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Quem se não recorda desta excelente revista francesa, portadora de artigos e apresentações sobre os mais variados jogos, nascida em 1980 e prematuramente morta em 1990 com o síndrome electrónico que os "The Buggles" haviam profetizado já em 1979 para campos paralelos ao cantarem a ainda tanto ouvida "Video Killed the Radio Star"? De entre as suas secções havia uma que eu considerava particularmente atractiva e que era a dos problemas lógicos, aqueles em que um Fabiano desembarcava numa ilha longínqua em que havia ilhéus que só mentiam (M), ilhéus que só diziam a verdade (V), ilhéus que diziam o que lhes dava na mona em termos de mentira ou verdade e ilhéus doidos, do género de, ao serem questionados sobre como ir para o palácio do régulo , tranquilamente responderem: "Não mais que meio quilo de rizoma de inhame, se faz favor!". Excelente exercício, para apreciar o jogo da verdade com que tantas vezes a vida confronta e que já levara Salomão, para poder entregar o puto à mãe biológica, ao desvario de ameaçar cortá-lo em postas (hoje, face a acontecimentos recentes, não sei se o puto escaparia sem ser espadeirado, pelo menos em sentimentos). De facto, na sua expressão mais simples mas mais extremada, o problema corresponde às dualidades VV, VM ou MV e MM - sem entrarmos no exemplar discurso pirandélico do "Cosi é - se vi pare!" [1] ou em assunções dogmáticas que, mesmo em campos bem terreais , já levaran um já aqui citado personagem político desta terra a publicitar, do cimo da sua procacidade, que "há muitas formas de contar a história, mas só há uma verdadeira - que é a nossa". E disse!
Quando eu coçava as calças nas tábuas dos auditórios de Ciências Jurídicas, curso que foi possível levar a termo sem, enquanto na Faculdade e por mor do curso, pôr os cotos num Tribunal para assistir a um julgamento que fosse (o que não deixa de ser estranho e que espero tenha entretanto mudado), discutiu-se, um dia, numa prática de Processo, o valor e o contributo da "acareação" - considerando que esta corresponde elementarmente às situações de confrontação MV ou VM e MM entre testemunhas e/ou partes. Nestas situações, em qualquer delas, a conduta geral é que as pessoas se chamam clara e mutuamente de mentirosos, mesmo que assumam formas dulcificadas de expressão como o referirem que o outro "lado" diz "inverdades" (situação que não cabe num tribunal mas cabia até há pouco noutras audiências, mas até nessas esse resquício de civilidade já deixou de estar na moda) ou puxem cada um para si o estreito cobertor da verdade, o que, em se mantendo essencialmente a bipolaridade expressa e em competindo ao julgador dilucidá-la, raramente conduzirá a uma posição VV. Como dizia o assistente: sem se carrearem novos factos, se os depoentes são igualmente nhurros fica-se praticamente na mesma. Ganhou-se foi tempo e, eventualmente um golpe de asa que sopite o elo mais fraco.
Quer isto dizer que, numa grande frequência de situações e perante categorizadas nhurrices, passado o ponto de não retorno em problemas de tal simplicidade lógica , não é possível, "prima facie" e sem outras inserções fácticas, discernir se se está perante a mentira de A ou a mentira de B ou a mentira de ambos (A e B) só porque um qualquer (ou ambos) dos confrontadores-confrontados decide dizer e manter que é o outro que está a mentir. E até pode suceder, por ironia, que quem mais desbriadamente o afirme esteja simplesmente a cuspir para o ar, a promover o desgaste temporal do parceiro ou a jogar no peso do auditório. No "poker" também sucede.
"Jeux et Stratégie", n'oubliez pas!" Quase esgotada mesmo em enésima mão, ainda há em França alfarrabistas que têm números avulsos para a venda. Excelentes para os tais problemas lógicos que podem modelar dimensões de comportamento. Mas que - já que, fora esses, tantos outros problemas, e graves, há a resolver por quem o deva fazer - nunca os conflituosos opoentes assumam o estupefacto e anónimo auditório, em que me incluo, como se se tratasse de uma inerme congregação de papalvos, que certamente não é!
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[1] Peça de 1917/18, apresentada em tradução portuguesa sob o título "Para cada um sua verdade".
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