta analogia histórica.

Assim, senhores, dentro do espaço de 28 anos negociamos com todos os partidos de Inglaterra; com a monarquia de Carlos 1; com a república; como trono restaurado. E encontramos sempre o mesmo empenho em defraudar nossos interesses, em nos arrastar a estipulações ruinosas; encontramos sempre, em vez de aliança, opressão.

A necessidade de distrair os espíritos assaz aplicados aos assuntos políticos, e o desejo de abater o poder crescente da França, levou as armas britânicas a guerrear a sucessão do neto de Luís XIV ao trono de Espanha. Nos também, com promessas de acrescentamento de território e da aliança matrimonial da princesa Teresa coma pretendente da casa de Áustria, fomos envolvidas por instigações da nassa aliada nesta guerra desastrosa, e assignamos para isto, com os mais coalïzados, o tratado de 1703. Vários foram os sucessos desta demorada luta: durante ela algumas das nossas províncias foram assoladas, e muitas praças de guerra destruídas. Entretanto o nosso exército, num audaciosíssimo cometimento, penetrou até Madrid. Quando principiamos a guerra já a princesa noiva tinha morrido, e por isso uma das condições do tratado era já impossível; a paz fez-se, e nos ficamos possuindo as mesmas léguas de terreno, de que até ali éramos senhores.

No mesmo ano em que assinámos a tratado de aliança de 1703, negociámos outro de comércio, que se conhece vulgarmente pela denominação de tratado de Methwen; esse tratado, que arruinou a nossa indústria; esse tratado, que destruiu a pauta proibitiva do conde da Ericeira; esse tratado, fruto da venalidade de nossos ministros, que tem servida de molde a todas as estipulações comerciais, que posteriormente fizemos com a Inglaterra, e que ainda hoje é objecto da sua saudade!

Com as vantagens e riquezas que este tratado dava a Inglaterra, meditou ela fazer face às despesas a que pela guerra da sucessão ia sujeitar-se, e assim negociou primeiro a ajuda de nossos soldados, e depois o auxílio de nossos teres. Esta é a política de Inglaterra connosco; tratado de aliança para a ajudarmos a fazer a guerra, tratado de comércio para contribuirmos para as despesas dela! Também em 1810, como em 1703, houve dois tratadas, um de aliança e outro de comércio.

O tratada de Methwen, em virtude do qual admitimos as fazendas inglesas de Ia, que até ali eram proibidas, a troco dum favor de direitos diferenciais nos nossos vinhos em relação aos franceses, foi julgado e caracterizado pelos efeitos comerciais, que dele resultaram, pela opinião das negociantes ingleses, pela discussão da sua imprensa e par ocorrências parlamentares da maior importância.

O comércio de Inglaterra com Portugal, depois deste tratado, subiu de 300.000 libras a um milhão sterlino. O número de navios ingleses entrados nos nossos portos quadruplicou; e um meeting de negociantes de Exeter, reunido para julgar da conveniência das relações comerciais com Portugal, adoptou a seguinte resolução: «Que conservar intactas essas relações era ter segura a prosperidade da Inglaterra, e que a infracção do tratado de Methwen seria a sua ruína, porque (diziam os negociantes ingleses) com grande custo e acha entre nós moeda, que não seja feita com ouro português.» Também a imprensa da oposição, que a pena de Charles King ilustrava, demonstrou minuciosamente as vantagens do tratado de Methwen, e os esforços do Mercator foram de todo confundidos por aquele hábil escritor. Finalmente, depois da paz de Utrecht, quando, em consequência das projectadas estipulações comerciais com a França, que davam em resultado a destruição do tratado de Methwen, e apresentou no parlamenta de lnglaterra um bill para a diminuição dos direitos dos vinhos franceses, foi tal o número de petições e folhetos, foi tão grande a instância dos oradores da aposição, tão explicitas as demonstrações das classes fabril e comercial, e tão terminantes as conclusões dos inquéritos a favor da aliança comercial com Portugal, que o bill foi rejeitado, apesar da pertinácia do ministério, que estava cercado do prestigio da paz que com a França fizera, e rejeitado por um parlamento onde a corte exercia a mais poderosa influência. Tão populares eram em Inglaterra as relações com Portugal!

[conclui... amanhã]

sábado, 11 de julho de 2009

Discursos Parlamentares - 3 (O 2º Discurso do Porto Pireu,: a tréplica de José Estevão) 3ª Parte de 5 (Continuação)

(Em: 2010-03-06: Continuação, após revisão, do texto postado a 10 de Julho e que estava em "enlatados", mantendo-se válidas todas as observações anteriores):

[...]

Quando as administrações mudam pelos votos do parlamento, sabe-se o sistema que triunfa e a sorte publica fica logo manifesta. Então o facto da mudança ministerial explica-se a si mesmo, ou antes de sucedido o caracterizam as discussões que o produziram. Nos ministérios formados fora da influência parlamentar faltam estas condições.

Dir-se-á talvez que a vida dos homens públicos é conhecida e que a consideração de seus princípios revela por si só o espírito governativo das administrações a que são chamados. Isto, até certo ponto, é verdade nos países onde as cadeiras legislativas representam convicções, mas não no nosso, onde pela maior parte representam especulações e onde, ao entrar nesta sala, muitos estadistas escolhem o assento, afim de que possam chegar mais depressa ao bem-aventurado país das pastas.

Além dista, nos ministérios formados à face do parlamento, os homens chamados ao governo vão satisfazer uma necessidade administrativa, ocupar um lugar que os votos parlamentares tomaram vacante; não desalojam ninguém da sua posição.

Destas ponderações deduzem-se dois princípios: um de política e interesse público, outro de civilidade e decoro pessoal, que obrigam imperiosamente os Srs. ministros a darem explicações categóricas sobre as causas da sua ascensão ao poder.

Numa palavra, as organizações ministeriais feitas anti-parlamentarmente são soprepções políticas na ordem constitucional e só lhes podem tirar este vicio as explicações subsequentes, que legitimem aquela irregularidade.

Se S.as Ex.as se recusam a satisfazer as minhas justas exigências, a cominação que lhes faço é horrível, mas inevitável. Hei de combinar os factos como entender e acreditar o que eles me revelarem; e S.as Ex.as ficarão gemendo debaixo das imputações que me vir obrigado a fazer-lhes. Se forem julgados à revelia, não é por falta de citação.

Não é só sobre a organização do ministério que é omisso o discurso do trono; outras omissões lhe noto eu, que não posso deixar de atribuir a momentosos propósitos.

Na nação vizinha completou-se um grande facto: os ódios de uma guerra inveterada, a tenacidade de antigos preconceitos, resolveram-se num abraço cordial e dois exércitos separados pela mais rixosa campanha, dois exércitos que tinham pleiteado entre si tiranias e assassinatos, aparecem num momento unidos num só campo e debaixo da mesma bandeira.

O convénio de Bergara foi, senhores, um acontecimento europeu pelos seus resultados, grandioso pelos seus motivos. Foi um fenómeno político e uma conversão moral que só a civilização moderna podia produzir. Foi mais do que um acontecimento europeu: foi uma coroa de glória para a humanidade.

O ministério, no discurso da coroa, despe este acontecimento das suas qualificações, diminui a sua importância, restringe as suas consequências; em uma palavra, o ministério amortalha o convénio de Bergara no esquife do filho do Remexido e faz-lhe as honras fúnebres em uma oração incidente.

Qual seria o motivo desta ridícula mistificação? Que razões levariam o nosso governo a depreciar esse grande acontecimento? Não as sei, mas aventuro sobre isso algumas conjecturas.

O convênio de Bergara foi, em grande parte, obra do ilustre caudilho da liberdade espanhola; ele incorreu ultimamente no desagrado do ministério Peres de Castro pela publicação da célebre carta do brigadeiro Linage, e não me admiro que o nosso governo, para fazer a corte ao gabinete de Madrid, quisesse que também no nosso discurso da coroa o general Espartero expiasse aquele grande pecado, cometido contra a ordem que, felizmente, rege ambas as nações. Nem é isto muito inverosímil, se atendermos a que o ministério de 26 de Novembro também se diz ser feitura da influência de Peres de Castro.

O Times fez a este respeito revelações importantes. O ministério espanhol apressou-se a desmenti-las; o nosso, porém, conservou a tal respeito na imprensa a mudez que ostenta no parlamento, porque a imprensa do governo é só empregada em doestos e calúnias e não sabe satisfazer as conveniências e necessidades do sistema representativo.

Ainda mais: o ministério desnaturou o convénio de Bergara, para afirmar uma falsidade e. com ela, fazer uma injúria ao nosso exército. É um facto, resultante das participações oficiais, que o estado do Algarve melhorou antes dos últimos sucessos de Espanha; é um facto que tudo ali deve ao zelo dos chefes e à disciplina e constância dos soldados; e esta campanha, se não apresenta feitos gloriosos, é rica de trabalhos e privações.

O Sr. ministro do reino estranhou o meu zelo pelos ditos do exército, e emprazou o meu voto para apoiar as medidas que lhe fossem favoráveis. Mas que medidas são essas? Não as vejo apontadas no discurso da coroa, e [é]isso que censuro. Referir-se-á S. Ex.a ao aumento de 400 contos, que para a despesa do ministério da guerra se pedem no orçamento? Todos nós sabemos que esta soma é um acréscimo à dotação dos rebatedores, de quem nunca se esquece um governo dissipador.

Entre o ostentoso aparato de providências exigidas e anunciadas sobre todos os ramos de serviço público, como não mereceu atenção ao governo a contabilidade e a instrução desse exército, os códigos de suas leis obscuros e antinómicos, o regulamento de seus acessos ainda mal definido, finalmente os aperfeiçoamentos razoáveis da instituição militar? Senhores, o ministério não deu ao exército nem uma recordação honrosa, nem um testemunho de solicitude... que digo eu? nem uma palavra!

O Sr. ministro dos negócios estrangeiros quis coonestar esta falta, alegando que doutras repartições se não fazia menção no discurso da coroa, mas nem esta asserção é exacta, nem, sendo-o, era concludente. Que tem de comum o exército, instituição social e política, por exemplo, com a Alfândega das Sete Casas ou com o Terreiro do Trigo?

O governo inglês lançou mão de dinheiro que nos pertencia, para pagar dívidas que nós não havíamos reconhecido. Tão irregular foi este procedimento, que esse governo encontrou entre os seus a resistência da probidade e da justiça. As pessoas, debaixo de cuja guarda estavam essas somas, recusaram-se a entregá-las pelas ordens do seu governo, declarando que tais fundos nos pertenciam e que só nós podíamos dispor deles.

Este atentado grosseiro e usurário do governo inglês não se acha mencionado no discurso da coroa.

O governo inglês, com desprezo manifesto do direito das gentes, com infracção revoltante dos tratados existentes, escandalizou a Europa como famoso bill que fez passar contra a nossa navegação em seu parlamento. O ministério comunica-nos este acontecimento num tom narrativo, como se fora a história de uma negociação feliz.

O brigue Columbine captura, saqueia e mete a pique os nossos navios nos mares de Africa, e o ministério empenha todas as suas faculdades retóricas para estigmatizar este acto, afirmando categoricamente que ele não pode ser filho de instruções do governo inglês.

Esta asserção é importante; o ministério repetiu-a na relação oficial, que publicou, das últimas ocorrências na costa de Angola, e o Sr. presidente do conselho de ministros expressamente declarou que o governo inglês nada tinha com aqueles procedimentos, que todos eram filhos dos excessos dos oficiais da marinha britânica.

Se isto assim é, esses oficiais andam em perfeita pirataria e o governo inglês nos agradecerá que, com as nossas pequenas forças navais, que para tal empresa são de sobejo, castiguemos aqueles de seus súbditos que abusam do poder que o seu país lhes conferiu, para comprometerem os interesses e a dignidade dele.

Destas observações deduzo eu: primeiro, que o ministério se fez advogado do governo inglês e que proclamou a sua inocência em actos de que ele só é culpado; segundo, que regulou as suas queixas, não pela gravidade das ofensas, mas pela facilidade em obter desagravo delas.

Com efeito, uma interpretação favorável a alguns artigos das pautas, de que o Sr. ministro da fazenda já deu exemplo; a relaxação dos regulamentos das alfândegas, que o mesmo Sr. ministro já prometeu; e, finalmente, os interesses dum futuro tratado comercial, valem a pena de tirar por algum tempo o comando a um capitão de marinha, indemnizando-o secretamente das perdas que com isso houver de sofrer.

No meio deste esquecimento de nacionalidade, desta frouxidão de linguagem no desagravo do país, o discurso da coroa, apartando-se do estilo usado em tais documentos, espraia-se num desenvolvimento de medidas reaccionárias que, sem remediarem os defeitos da legislação, pulverizam todas as instituições liberais.

Estes dois pensamentos de humilhação para com o estrangeiro e de destruição de todos os princípios populares, estão inuma e horrivelmente ligados.

Deixai o país livre no júri, livre na urna [?], livre nas administrações locais; deixai seus braços soltos, sua boca sem mordaça, seu peito sem grilhões, e depois ide, se podeis e quereis, fazer dele oblação ao estrangeiro; ide, se podeis e vos atreveis. Não, que assim é impossível! Não, que um só golpe de seu braço vos lançaria por terra, envoltos na vergonha de vossos projectos! Para sujeitar o país ao jugo estrangeiro é mister primeiro subjugá-lo com leis duras e anular sua vontade nos negócios públicos. Todas estas medidas restritivas são pois uma operação preparatória para a questão estrangeira; são o assassinato do país para dispor do seu cadáver.

Quereis vós conhecer e avaliar uma prova desta verdade? A 15 de Fevereiro de 1839 escrevia Lord Howard a Lord Palmerston haver dito ao visconde de Sá da Bandeira “que Portugal seria denunciado como protector do tráfico de escravos, e que os discursos mais injuriosos contra a nação e o governo português iriam sem resposta por todas as partes do mundo, enquanto as réplicas que nas cortes portuguesas se fizessem contra a Grã-Bretanha não seriam ouvidas ou lidas fora de Portugal.” Abre-se a discussão da resposta ao discurso do trono; é cegado o momento de fazer essas réplicas; é cegado o momento de desafrontar o decoro nacional, e o ministério, desejoso de que se realizasse a promessa de Lord Howard, empenhado em que as calúnias do governo inglês não fossem desmentidas, solícito por que o nosso nome se conservasse infamado por toda a parte, interessado em que a nossa voz morresse dentro destas paredes, manda apreender arbitrariamente grande número das imprensas empregadas na publicação de jornais, que advogavam a causa do país!

O ministério já aqui foi increpado por este inaudito procedimento, e ressentiu-se por o haverem comparado como atentado de Polignac. Eu também não acho exacta a comparação; porque o procedimento do ministério francês foi menos cobarde e brutal: fez um manifesto contra a imprensa: declarou-lhe a guerra, confessou o seu intento. Mas o nosso governo assassina-a traiçoeiramente e esconde a mão criminosa, pois lança toda a responsabilidade de tais actos sobre um poder estranho, que ele mesmo impeliu a estes excessos, sujeitando os juízes à tirania das transferências! Mas o nosso governo cai de assalto sobre a imprensa, corrompendo para isto um poder político e torcendo o sentido das leis! E, deste modo, liga ao horror do fim a vileza e malignidade dos meios, porque a mais maligna e vil de todas as tiranias é, segundo a frase de um escritor conceituoso, a tirania surda exercida em nome da legalidade.

Eu disse que os projectos do governo, a que se dão nome de organizadores, eram o assassinato do país, para depois se dispor do seu cadáver. Sìm, do seu cadáver!... Porque a nossa nacionalìdade morreu e nós juntamos, à vergonha desta situação o ridículo de a desconhecermos!

Estamos aqui reunidos, enquanto um firman do governo inglês não cassa o nosso mandato; os nossos juizes vestem suas togas, ocupam suas cadeiras, enquanto o governo inglês não restringe sua jurisdìção, e não chama aos seus tribunais os súbditos portugueses; os nossos soldados levantam com ufania suas armas, a nossa bandeira tremula ainda entre nossas falanges, enquanto o governo inglês não põe aos pés duns poucos de oficiais seus os brios do nosso exército. Vós mesmos, ministros da coroa, conservais o poder enquanto não resistirdes às exigências de quem vo-lo conferiu, e a filha de nossos reis, quando aprouver à Inglaterra, verá seu cetro despedaçado às mãos do governador da Jamaica, sobre as prerrogativas de cuja espada nós ouviríamos então certamente as mesmas dissertações, que hoje se nos fazem sobre as prerrogativas da coroa!

Sim, senhores, a coroa da rainha não tem uma protecção leal da parte do governo inglês, porque eu sei que Lord Palmerston dìsse mais de uma vez que muito desejava em Portugal o proscrito Miguel, e não sei mesmo se este dito do ministro inglês está exarado em algum documento oficial

[Alguns membros do lado direito e o Sr. minìstro do reino emprazaram a orador para declarar se esta comunicação lhe havia sido feita pelos actuais ministras, e qual era o documento a que se referia].

Sr. presidente, comunicações desta natureza nunca se recebem dos ministros da coroa, e os receios manifestados pelo Sr. ministro do reino de que elas fossem atribuídas a algum membro da actual adminìstração, denunciam em S. Ex.a a convicção do pouco crédito de que o seu minïstérìo se julga revestido. Se só os ministros da coroa pudessem fazer revelações diplomáticas, mal iria às oposições. Não asseverei positivamente a existência de documento algum, em que o dito de Lord Palmerston esteja consignado; disse somente que não sabia se um tal documento existia, e a este respeìto guardarei também a minha reserva diplomática. Continuo.

Sim, senhores, nós vivemos vida de homens livres atados ao cepo da escravidão e julgamo-nos nação independente, quando talvez dentro em pouco só gozemos da regalia de pagar tributos e do prazer de os vermos repartir pelos filhos do orçamento!

Ainda a sessão de ontem nos deu sobejas provas da perdição da nossa nacionalidade, e algumas têm tanto de deploráveis como de burlescas.

O Sr. Gorjão perguntou ao Sr. ministro dos negócios estrangeiros se o tratado, que S. Ex.a anunciou como provável com a Inglaterra, seria feito sem mediação. Que o ilustre deputado por Santarém, cuja diplomacia não é a mais ortodoxa, fìzesse uma tal pergunta com a aparência de grande importância, não admira; mas que o Sr. ministro dos negócios estrangeiros, encanecido no serviço diplomático, respondesse com grande satisfação, e como quem se inculcava salvador do país, que tal tratado se faria sem mediação, e que um jornal semi-oficial escrevesse hoje que esta só declaração acabava a questão estrangeira, ïsto é de tal modo miserável que provocaria riso, se nos não devesse envergonhar. As mediações de nação para nação são uma praxe, um estilo diplomático que nada significa. Agora e sempre, nações pequenas e grandes recorreram às mediações, sem julgarem que daí lhes proviesse algum desaire. Em quase todos os tratados que temos feito tem sìdo mediadora a Inglaterra, em alguns a Espanha, e mesmo a França; ainda há pouco esta mesma nação aceitou a mediação do comodoro americano na questão com Buenos-Aires; e os assuntos políticos do Oriente estão entregues agora à mediação das três grandes potências; cm uma palavra, apenas há alguma negociação diplomática em que se não tenha empregado este meio.

Que se pode pois dizer da nacionalidade de um país, cujo ministro dos negócios estrangeiros a julga salva porque trata, sem recorrer a mediações? E já que S. Ex.a se inculcou cavaleiro da nossa nacionalidade, emprazo-o para que me responda se tenciona fazer algum tratado com a Inglaterra, antes que seja revogado o bill. Esta cláusula ê um pouco mais importante do que a mediação, e é de crer que S. Ex.a a não esqueça.

O mesmo Sr. ministro asseverou que o estado de relações com a Inglaterra era pior do que o estado de guerra, e depois fechou um período dizendo que as guerras se acabavam às vezes por tratados desonrosos. Ora se as guerras, digo eu, acabam às vezes por tratados desonrosos, por que tratados acabará um estado pior do que a guerra? Eu creio que estas observações de S. Ex.a foram uma insinuação delicada do desfecho, que devemos esperar, das suas negociações pendentes com a Grã-Bretanha. Esta insinuação foi talvez imprudente, mas é também uma prova da pouca vida que tem a nossa nacionalidade.

As exigências do governo inglês, que retardaram a conclusão do tratado para a abolição do tráfico da escravatura, são sabidas, certas e determinadas. Ninguém se atreve a negar que elas sejam extraordinárias e infundadas; a minoria da comissão redigiu, pois, o seu artigo fazendo a elas uma referência directa; a maioria substituiu a esta redacção a palavra algumas, e da força desta expressão deduz-se ou que há exigências do governo inglês que não são extraordinárias e infundadas, e nós queremos saber quais são para as confessar por tais, ou que algumas exigências, posto que infundadas e extraordinárias, não retardaram a conclusão do tratado, e então o ministério transacto acedeu a elas; e neste caso ainda precisamos de saber quais foram, para podermos julgar a administração de 18 de Abril.

Uma explicação a tal respeito é já indispensável, depois que os Srs. ministros dos negócios do reino e dos estrangeiros puseram em dúvida a necessidade da aprovação do corpo legislativo para o tratado da abolição do tráfico da escravatura, porque era este um dos pontos questionados com a administração transacta, e a escusa de tal aprovação uma condição proposta pelo governo inglês. Nós reputamos todas as exigências do governo inglês extraordinárias e infundadas, não só consideradas em si, mas em relação umas as outras. O governo inglês exigia que nós declarássemos pirataria o tráfico da escravatura. Mas a pirataria pelas nossas leis tem a pena de morte e assim o governo inglês consentia que nos aplicássemos a este crime as penas mais brandas, que agora na legislação inglesa lhe são aplicadas. Ora esta reforma nas nossas leis não se podia fazer sem intervenção do corpo legislativo: e o governo inglês exigia que o tratado fosse ratificado em quatro semanas. Em tão curto intervalo nem as cortes se podiam reunir. Logo o que o governo inglês queria conseguir pelo complexo destas exigências era, pelo menos temporariamente, a faculdade de enforcar portugueses.

O governo inglês queria que nós fizéssemos um tratado perpétuo para a abolição do tráfico da escravatura e recusava-se a nomear, no preâmbulo desse tratado, todos os nossos estados. Instado para nos garantir as nossas províncias ultramarinas, cuja tranquilidade e fidelidade à metrópole podiam ser prejudicadas pela abolição repentina do tráfico, não quis conceder esta garantia por mais dois anos. Logo o que o governo inglês queria, pelo complexo destas estipulações, era apoderar-se das nossas possessões ultramarinas, porque a garantia que ele estipulava acabava no prazo em que ela era mais necessária.

A insólita reserva do ministério, e muito mais da maioria da comissão em pronunciar seu juízo sobre estas exigências, é uma prova da pouca vida que tem a nossa nacionalidade.

Mas, senhores, esta ficção de nacionalìdade será um estado transitôrio, filho das nossas actuais desavenças com a lnglaterra, ou efeito de uma situação antiga para com aquele governo, um sintoma do corrosivo, que há muito tempo rói as entranhas do païs? Ah! senhores, a nossa ignominia, a nossa miséria, o nosso abatimento datam das nossas ligações com a lnglaterra! É um fado de baixeza, com que os governos daquela nação têm premiado nossa fidelidade e nossos sacrifícios pela sua honra e pelos seus interesses!

A questão, assim encarada, demanda mais longos desenvolvimentos; mas é assim que ela deve ser estabelecida e tratada. Eu vou ver se preencho esta indicação: em tempos, em que a irreligião da nacionalidade tem de apodrecer muitos corações, façamos ao menos este exercício penitenciário, recordando-nos das injúrias, dos vexames, que devemos aos nossos amigos. E com isto também responderei a um discurso grego e romano, poético e prosaico, terrestre e marítimo, um discurso altamente administrativo e profundamente diplomático, cujo mérito consistiu na repetição de uma trivialidade tratando a Inglaterra de nossa antiga e fiel aliada, mérito que de nenhum modo compensou o cansaço do orador e o enjoo da assembleia.

Eu deixo os tempos, em que as nossas relações com a Inglaterra não tiveram um carácter de regularidade e permanência, que pudessem formar um sistema diplomático digno de análise, e próprio para fundamentar um juízo. Começarei pois as minhas observações desde o reinado de D. Fernando I.

Este rei fraco e versátil tinha uma filha formosa ...

O SR. GARRET: Não era formosa.

O ORADOR: - Não seria: julguei que fosse contra as prerrogativas da coroa chamar feias às princesas... Tinha uma filha, como dizia, o nosso fraco e versátil rei Fernando I, e prometia a mão dela a todos os príncipes, e por isso com todos eles fazia e desfazia alianças. Afinal ajustou-se o casamento com el-rei de Castela, e as estipulações desta aliança eram-nos vantajosas, podendo, em virtude dela, reunir-se na dinastia portuguesa a coroa de Castela. Nesta negociação não teve parte a rainha D. Leonor, que meditou logo contrariá-la. Na casa de Lencastre suscitaram-se pretensões à coroa de Castela, e a mão da princesa Beatriz foi logo prometida ao duque inglês, e com ela a ajuda de nossos braços para conquistar o trono de Castela. Estes recíprocos empenhos estipularam-se no tratado de 1372, e o devasso João Fernandes Andeiro foi o seu negociador.


[continua... amanhã]

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Discursos Parlamentares - 3 (O 2º Discurso do Porto Pireu,: a tréplica de José Estevão) 2ª Parte de 5

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(Continuação do texto postado a 7 de Julho, mantendo as observações e referências então feitas)
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A ordem calçou as forças da revolução, e conheceu, porque a preparou, a sua decadência. Então os ordeiros, que dela haviam recebido empregos, procuraram segurá-los, obsequiando o partido a quem o poder devia dentro em pouco ser entregue. Daí veio a lei das reintegrações; essa lei é uma impetra do cumpra-se da chancelaria cartista nos despachos da revolução. Mas, se essa revolução deu aos ordeiros talher na mesa do orçamento, ou se os passou do fundo para a cabeceira dela, porque não cedem eles os lugares, que não eram seus, aos primeiros comensais? Em vez deste procedimento, procuram alargar a mesa, fazendo mais dispendioso o jantar, e obrigando o povo, que nada tem com estas generosidade, a pagar para os novos convidados! E é isto que se chama reunir a família portuguesa em volta do trono? Sim, é reuni-Ia, mas em volta do orçamento.

Quereis vós saber os verdadeiros planos da ordem nesta decantada reunião da família portuguesa? Eu os descubro. Quando nós, com pesar, combatíamos por nossas dissenções políticas, os adeptos da ordem lembraram-se de se constituir em tribunal de paz, de fazer subir à sua presença os memoriais de nossos recíprocos agravos, de decidir o nosso grande litígio como uma questão caprichosa de servidão entre dons vizinhos poderosos, e de fazer uma constituição de retalhos, como se fosse um discurso ordeiro, anulando o voto e a missão da Constituinte. Os adeptos da ordem, depois desta grande obra, ficariam padres definidores, e nós receberíamos o hábito e cordão de leigos para os servirmos no refeitório. Ainda agora não perderam estas pretensões de domínio: um presta apoio ao ministério, com tanto que ele se sujeite as suas correcções, e assim quem fica governando menos é o governo; outro declara que o seu apoio a administração não passa duma neutralidade armada. Sabeis vás os que estão no Pireu? São os que sem cabedais, sem crédito, vendo que todas as letras lhes são protestadas, que os seguradores se recusam a pagar-lhes a importância das apólices, que todos os navios lhes naufragam, ou varam, se metem cegamente em especulações deste lote!

«E a ordem é consequente, e vós sois díscolos.» Um homem que nós quisemos elevar ao poder, um homem cujo nome vós tomastes como um mau agouro para a liberdade, um homem que vós arredastes da administração com ferro e sangue, foi

afinal o vosso ídolo: cantastes a palinodia, e reconhecestes a pureza de nossas intenções. E esse homem, respondo eu, cujo crédito vós prejudicastes momentaneamente com as vossas recomendações, cujo carácter procurastes perverter, e que quisestes levar ao ministério através de todas as considerações, e não obstante as maiores calamidades, esse homem é desalojado da administração, esse homem é substituído antiparlamentarmente, - e vós não inquiris a causa desta mudança, mas antes vos abraçais como s sucessores dele!

Mas um de vós tomou do Sr. Derramado, lavrador sem pretensões, e fez-lhe os martírios que se fizeram ao Redentor. E vós, oráculo da ordem, pusestes a coroa de espinhos sobre uma cabeça nobre: achastes nela cicatrizes de feridas gloriosas, e

rompeste-lhas com os espinhos! Quisestes amarrar-lhe os dois braços valentes: achastes um cortado, e lançastes a corda a parte, que as balas do tirano respeitaram. Quisestes meter-lhe na mão, assim atada, a cana da irrisão: encontrastes já uma espada ilustre, e lançaste-lha aos pés. E, para tudo isto, metestes-vos pelas catacumbas das nossas organizações ministeriais, para lá irdes tirar um cadáver já mirrado! E tínheis ao vosso lado o maior exemplo de surreições ministeriais, que melhor servia ao vosso intento, e respeitaste-lho, só para não ofender as imunidades da ordem. E que terão feito estes dois homens para merecerem de vós tão diverso tratamento? Estão fora do poder, e resistiram ao estrangeiro.

«Mas a ordem é modesta: não se acham em seus bancos esses barões de fresca data, cujas famílias ninguém conhecia.» Permita-me a câmara que, a este respeito, lhe conte uma história. Um sargento relaxado deu licença a toda a guarda e ocupou o lugar da sentinela. Veio o oficial de ronda, perguntou pelo sargento, e ele respondeu: pronto; pela sentinela, e ele respondeu: pronto; pelos outros soldados, e o sargento respondia sempre: pronto, pronto. Assim está a ordem: deputado, pronto; senador, pronto; marquês, pronto; conde, barão, etc.: pronto, pronto. Enfim, a ordem não tem gente para tanta coisa e é forçoso que o mesmo homem acumule diversas dignidades, o que lá não falta, e que apesar disto não tenha todas quantas deseja, o que é uma pena. E não haverá na ordem pessoa que, trajando não a sotaina de tribuno, que nem todos [podem] vestir, mas a roupeta multicor, cujos retalhos foram presente de diversos partidos, saísse com ela do meio das turbas e no caminho para os paços reais a fosse rasgando, e tomasse na primeira adéla uma casaca safada de rasteiro áulico? Se tal personagem não está na ordem, então nem todo o ministério é ordeiro, e há lá fazenda de contrabando.

«A ordem é sábia, inocente, e protectora de todas as classes.» A Bretanha foi um mar de sangue, quando as facções lhe quiseram incutir uma lei e um culto, que repugnava a seus hábitos: a ordem restituiu-lhe a paz. E o dinheiro inglês, distribuído entre aquelas povoações pelo ordeiro Pitt e as pregações dos padres fanáticos, que também eram ordeiros, não concorreriam para as horrorosas cenas que se passaram naquele desgraçado país? Mas que tem essa época de frenesi revolucionário, em que só pecou menos quem pecou para melhores fins, [com o] estado actual da Bretanha, a que me referi, estado que comprova as benéficas influências do progresso e a debilidade da resistência ordeira?!

A Irlanda também deve as suas desgraças às facções, que lhe não permitiram o exercício de sua religião. E quem são essas facções que disputaram à Irlanda a liberdade do seu culto? São os “tories”: e os “toríes” são ordeiros. E que tem a época da luta religiosa, que já acabou na Irlanda, com o seu estado actual, em que suas garantias municipais estão sofismadas, seus direitos políticos restritos, e o suor do seu trabalho entregue a uma aristocracia [ávida] e indolente? Quando o povo irlandês, libertado pelos esforços de O'Connell, feliz, vitorioso e agradecido, levantar estátuas ao seu corajoso defensor, ou as mãos invejosas da ordem irão derrubar esses monumentos de gratidão pública e levantar o seu ídolo sobre as ruínas deles, ou o tribuno O’Connell será declarado ordeiro em concílio ecuménico?

«A ordem não propõe o censo; esse está decretado na Constituição; a nossa lei só regula a prova do censo.» A prova do censo! Que agudeza! que descoberta! Inveni! inveni! Sim: uma prova que destrói o princípio, e que une a todos os erros da doutrina a deslealdade dos meios; uma prova que ofendeu [o] preceito constitucional, que se diz corroborar! «A nossa lei de prova do censo só quer destruir o vago árbitro das juntas de paróquia, substituindo-lhe uma regra fixa e invariável.» Sim: a regra fixa e invariável da vontade do governo, que mandará de suas secretarias a lista das pessoas que quiser recenseadas, e que terá nos empregados de sua nomeação, a quem esses recenseamentos vão ser cometidos, fiéis executores de suas indicações.

Mas a ordem não quer, nem a nação deseja, ver lutar entre si as diversas classes de que se compõe; e a ordem, que nos está pregando sempre esta doutrina, fala-nos continuamente da classe média. Onde está esta classe media, se não há uma inferior e outra superior? Quais são os limites, que marcam a raia destas diferentes classes? A classe média, direis vós, é composta dos cidadãos que têm o censo marcado na lei para votar. E quem são os cidadãos que têm esse censo marcado na lei para votar? São as que formam a classe média. Assim a descrição desta classe e a constituição do corpo eleitoral são coisas que dependem da vossa lei, e a vossa lei do vosso arbitro.

Sabeis vós os que estão no Pireu? São aqueles que vem despachar [às] alfândegas da publicidade estes fardos avariados de história, sem o selo da crítica, e expor à venda no bazar do parlamento, em vez dos panos finos da verdade, as baetas do sofisma.

Estão também no Pireu os que, vendo voltar dos bancos das eleições muita embarcação carregada de quartolas de confiança, de barris de votos, de dornas de actas, e tendo muitas vezes empreendido sem sucesso esta [pesca] do alto com perda de barcos e aparelhos, agora julgam fazer-se senhores do ganho de toda esta especulação, fingindo-se caixeiros e guarda-livros da nação e querendo comprar por sua conta todo o pecado, passando para tudo isto letras em nome dela, com o mesmo direito com que uma vez três alfaiates ingleses proclamaram em nome da Grã­Bretanha.

Estão no Pireu os que, considerando a coroa como uma mina, se associam a todas as companhias nacionais e estrangeiras para a explorar, meditando largar a empresa logo que a veia estiver pobre e as galerias de mineração inundadas.

Estão no Pireu os que, dos livros que lêem, só ficam cogumentos com a recordação de suas vigílias e habilitações académicas; os que cirzem de fazenda emprestada relatórios, leis e discursos; os que chamam ignorantes aos que lhes [opõe?]; e finalmente os que, para que se não estrague o gosto público, recomendam as suas obras com prefácios panegiristas, escritos por sua própria e modesta mão.

Estão no Pireu os que no século XIX mandam vir de França, por atacado, quintais e quintais de discursos do Abdas com molho de Guizot e Royer-Collard, expõem à venda, como iguaria esquisita, a chanfana da soberania da razão, da supremacia legal das capacidades, julgando que a grosseira cozinha doutrinaria, que com seus pastéis tanto tem arruinado a saúde de povos e reis, ainda pede satisfazer o delicado paladar das nações, acostumadas aos apetitosos guisados da soberania popular, da igualdade e da justiça.

Estão no Pireu os que, depois de terem feito suas genuflexões ante a estátua de ferro da usurpação, foram para a emigração adorar algumas estátuas de ouro, que por lá se levantaram, e que depois se recolheram ao país, para se associarem, não com aqueles que haviam sustentado o colosso da tirania, julgando que combatiam pelo bem da nação e pelos direitos da realeza, mas com os que, sem acreditarem em causa alguma, as seguem todas, que têm a cronologia das desgraças públicas marcada no peito com as insígnias das mercês, e que, havendo levantado a usurpador do pó do nada, depois que tiraram todo o partido dos seus malefícios procuraram minar o seu poder para servirem outro senhor, que melhor lhes pagasse.

Estão no Pireu os actores de todos as entremezes, comédias e tragédias ministeriais, que vestem com a mesma facilidade a jaqueta do, o manto do rei tirano e o chambre de áulico retirado, sem lhes importar os apupos da plateia e as censuras dos literatos, procurando só que haja boas enchentes, que as escrituras da empresa sejam cumpridas, embora todos os dias mudemos empresários.

Estão no Pireu os que, deixando o licito comércio da virtude e honestidade, se puseram a traficar em galões, plumas e lantejoulas, e que solicitando um lugar nos mercados das cortes estrangeiras, para irem expor à venda suas fazendas, o não puderam alcançar.

Estão, finalmente, no Pireu os que vieram para a casa comercial Revolução & C.a, como a mocidade do “Miacreditam” e procuram arruinar por todo o modo.

Mas quem é toda esta gente que se acha no Pireu? Que está ela lá fazendo? Foi um sonho! No Pireu só vejo uma companhia de trabalhos braçais, que corre avidamente à praia, quando [chega] alguma carregação ministerial e que carrega por todo o preço os fardos de que ela se compõe, qualquer que seja a firma comercial com que venham marcados.

Caminho de Madrid vem um pobre artista espanhol; traz toda a sua ferramenta em uma pequena seira, volta-se para a sua pátria, que deixa, e diz-lhe modestamente: “Adiós, Madrid, que te despueblas”. Caminho de Madrid vai um granadeiro a passo largo, de arma traçada; perguntam-me que destino leva: “Me voi de refuerzo à Murïllo”. Nós, a esquerda, representamos Madrid saudosa e despovoada; a direita é a divisão de Murillo; e a ordem reúne em si a fatuidade do artista e do granadeiro espanhol. Bem! a nassa situação fica assim menos complicada. A ordem sumiu-se na última votação que tivemos; já não há senão esquerda e direita, e voltamos aos tempos felizes das câmaras da Carta.

Já que tenho estado a registrar o porto Pireu, e a verificar as fazendas que nele desembarcam, vou também verificar o fardo ministerial de 20 de Novembro.

No discurso da coroa, além das comunidades de etiqueta, tudo o mais em meu entender são consequências; essas consequências tem um princípio, que para nós ainda está oculto. Nós somos chamados a avaliar e julgar essas consequências, e esta tarefa é impossível, se o princípio donde elas se derivam nos for desconhecido. Estamos pois autorizados a pedir explicações aos Srs. ministros em nome da lógica. Mas qual é este princípio? Eu vou dizê-lo: é a existência e a organização do actual ministério.

A folha oficial, as discussões, o testemunho de nossos sentidos, tudo nos certifica que nós temos governo e que vós o formais. Como, porém, sois vós governo? Eis aqui um ponto capital, uma questão que domina todas - e sobre ela nada diz o discurso da coroa.

Talvez se estranhe este meu reparo: vou justificá-lo. O ministério actual apresenta um tal enlace de recordações antipáticas, de princípios opostos, de precedentes contrários, de índoles diversas, que é forçoso supor, ou que a perspectiva do poder deslumbra nos Srs. ministros para não veremos inconvenientes desta ligação, ou que algum grande fim governativo fundiu suas consciências e irmanou suas vistas políticas.

Saudade profunda pelas instituições abolidas, entretida pela lembrança de desastres domésticos; versatilidade selada como serviço a diversas causas; furor reaccionário contra todas as instituições populares; política astuciosa, que procura ganhar os corações, enlear as inteligências, e que ensina a deserção como uma virtude; finalmente, frenesi executivo, que considera os homens como obstáculos materiais, e as leis como peias impertinentes - tudo isto se acha representado no actual ministério com caracteres de sangue.

Por estas observações, que já são populares, a administração de 20 de Novembro apresentou-se [ao país]. suscitando toda a curiosidade dum enigma e todos os receios de um mau presságio. As explicações, que posteriormente têm dado os Srs. ministros, têm legitimado esses receios, sem diminuir essa curiosidade.

Esta minha exigência de explicações não parte só dum princípio de conveniência, mas é, em meu entender, o cumprimento duma obrigação sagrada. Ao encerrar as nossas sessões, deixámos à coroa um ministério coberto com os nossos votos, ungido com a nossa confiança, e esses votos e confiança valem bastante aos nossos olhos, e aos do país, para deixarmos de inquirir as causas por que se frustrou o seu influxo.

A coroa retirou a sua confiança aos ministros; a acção da sua prerrogativa parou aqui. Mas sobre nós pesa tarefa mais árdua e odiosa: nós somos obrigados a trazer ao banco dos acusados os ministros que mal servem o país.

Assim prevenidos pela resolução da coroa, nós precisamos saber se o ministério transacto merece que entreguemos ao tribunal da segunda câmara o exame da sua política; é, pois; em nome da prerrogativa da câmara, que nós interrogamos a prerrogativa da coroa.

As lutas parlamentares tinham cansado o país; depois de embainhada a espada de nossas dissenções políticas, por toda a parte se faziam votos por um sistema de tolerância e concórdia. A palavra conciliação foi repetida no meio desta casa entre os nossos aplausos, e inculcada como a senha de uma política protectora, que devia melhorar o nosso futuro e esquecer o nosso passado o ministério de 18 de Abril ia realizando este esperançoso programa; o timbre oposicionista do lado direito desvaneceu-se nas primeiras questões do governo, e tanta era a sua tendência para segurar o poder, que nós nos vimos obrigados a levantar nestes bancos alguma voz de oposição para sustentarmos o equilíbrio parlamentar. Que causas destruíram, pois, este desejado acordo? Que causas enlutaram outra vez o nosso horizonte político, que começava a limpar-se?

Recordemos a organização do ministério de 18 de Abril. A coroa chamou aos seus conselhos todos os homens importantes; rodeou-se de todos os partidos; ouviu as suas exigências. A missão organizadora foi incumbida a diversos caracteres, e uns depois dos outros pediram a sua majestade a exoneração daquele honroso encargo. Ensaiaram-se todas as combinações, tentaram-se todos os nomes, e nós aguardámos, sem a dificultar, a escolha da coroa. Afinal apareceu o ministério de 18 de Abril, e ninguém pode contestar que ele foi o resultado do mais livre e meditado exercício da prerrogativa real. Que causas, pois, anularam a expressão espontânea da vontade da coroa?

Finalmente, senhores, nós somos obrigados a julgar e comentar à face do país todos os sucessos importantes, que tenham acontecido no intervalo de nossas sessões; e a mudança de um ministério é na ordem constitucional um facto da maior transcendência. Não podemos, pois, ficar silenciosos sobre ela, sem abnegarmos do nosso mandato.

Esta obrigação de julgarmos o facto da nova administração redobra, se atendermos ás várias mas importantes explicações que geralmente se dão deste fenómeno político.

Uns dizem que se apresentou à coroa como iminente um grande perigo: que a ameaçaram com a desmembração dos nossos territórios, e que a diplomacia estrangeira, irritada pelas resistências nacionais, pediu o sacrifício do ministério de 18 de Abril para aplacar suas iras. Outros espalham que o ministério fora imposto brutalmente à coroa que ainda roxeiam em pele delicada os vergões da mão estrangeira, que cometeu tal atentado; e que este ministério há de ser dócil instrumento das vontades de quem o elevou ao poder. Outros, finalmente, sem negarem esta origem, afirmam que os nomes europeus dos Srs. ministros. conhecidos e respeitados em todos os gabinetes, hão de só como seu prestígio resolver a nosso favor todas as questões diplomáticas e trazer-nos outra vez ao tempo em que vinham os embaixadores da Pérsia tributar homenagem aos nossos reis.

Se este perigo ainda existe, não obstante haver-se tomado uma providência para o conjurar, por que motivo não havemos de ser conhecedores dele, para resolvermos as medidas que demanda? Se com efeito existiu e já não existe, por que razão, junto com a notícia da sua existência, se nos não há-de comunicar a agradável nova de que já o não devemos temer? Se o ministério não tem a origem estrangeira que se lhe atribui, nem está disposto a servir cegamente a diplomacia, por que razão se não hão-de negar formalmente estas alegações? E se o ministério, em uma palavra, possui esse especifico de paz e grandeza, que se lhe atribui, porque há-de cometer-se a barbaridade de no-lo encobrir?

Estas perguntas desagradam aos Srs. ministros, e S. Ex.as, para se livrarem delas, sustentam que eu estou pisando terreno que me é defeso pela lei fundamental, e cobrem com as prerrogativas da coroa o seu embaraço e pouco tacto. Este recurso é um pouco cobarde; mas, assim mesmo, é preciso inutilizar-lho.

A prerrogativa da coroa não é uma homenagem, é um princípio; não é um sentimento, é uma doutrina; respeitá-la é observar as leis que marcam a sua acção. A prerrogativa é livre, libérrima; mas os actos do seu exercício geram responsabilidade, e essa responsabilidade está nos Srs. ministros. O primeiro acto por que o ministério é responsável é a sua própria existência, pois o sistema representativo fora um absurdo se não tornasse alguém responsável pelo mais importante facto político que ele reconhece.

Os Srs. ministros dirão talvez que aceitaram as pastas, porque sua majestade lho ordenou. Mas uma organização ministerial não ë um objecto de disciplina de quartéis; um ministério é um compromisso entre quem o aceita e o nomeia, e quaisquer que fossem as considerações que ditaram à coroa essa nomeação, elas encamaram na cabeça dos Srs. ministros, que, pelo facto de aceitarem o poder, as esposaram. Assim, sem entrar na esfera irresponsável da prerrogativa, que eu respeito lealmente, o grande facto da mudança do ministério está debaixo da nossa censura.

A prerrogativa é livre, já o disse; mas não é muda. É verdade que ela não entende a grosseria de nossos dialectos, nem nós podemos compreender a sublimidade da sua linguagem. Mas tem intérpretes, tem línguas, que são os Srs. ministros, e a estes é que nos dirigimos. É, pois, um facto deplorável que eles tenham emudecido.

A prerrogativa da coroa é livre e independente, como a prerrogativa da câmara; mas a independência das forças políticas não é a sua isolação: todas elas se podem entender sem se confundirem; e é isto que nós exigimos."


(A continuar amanhã, 11 de Julho)
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