(continuação de 19/6)
.
Qual pois a razão deste aparente afastamento entre as dinastias e o nome "José", só nelas aparecido relativamente tarde e em gente do Sacro Império Romano - Germânico (os dois primeiros Josés austríacos), do Império Austríaco (Francisco José), de Portugal (pela possível influência familiar que já vimos) e... lapso das nossas listagens, prontamente corrigido, do Liechtenstein, que com a Aústria é "paredes-meias" [1]?
.
Debatemos bastante o assunto, sem conclusões. Até que alguém se lembrou dum livro relativamente "magro" da Editorial Estampa, o 27 da Colecção "Nova História", tendo como autor Michel Pastoreau e que, editado em 1996 (com edição original francesa de 1991), teve um nome pouco atractivo e aparentemente sem ligação alguma àquilo que procurávamos: "O Tecido do Diabo - Uma História das Riscas e dos Tecidos Listrados" [2,3].
.
Referindo que o uso (ou a atribuição) de tecidos listrados na Idade-Média poderia não simbolizar apenas a maldade associada ao personagem (condenados, doentes, profissões baixas ou infamantes, profissões malditas [4], não-cristãos, heréticos, traidores, etc.), mas também demonstrar "diversidade" ou "ambivalência", o Autor, afirma (pag. 26): "Um exemplo pertinente encontra-se na iconografia de S.José". E, a pag. 28 (há uma gravura no meio), prossegue:
.
"Durante muito tempo, ele é no Ocidente uma personagem desvalorizada, reduzida ao papel de comparsa ou de importunador. No teatro religioso medieval é mesmo francamente ridículo; atribuem-se-lhe defeitos, desconhecidos dos Evangelhos, destinados a fazer rir: patetice (não sabe contar), falta de jeito, avareza, embriaguês sobretudo. Do mesmo modo, nas procissões, o papel de José é muitas vezes desempenhado pelo idiota da aldeia ou da paróquia, e isto por vezes até pleno século XVIII. As imagens, sejam elas pintadas , esculpidas ou gravadas, não lhe ficam atrás; até ao final da Idade Média, frequentemente fazem dele um velho calvo e trémulo, nunca figurado sozinho, nunca colocado em primeiro plano (mesmo nas cenas da Natividade), sempre retirado em relação à Virgem e ao Menino, até em relação aos três Reis Magos, a Santa Ana e a Santa Isabel. Na verdade, é preciso esperar pelo Renascimento para assistir a uma verdaeira promoção de José, aliás ligada em parte à Sagrada Família. De velho apatetado, ele transforma-se progressivamente num homem mais digno, ainda na força da idade, repesentado como pai adoptivo ou como artesão carpinteiro. Mas, ainda durante muito tempo, permanecerá ambíguo (acreditar numa concepção natural de Jesus é uma heresia). De facto, é a partir da Contra-Reforma, graças aos jesuítas e à arte barroca, que São José se valorizará definitivamente. Mas será apenas em 1870 que será proclamado padroeiro da Igreja Universal."
.
Uma visão moderna de S.José [5]Na continuação da exposição, que vai até à pag. 29, o Autor considera que a atribuição de "calças listadas" ao Santo, no século XV e início do sec. XVI - já menos desconsiderado mas "ainda não totalmente promovido ou ainda menos venerado" - pretenderia mais significar ambiguidade que insinuar infâmia. É apenas diferente, menos santificado que uns, mais santificado que o comum dos mortais. Embora não referido especificamente nesta obra, o seu "desaparecimento" dos Evangelhos, após o episódio no qual Jesus discute com os Doutores da Igreja no templo, leva a supor que terá morrido [6] - o que também, por falta de certeza e de localização temporal, traduz uma indefinição, uma ambiguidade. E o A. conclui:
.
"Com efeito, ela [a risca] pode não apenas significar a transgressão da ordem social ou da ordem moral [...] mas pode também fazer sentir mais subtilmente certos cambiantes e certos escalões no seio de sistemas de valores mais ou menos definidos. Por isso mesmo, a risca aparece simultaneamente como um código iconográfico e como um modo de sensibilidade visual. Dupla particularidade que merece a nossa atenção demorada." [7].
.
Tínhamos, quase sem querer, chegado a uma hipótese possível: a adopção tardia (e pontual e até num dos "lares do barroco"que foi a Austria) terá a ver com essa reserva medieval à figura do Santo. E essa reserva medieval, assumindo inclusive posições ostensivas de desconsideração, estará afastada com o uso do nome por personagens reais até ao primeiro José reinante indicado, que foi José I da Austria - já no tempo da clara "reparação ao Santo". É uma hipótese de trabalho que tem o seu quê de plausível.
.
Houve mesmo quem questionasse se o patronímico José, que se encontra em diversos países de tradição cristã (para além de uma eventualmente maior incidência do onomástico que nos não foi possível confirmar) não poderiam também ser "actos de reparação ao Santo" pelos séculos de desconsideração e o lugar subalterno a que fora remetido.
.
Mas nós paramos na hipótese anunciada, acreditando que aqui, nestes e noutros aspectos, há - mesmo sem listas - "pano para mangas". Por isso, para concluir, deixamos três desafios:
1.É possível comprovar a hipótese formulada, como tese geral?
2. Que sentido particular poderá ter em Portugal?
3. E que outros significados poderá assumir, para além da "rarefacção dinástica" do nome?
.
Pela nossa parte - se bem que com o mesmo nome do Santo - não nos propomos ir mais longe.
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
[1] Pois é, tínha-nos passado o Principado... mas aí vamos, também, para a mesma época aproximada dos anteriores:
como Senhoria de Vaduz e Schellenberg:
Joseph Wenceslas (1712- abdicando em 1718)
como Principado do Liechtenstein:
Joseph John (1721-1732)
Joseph Wenceslas (o mesmo...) (1748-1772)
Francisco José I (1772 - 1781)
Francisco José II (1938 - 1999)
.
e, mais uma vez, a proximidade da Austria deve ter ajudado!
.
[2] O objecto do livro, transcrito da contra-capa do mesmo, é de per si interessante:
"Que terão de comum S.José e Obélix, a prostituta medieval e o árbitro de futebol, os carmelitas e os banhistas dos anos loucos? Todos usam vestuário listrado, característica que, desde a Idade Média, e durante muito tempo, foi sinónimo de transgressão ou de exclusão da ordem social por parte de quem assim trajava.
Todavia, esta visão diabólica e degradante da risca alterou-se consideravelmente com o romantismo e, actualmente, vestir-se com riscas é sinal de liberdade, juventude, prazer, humor. Usá-las significa ter acesso ao «chique».
A mudança na interpretação da risca deu origem a esta história da risca ocidental, na qual Michel Pastoureau se interroga sobre o funcionamento dos códigos visuais, sobre o que é uma marcainfamante, por que motivo as superfícies listradas se vêem melhor que as lisas. Será isto verdade para todas as civilizações? Trata-se de um problema biológico ou cultural? O Tecido do Diabo tenta responder a estas e outras questões."
.
[3] Da mesma contra-capa uma biografia sumária do Autor, à data da edição (1996):
"Nascido em 1947, Michel Pastoureau é arquivista paleógrafo e director de estudos na Escola Prática de Estudos Superiores (Sorbonne, IV Secção), onde é titular, desde 1983, da cadeira de História da Simbólica Ocidental. Os seus primeiros trabalhos foram consagrados ao estudo de emblemas e dos sistemas de representação (brazões, sinetes, medalhas, iconografia). As suas investigações actuais têm por objecto, por um lado, a história dos animais e dos vegetais e, por outro, a história das relações entre o homem e a cor."
.
[4] Segundo a fonte referida, pag. 26, essas "profissões malditas" na perspectiva medieval seriam três: os ferreiros, que são feiticeiros (Ah!, este eterno horror à metalurgia! Até noutras culturas esta associação é frequente! Resultado do manejar do ferro e do fogo?), os carniceiros que são sanguinários, e os moleiros, que são armazenistas e causadores da fome.
.
[5] Com a devida vénia, do local trilingue de Gregor KollMorgen: http://www.kollmorgen.privat.t-online.de .
Nesta representação, já moderna, S.José é representado com o Menino ao colo, numa figuração pouco vulgar que reproduz as apresentações geralmente mostradas para a Virgem. Por isso, e porque assim representa o oposto à subalternização medieval que o A. refere, a escolhemos. O trajo é liso, como passou praticamente a ser em tempos modernos Aliás, como diz Pastoureau a pag. 29 da obra citada: "Vestir José de uma toga, uma túnica ou de um manto inteiramente às riscas teria sido nitidamente degradante; dotá-lo [na Idade Média, intercalado nosso] de calcão listrado representa simplesmente um acento destinado a sublinhar o seu carácter específico. Aqui, a risca funciona mais como um sinal de ambiguidade do que como um sinal de infâmia. José não é Caim nem Judas; não tem nada de desleal." .
[6] Suposição esta que aparece em várias obras. Lançamos mão da que estava mais à dita mão e que a refere: TAVARES, Jorge Campos: "Dicionário de Santos", Porto, Lello & Irmão, Editores, 1990: 87. Identifica 3 Santos: S. José, José de Arimateia e José de Cupertino (1603-1663, canonizdo em 1787).
.
[7] Nas notas 17, 18 e 19, a fim do capítulo (op.cit. pag.45), dão-se referências de interesse para o estudo desta perspectiva e da iconografia de S. José. Serão essenciais para quem queira aprofundar o tema.