Na minha mensagem anterior apresentei três fotografias que, de certa forma, antecipavam já a presente. Saindo da Bifurcação, no extremo da rua Álvares Cabral, onde - como o nome indica - os "eléctricos" das linhas 13 e 14, chegados do Porto por um traçado comum, divergiam respectivamente para Santo Ovídio e para Coimbrões (e é interessante recordar um importante político deste País, de calções curtos, a pedir ao guarda-freio que lhe confiasse o ferro para mudar a agulha) chega-se, descendo para poente, ao vale da Fonte Santa, cavado por uma das diversas linhas de água que descem das colinas da Barrosa para desaguar no Douro. Ora este vale da Fonte Santa é para mim particularmente importante até porque, no seu extremo Sul, onde passa a Rua Conselheiro Veloso da Cruz, ainda resiste, de tronco carcomido, um dos dois plátanos gigantes que aí cresciam e que provavelmente contariam hoje um século, porque eram já gigantes quando eu, que ali nasci, formei conhecimento do que me rodeava. O plátano-irmão morreu, vítima do tempo, como também morreu o que foi o meu primeito tecto, que ficava na homónima rua, do lado nascente do vale, sobre o Bairro da CP que então fervilhava de gente e em que vim encontrar hoje algumas casas entaipadas. Numa visão para Norte, a imagem seguinte mostra o vale, com o extremo da plataforma da estação de CF e o viaduto que lhe sucede;. A segunda imagem mostra aquele amigo-árvore, que teimosamente sobrevive a coroar o outro extremo do vale num até-quando de todos os dias.


O plano do vale completa-se com a primeira foto da mensagem anterior, que mostra as ruínas de instalações que foram da Companhia Mineira do Norte de Portugal, empresa controlada por interesses alemães durante a II Grande Guerra - e por onde passava muito do negócio do volfrâmio e do estanho nessa conturbada época. Recordo-me do clarão nocturno que, dali partindo, iluminava o vale [2]. As duas outras fotografias dessa postagem mostravam já, mais para o lado da estação da CF de Vila Nova de Gaia - Devezas (como então se escrevia), a chaminé e a estrutura de fornos da Companhia Cerâmica das Devezas, hoje em manifesto campo de desmonte. E aqui surge um primeiro problema: esclarecido que fui sobre a obrigatoriedade de qualquer entidade demolidora registar por fotografia a situação prévia do imóvel demolido, nada me esclarece que, no caso de instalações industriais, se deva proceder ao registo histórico do "miolo" das construções desmontadas. Sem valorização da perspectiva arqueológica industrial, ficamos, como em muitas outras coisas, pelas fachadas - e tranquilizamo-nos com isso. As fachadas e os muros de janelas tapadas chegam - e, por isso, aqui vão alguns, daquela Companhia Cerâmica. ou de instalações que lhe eram próximas [3].


Saindo agora da Fonte Santa e continuando a descida pela rua Conselheiro Veloso da Cruz, no sentido da estação de caminho de ferro de Vila Nova de Gaia - Devezas (como então se escrevia), o primeiro encontro a registar é dado pela lápide existente no nº 353, celebrando naquela casa modesta, de um só piso, o nascimento de Teixeira Lopes - um dos nomes grandes da escola de escultores de Gaia.
Duzentos metros mais adiante fica o portão da já referida Companhia Cerâmica das Devezas, hoje aberto, devassado, com os dois leões de ferro fundido reduzidos à impotência de guardarem apenas recordações, enquanto não inventarem a forma de os levarem de noite para um "passeio" até qualquer sucateiro clandestino:
E aqui surge um outro problema: de uma forma original a "Cerâmica do Costa", como era então designada, revestiu a parede do lado sul da rua Conselheiro Veloso da Cruz com arranjos de azulejos que fabricava e comercializava...
e com dois grandes paineis de azulejos, que, em reprodução que se diria fotográfica, representam o interior da parte artística da referida fábrica - como se pode observar seguidamente, apesar das péssimas condições atmosféricas em que decorreu a toma de imagens
Estes grandes paineis acompanham mais pequenas representações polícromas de paisagens de corte clássico, demonstrando as capacidades e qualidades da oferta daquela unidade fabril.
Reparando nas deteriorações que já se verificam no referido mostruário e nestas representações polícromas e até no leve abaulado que se julga detectar na superfície de suporte, teme-se a deterioração de toda a azulejaria assim exposta e muito em especial dos referidos paineis, que têm incontornável valor histórico - a nível concelhio e mesmo nacional.
Certo de que a Presidência da Câmara de Gaia e a Vereação da Cultura estarão na generalidade atentos ao contributo histórico da indústria cerâmica para a estrutura industrial do concelho (e não apenas da Cerâmica das Devezas, mas igualmente do Fojo, do Carvalhinho, da Electro Cerâmica e outras), resta solicitar que, na especialidade representada por este caso particular, se acautelem as referidas reproduções históricas antes que se percam. E que, para já, motivem um trabalho de descrição e identificação dos conjuntos e dos personagens neles representados.
(a continuar)
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[1] Escrevi "Devezas" por mera motivação sentimental, já que não sou em nada contra a evolução de uma língua na sua forma escrita. Vi escrito "prohibi", escrevi "proïbi" (com trema), tal como "europea" e "europeia", "tão" e "tam", etc. etc. Apoiaria at´+e uma escrita mais fonética que acabasse com os lixívia, axiologia e exemplo.
[2] Ainda, ligeiramente mais velhinho, me pergunto o que lá fariam. Metalurgia do volfrâmio é duvidoso, embora possível mas incipiente. Fundição de minério de estanho e lingotagem é talvez a hipótese mais provável. Porque separadoras havia-as em todos os cantos... e não careciam nem provocavam chama.
[3] O fenómeno tem exemplos muito recentes. E quase sempre para o lado errado. Como diria um meu compadre, alentejano de cepa, e levaria vários adeptos dos "ancien regimes" quando esses passaram a "anciens" a abanar a cabeça (e também há exemplos muito recentes disso), "o passado é uma porra". Daí a que a solução muitas vezes preconizada seja a de matá-lo. Outro exemplo pode ser dado pela da subestima dos arquivos empresariais em sede de legislação de falências e liquidação de empresas: feitos "res nulius" acabam dispersos, soltos ao vento. E muito do passado, que nos poderia ensinar o futuro, perde-se com isso. Bastaria uma destinação de salvaguarda e uma alínea na legislação que o impusesse. Muito boa gente já levantou esta maldade escondida - mas, pergunta-se, algum dos governos que arrotam excelências quando estão no poleiro já alguma vez tentou "pôr o guizo ao gato"?
[4] Repete-se este facto: a maioria das imagens fotográficas desta postagem e da que se lhe seguirá foram captadas em péssimas condições atmosféricas. Lamenta-se certamente este facto.