A "CENSURA THEATRAL " EM 1892: ABEL BOTELHO E "OS VENCIDOS DA VIDA"
Militar filho de militar, escritor, diplomata, nascido em Tabuaço (1856) e falecido em 1917 na Argentina, onde representava Portugal. Um dos pugnadores pela bandeira que temos. Defensor da verdade, dura que fosse - mas que lhe permitiu, numa serie de obras motivadas pela preocupação ("Patologia Social" ou "Patologia do Social", tal a designação do conjunto) de procurar e expor vários lados negros da sociedade que tínhamos e que, anos volvidos, em muitas coisas vamos tendo. A obra com que abriu essa série foi, para a sua época e, para muita gente, um verdadeiro murro no estomago. Polémico, gerou polémica. Também no teatro ver-se-ia atacado e até afastado de cena. em pelo menos dois episódios (1884 e 1892). Neste segundo caso a Censura Teatral atuara logo após a primeira representação, fazendo um "não mais"!. Chama-se a peça "Os vencidos da vida" e disse-se que o violento ataque que sofreu (já lá vamos!) teria sido devido a ter satirizado os que usaram esse nome. Curiosamente, porém, a crítica enche toda a primeira página do "Diário do Governo" de 8 de Abril de 1892. Com demasiadas repetições, raiando o gongórico, a commissão alarga-se bastamente e justifica-se lançando flores envenenadas. Dir-se-ia que, se o alvo fosse aquele, podia dispensar-se o uso e reuso de zagalote. Talvez o objetivo não fosse pois tão magro quanto isso! Vale a pena ler o texto da Commissão (é comprido mas interessante embora monotípico como o discurso de todas as censuras). Pelos laivos acratas que por vezes apontaram ao censurado e pelo seu fontal antagonismo a rodeios, deve ter ficado azedo com a honra das duas colunas que lhe "dedicaram" na folha de rosto do Jornal Oficial. E, sobretudo, veio trazer mais valor (e sede de a ler) a essa peça em 3 atos, censoriamente rejeitada num ato só e que, ainda que tenha visitado obra de Abel Botelho, desconheço essa de todo. Fico sequioso por isso, onde apareça!Comparo Abel Botelho `4ª sinfonia de Beethoven : excelente também, mas menos conhecida... porque foi logo cair entre a 3ª e a 5 [1]
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MINISTERIO DOS NEGOCIOS
DO REINO
Direcção geral de
administração politica e civil
3ª Repartição
Por ordem superior se publica a
seguinte resolução da commissão de censura theatral:
O decreto de 29 de março de1890,
que regula as condições dos espectaculos publicos, prohibe, no seu artigo 1.º,
as representações theatraes que, entre outras offensas, contenham caricaturas
ou imitações pessoaes, referencias directas a quaesquer homens publicos ou pessoas particulares, offensas
ao pudor ou á moral publica.
O § unico d’este artigo attribue á
autoridade administrativa a faculdade de prohibir a continuação do espectaculo
ou a repetição d’elle, uma vez que esteja incurso em qualquer dos casos de
offensa que o mesmo artigo ennumera.
Tendo subido á scena do teatro do
Gymnasio, em a noite de 22 do corrente, a peça em tres actos Os vencidos da vida, do escritor Abel
Botelho, a auctoridade administrativa, usando das atribuições que a lei lhe
confere, prohibiu que a mesma peça tornasse a ser ali representada, por entender
que n’ella se davam as razóes justificativas d’essa prohibição
A empreza do mesmo teatro, porem,
aproveitando a faculdade de recurso para a comissão de censura theatral, que
lhe é garantida pelo mencionado decreto, usou d’ella, interpondo o recurso que,
por ordem do nosso presidente, o ex.mo ministro e secretario
d’estado dos negocios do reino, nos foi mandado julgar.
A commissão, tendo-se reunido sob
a presidencia do sr. conselheiro José de Azevedo Castello Branco, por quem s.
ex.ª o ministro do reino se fez substituir, procedeu á leitura da peça em questão , no
manuscripto apresentado pela empreza recorrente, e concluiu unanimemente:
1.º Que a peça Os vencidos da vida contém caricaturas e
imitações pessoaes: referencias directas a homens publicos e a pessoas particulares;
ofensas ao poder e á moral publica;
2.ºQue por todas essas razões
está legalmente justificada a sua prohibição.
A commissão, em sua consciencia, e
no desempenho do seu dever, nada mais tinha a acrescentar a estas
conclusões. Comtudo, desejosa de
patentear bem o seu espirito tolerante e apaziguador, e a equidade da sua final
deliberação, fará ainda, muito sumariamente, algumas considerações, que julga indispensaveis
para esclarecimento do seu modo de ver.
Assentando no espirito geral da litteratura
contemporanea, e designadamente no da litteratura dramática, reconhece-se uma
tal confusão nas ideias moraes, uma tal obscuridade na distincção do bem e do
mal , que se torna precisa a maior penetração critica para saber reduzir á
primitiva simplicidade as noções que uma arte corrompida tornou complexas e
falseou.
A acção energica d’essa arte nos
costumes publicos, operada no decorrer de um periodo já longo, tornou estes
menos sensiveis á compreensão delicada do que deve ser a arte pura, mais
propensos a uma larga tolerancia com as aberrações do gosto, medianamente
exigentes em pontos de moral.
Ir de encontro, abruptamente, a
este estado inconsciente da opinião e da tolerancia social, seria da parte d’esta
commissão um exagero de austeridade, que de certo poucos applaudiriam. Era,
portanto, dever nosso analysar, longe de toda a preoccupação exclusiva e
absoluta. E antes sob o ponto de vista mais indulgente, se a obra dramatica submettida
ao nosso exame seria susceptivel de soffrer
córtes, alterações, emendas, suppressões de phrases ou de scenas,
substituições, que a transportassem, pelo menos, ao nivel ao nível em que tantas
outras são toleradas sem protestos nem clamores. A commissão teve o desgosto de reconhecer que
não podia adoptar este alvitre conciliador.
Não é só a fórma , não são apenas
meros accidentes superficiaes que tornam a peça do
auctor Abel Botelho profundamente ofensiva do podor [sic] e da moral publica;
essa offensa brota incessante do plano, da contextura, da essência, do
desenvolvimento, da sucessão, dos fundamentos de toda ella.
Nenhuma outra razão tinha de
invocar a auctoridade, para justificar a medida prohibitiva que adoptou, e, com
effeito, nenhuma outra parece ter sido invocada.
Todavia, não são menos graves e
ponderosas as outras duas offensas, em que a peça incorre, ambas previstas na
lei; a das referencias directas e a das caricaturas e imitações pessoaes, como
já se disse.
N’este ponto, cumpre á commissão
registar aqui, que não desconhece quão vulgar
é a frequencia de tal abuso em muitos dos nossos teatros, com menoscabo
da lei expressa e
grande vexame dos cidadãos offendidos na sua dupla individualide [sic] physica
e moral.A tolerancia reprehensivel de que notoriamente a auctoridade usa, para
com os delinquentes n’este caso, não pesaria no animo d’esta commissão para a
levar a ser menos rigorosa no actual momento, se a peça, confiada à sua
apreciação, pecasse apenas n’esses dois pontos e fosse immaculada no daas offensas à moralidade. A protecção da
lei e a energia e solicitude dos seus agentes, não podem abandonar, indefezos,
ao desprestigio, ao descredito, que d’estas exhibações lhes resulta, os
sindividuos por elas attingidos , quer sejam os mais humildes cidadãos, quer os
mais altos magistrados.
Sob este ponto de vista, a peça
de que nos occupâmos éaltamente condamnável, porque, visando individuos certos,
que os espectadores facilmente reconhecem, faz mais ainda do que caricaturá-los
numa deformação da sua personalidade publica, desfigura-lhes os caracteres no
lado privado e intimo, tornando os agentes dramaticos no enredo phantasiado, e
pesonagens carregados de torpezas a determinarem pelas suas acções a expansão
immoral do drama. Assim, a ignominia em
que o auctor se arrasta e apresenta,não só os enxovalha á face dos seus
concidadãos, como ainda os fere na sua dignidade de chefes e membros de
familia, atacando o recato da vida doméstica e a inviolabilidade do lar de cada
um.
A commissão absteve-se
cautelosamente de exercer na peça Os
vencidos da vida a minima censura de caracter puramente litterario, por não
estar ella nem no espirito nem na letra da lei, saíndo portanto do circulo da
sua competencia e attribuições. Reconheceu, porém, e isso ainda mais a
tranquillisa, que a impossibilidade por ella encontrada em reerguer no tablado
scenico a obra derrubada por motivos de policia, não aniquila uma expressão
levantada da arte, nem um monumento de gosto.
A lei previdente que instituiu
esta commissão de censura, consagrou a seu preito á liberdade das diversas
manifestações do pensamento, tendo em mira apenas cohibir o seu abuso.
Reconheceu a todos os cidadãos o direito de critica dos costumes, das idéas,
das doutrinas, dos sentimentos, por meio das representações theatraes, dentro
dos limites em que esse direito é lícito por meio das outras fórmas, sob que,
publicamente , póde ser manifestado. Sómente cuidou em restrigil-ona fórma
abusivada especulação com a maledicencia, com o escandalo, e com as más paixões
do publico.
Não teve esta commissão que
desviar-se um apice da doutrina estabelecida por essa lei, nem que hesitou um
momento na estricta comprehensão d’ella. Encontrou-se, francamente, não diante
de uma obra de critica, mas de uma obra de diffamação. E, mais ainda, sentiu a
sua tarefa aligeirada pelo apoio antecipado que lhe deu tanto a reprovação quasi
geral do publico intelligente, que assistiu á recita única da peça censurada,
como a reprovaçao unanime que enm toda a imprensa da capita, no dia immediato
ella teve.
Aquela especulação que a lei
previne, não teve tempo de estabelecer-se, nem de affirmar-se.
Começaria agora se, por qualquer
tibieza ou por nimia e indisculpavel indulgencia, esta commissão pronunciasse
um veredictum contrario ás do
presente parecer. As más paixões não chegaram a despertar, o escandalo foi
adormecido a tempo, e o primeiro impulso, honesto e nobre, da consciencia publica
, repercutido no protesto unisono da imprensa, norteou de certo no caminho da
justiça , a boa vontade, o exame desapaixonado e conscencioso, o desejo de
acertar, d’esta commissão.
Encerrando aqui a serie de
considerações, que tinha a fazer para fundamentar a sua deliberação, a
commissão de censura theatral, entende, por fim, que sendo indispensavel deixar
comprovadas n’um documento authentico sas razões que levaram a elaborar o seu
parecer, para que em nenhum tempo possa ser posta em duvida a justiça das suas
conclusões, fique archivado na secretaria do ministerio do reino, junto ao
respectivo processo, o manuscripto da peça subettido ao seu exame.
Lisboa, em 5 de
abril de 1892. = José de Azevedo Castello
Branco = Luiz Augusto Palmeirim =
Zacharias de Aça = Alberto Pimentel = J.
Fernandes Costa, relator.
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1.Aprendi em Arouca algo mais sobre Abel Botelho. No "Mulheres da Beira" uma das narrativas que até deu filme termina tragicamente com a heroína a lançar-se na cascata que se precipita e que se designa por Misarela ou Mizarela,. Já via as duas versões, embora acredite ser outra a original, e que num "formato" bem mais expressivo será mesmo "Mijarela.
2.Ora quanto a grafia, tive o cuidado que preservar a de 1892. Com duas vantagens: 1ª Aprender como se "despede" o corretor automático em Word; 2º Poder escrever fazendo pirraça a alguns que por aí andam: "o transcritor usa grafia anterior ao Acordo Ortográfico, mas... antes dessa!".