segunda-feira, 28 de julho de 2014

E por falar em semoventes



Na portaria deserta de um antigo complexo industrial, de que quase só restam industriais complexos (e a nossa economia reflecte isso, sobretudo quando comentada por senhores de situação que afirmam nunca terem tido nada a ver com o desmantelamento que levou o País a uma certa "industrial zombiness" ) passa hoje um acesso viário e situa-se uma passagem de peões devidamente assinalada que dá acesso a uma "grande superfície". Porque os senhores automovimentados passam por ali com displicente desenvoltura e manifesta necessidade de óculos, aguarda-se que, a qualquer momento, se possa comprovar uma verdade nacional: "só vale a pena providenciar quando a Providência não providenciou devidamente". Esta verdade dá para tudo: para condução perigosa ou negociação conturbada, em quaisquer circunstâncias. E não se esqueçam da influência do ambiente! Nem da alteração das ditas circunstâncias.

Lembra isto uma cena canalha em tempos testemunhada não longe dali: uma desarmada peonagem que ia sendo atropelada e ainda por cima num "stop" não stopado lavrou o seu natural descontentamento pelo susto apanhado, invectivando vernaculamente e pondo em causa a ascendência do azougado máquinocavaleiro. Mostrando manifesta criatividade, este assumiu o serviço e devolveu a bola, pondo-se em prudente atitude de escape, apontando para o sinal e botando presporrenta faladura: Calem-se e aprendam, suas bestas, que um stop também é para os peões pararem, 'tá bem?!

E outra ainda, que nada tem com o antecedente, mas que goza da oportunidade de ter sido ouvida num "café" a caminho de Santo-António-nos-Valha, em pleno "aperto de 2011" dos juros pelos mercados e dos mercados pelos juros e da aldrabice de que era um PM português que tinha desencasdeado as crises nacional e internacional: "E ainda dizem lá na Junta que os mercados fazem falta! Porreta, malagueta!"
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sexta-feira, 25 de julho de 2014

O discurso de Marco António [1] como última homenagem a Júlio César (do "Julio Cesar", de Shakespeare)

Há momentos em que é bom meditar, tranquilamente, sobre certos espelhos da natureza humana. Há muitos, muitos anos, dizia-me  um velho professor meu - e que até era padre - que para  conhecermos melhor a natureza humana  nos bastaria estudar profundamente a obra de três autores: Shakespeare, Nietzsche e Dostoievski. Recordo essa conversa e o apontamento que dela fiz, mal pensando que - quase uma vida depois e em terras mais a Sul, - eu seria tentado a recordá-la ao procurar um clássico texto que o primeiro autor nos deixou na sua famosa peça "Júlio Cesar" que o cinema várias  vezes trouxe ao grande público (cito os desempenhos de Marlon Brando, em 1953, e de Charlton Heston, em 1970, que se podem encontrar no "YouTube").  Trata-se da fala de Marco António aos Romanos, na escada do Senado, depois do monólogo perante o  cadáver ainda quente de César e do discurso justificativo de Brutus. Existem variantes do texto e a tradução não será das melhores, do que vos peço compreensão e desculpa. O momento, por outro lado, é-o.

"Amigos Romanos, concidadãos, dai-me os vossos ouvidos. Vim para enterrar César, não vim para louvá-lo. O mal a que os homens procedam sobrevive-lhes, mas o bem que em vida façamos será quase sempre enterrado com os nossos ossos - e que assim seja também para César. Disse-vos o nobre Brutus que César era ambicioso. E, se isso foi verdade, essa falta tão grave terá sido paga por César com a própria vida, aqui mesmo,  às mãos de Brutus e de outros com ele. Mas Brutus é um homem honrado, e assim são todos esses, todos homens honrados. Venho pois para falar no funeral de César. Ele era meu amigo, fiel e justo comigo. Mas Brutus diz que ele era ambicioso. E Brutus é um homem honrado!

César trouxe muitos prisioneiros a Roma e estes,  para serem libertados, encheram os cofres de Roma. Parecerá isto uma atitude ambiciosa de César? Quando os pobres sofriam, César chorava. Ora a ambição torna as pessoas duras e sem compaixão. Mas, Brutus diz que César era ambicioso. E Brutus é um homem honrado!

Tereis todos visto que, durante as Lupercais [2], eu, por três vezes, ofereci a César uma coroa real e que ele por três vezes a recusou. Será isto ambição? Mas Brutus diz que ele era ambicioso e Brutus, todos o sabemos, é um homem honrado!

Eu não vim aqui falar para discordar do que Brutus disse. Mas tenho que falar daquilo que sei. Todos vós já amastes César e tivestes razões para amá-lo. Qual a razão que vos impede de, agora, na morte, lhe prestardes homenagem?

 [Marco Antônio faz uma pausa no discurso. Na audiência, alguns ouvintes começam a refletir sobre o que ele disse, questionando-se se César teria, afinal, merecido a morte que teve. Passada esta breve mas solene interrupção, Marco António retoma a palavra:]

Ontem, a palavra de César seria capaz de enfrentar o mundo, agora jaz aqui morta. Ah! Se eu estivesse disposto a arrastar os vossos corações e mentes para o motim e a violência, eu falaria mal de Brutus e de Cássio, os quais, como sabeis, são homens honrados.

Não vou pois falar mal deles. Prefiro falar mal do morto. Prefiro falar mal de mim e de vós do que desses homens honrados.

Mas eis aqui um pergaminho com o selo de César. Achei-o no seu armário. É o seu testamento. Quando este testamento for lido  - porque, perdoai-me, eu não pretendo lê-lo! – os pobres arrojar-se-ão para beijar os ferimentos de César e para molhar os lenços no seu sagrado sangue.

[O povo reclama  e exige a Marco António que leia o testamento .]

Tende paciência, amigos, mas eu não devo lê-lo. Vós não sois de madeira ou de ferro, mas sim humanos. E, sendo humanos, ao ouvirdes o testamento de César inflamar-vos-eis, ficareis furiosos. É melhor pois que não saibais que sois os herdeiros de César! Porque, se o souberdes..., o que poderá acontecer? Mas quereis mesmo levar-me a ler o testamento de César? [Pausa interrogativa] Formai então um círculo em volta do corpo e deixai-me mostrar-vos César morto, aquele que escreveu este testamento.

Cidadãos. Se tendes lágrimas, preparai-vos para soltá-las. Todos conheceis este manto. Vede: foi neste lugar que a faca de Cássio penetrou. Através deste outro rasgão, Brutus, tão querido de César, enfiou a sua faca, e, quando ele arrancou a sua maldita arma do ferimento, vede como o sangue de César jorrou. E Brutus, como sabeis, era o anjo de César. Oh!,Deuses, como César o amava. O golpe de Brutus foi, de todos, o mais brutal e o mais perverso. Pois, quando o nobre César viu que Brutus o apunhalava, a ingratidão, mais que a força do braço traidor, parou seu coração. Oh! Que queda brutal, meus concidadãos. Então eu, vós,  todos nós também tombamos, enquanto esta sanguinária traição sobre nós florescia. Sim, agora chorais!  Percebo que sentis  por ele um pouco de piedade. Boas almas! Chorais ao ver o manto do nosso César despedaçado.

Bons amigos, queridos amigos, não quero estimular a vossa revolta. Aqueles que praticaram este acto são honrados. Não sei quais as queixas e os interesses particulares que os terão movido a fazer o que fizeram. Mas são sábios e honrados e tenho a certeza que vos apresentarão as suas razões. Eu não vim aqui para roubar os seus corações. Eu não sou tão bom orador quanto Brutus é. Sou um homem simples e directo, que amo os meus amigos.

[Ouvem-se novos comentários das pessoas, agora lamentando o assassinato e censurando os assassinos. E Marco António encerra a sua oração fúnebre:] 

Aqui está o testamento, com o selo de César. A cada cidadão ele deixou 75 dracmas. Mas, mais ainda: para vós ele deixou também os seus bens. As suas propriedades, deste lado do Tibre, com as suas árvores e o seu pomar, serão tanto vossas como dos vossos próprios herdeiros  e sê-lo-ão para sempre.

Este era César: quando aparecerá outro como ele?

[A turba, em revolta, sai rumo às casas dos conspiradores, para vingar César.]"

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[1] O romano, não o hodierno.
[2] Festas anuais romanas, em honra do deus flautista e assustador (Pã ou Luperco), que nos deixou a palavra "pânico".






quarta-feira, 23 de julho de 2014

A patriótica suspensão

Do preâmbulo do Decreto nº 858,  da Presidência do Ministério, de 19 de Setembro de 1914, adiando uma eleição nacional (publicado a 22 desse mesmo mês no D.G. nº 172)::


"Atendendo a que persistem ainda os motivos de ordem internacional que aconselham aos partidos republicanos a patriótica suspensão das questões políticas e internas..."

Ao menos aprecie-se essa atitude com 100 anos e abandone-se o triste hábito de transformar uma ventoinha em turbo-dispersor!

terça-feira, 22 de julho de 2014

100 olhos em Gaza ...

E eis que me questiono sobre o que Aristides de Sousa Mendes sentiria se hoje fosse Consul de Portugal em Gaza..