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Ora em 1939, 15 de Abril de 1939 mais precisamente, um grupo de gentis senhoras da sociedade arouquense organizou um baile no salão nobre dos Paços do Concelho[1], que decorreu com assinalável brilhantismo e repercussão "urbi et orbi", tendo-se dançado até de madrugada. Um facto consequente mas acessório desse acontecimento foi a publicação, no "Defesa de Arouca" de 22 de Abril, número 691, pag.2, de um extenso poema denominado "O baile", inaugurando o tema geral "Gazetilha" e subscrito por A.O. - em que, em tom leve e engraçado, cheio de bom humor e oportunidade, se davam conta de diversos aspectos do evento a que o dito A.O. teria estado igualmente presente como convidado [2].
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Essa parece ter sido, de facto, a primeira "Gazetilha" que o referido jornal vai publicar, porque outras se seguirão, sempre subscritas por A.O. comentando factos e costumes locais ou não locais, mas mantendo a mesma leveza e ironia que, inclusive, manifestamente ultrapassa por via do verso o que provavelmente o censório "lápis azul" não deixaria passar se expresso por via de prosa [3].
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Uma semana depois da nota com sabor a papel selado que foi transcrita na postagem anterior, sobre a manutenção estrita e rigorosa da moralidade nas praias, na dura canícula que parece ter sido o Verão de 1940, surge, com a referida assinatura de A.O., a graciosa "Gazetilha" intitulada "Que Calor" que não resisto a transcrever e que, na sua totalidade, sempre com a devida vénia ao jornal que a publicou, seguidamente se reproduz:
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"QUE CALOR.
Oh! que calor dos diabos
Vem das vertentes da serra!
Queima o sol, escalda a terra
E a água ferve en cachões...
Se Cristo nos não acode,
Com semelhante esturreiro
Não tarda, nem um janeiro,
Que os homens sejam carvões!
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Com um calor desta raça,Só na praia se está bem,
Onde a gente ao menos tem
O mar, para se esconder.
Aí, sim, a gente pode,
Com banhinhos à fartura,
Passar esta quadra dura
Sem se vir a derreter!.
Paraízo sem segundo,
Lá as deusas são à mão-cheia.
Estiraçadas na areia,
Com adónis a fartar;
Só Eva gentil, agora,
Sem a tal folha de vinha,
Anda toda vestidinha,
Para não se... constipar!
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No campo - cruzes, canhoto!
Quem é que pode viver?O calor a derreter
Os nossos untos, que mesmo
Que São Pedro, lá do Céu,Nos mandasse chuva a potes,
Não nos livrava os coirotes
De ficarem num torresmo!
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Tudo é brasa, tudo é fogo,
Não se pára, não se atura
Esta medonha quentura,
Inferno da vida aldeã;
Cada um de nós, aqui,
De negro e sêco, repito,
Parece um carapau frito
No fundo duma sertã!.
O "Zé" pinga de tão suado,
Na faina do pão cotio,E a água ferve no rio,Desfazendo-se em vapor;É tal a ardência do sol,Que nos campos, de ouro puro,
O milho cai de maduro,
Sequinho, que é um pavor!.
Evas por cá, nem o cheiro,As deusas fogem ao sol,Mirando abocar o anzolDe algum adónis caturra;
Quem pode viver aqui?
Só bruxas os Satanaz,
Incluindo cá o rapaz,Que também já não se esturra!.
Não há remédio senão
Andarmos de perna à velaE o corpinho sem farpela,Seja qual seja o tecido;Até calças já não usamOs mocetões e as moçoilas,Nem por cima das ciroilas
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Nem por baixo do vestido!.
Vou já usar da receita,
É barata e tem valia:O corpinho à reveliaSabe bem, que é um consôlo.E depois, quem esconderAquilo que Deus lhe deu,Hoje em dia, ou é sandeu,Ou tem falta de miolo!.
Ficarei todo janota:
Umas socas de cortiçaAté para ir à missaSão boas... Com o ar correndo,Como tufão assanhado,
Dos pés à nuca (e aberto
O peito ao ar), já de-certoSe pode ir por cá vivendo!.
Mas, que calor! Não se atura!
Um fogo desta jaezSó no Inferno, ou talvezNa rabeira de algum astro...Se não te pões no seguro,Leitor, fazendo o que eu digo,Não te darei, meu amigo,Cinco reis pelo canastro!... A. O."in "Defesa de Arouca", nº 761, de 7 de Setembro de 1940, pag. 2.
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[1] I.e. no então ainda designados como "novos", porque inaugurados em Novembro de 1933.
[2] Não se vai aqui identificar o A.O., sendo certo que isso parece possível - já que o Autor, ou o jornal, pelo menos numa outra "Gazetilha" posterior, já encontrada, deixou (intencionalmente ou não) escapar o nome completo. Como porém a regra das "Gazetilhas" parece ser mesmo serem subscritas por A.O. e, como soe dizer-se, "a excepção confirma a regra", manteremos as iniciais e... os investigadores da modalidade que busquem a chave do enigma - que não deve ser difícil de resolver!
[3] Um exemplo disso é a descrição do que se passou, em Arouca, com a localização do "Cruzeiro da Independência", peça fulcral das celebrações do Duplo Centenário em 1940 e modelo que proliferaria, como já foi dito, em todas as freguesias, vilas e cidades do País. Por razões compreensíveis, até ligadas à protecção do Convento como monumento nacional e à necessidade de autorizações a isso associadas, bem como à disposição de velhos e novos espaços, a localização definitiva do cruzeiro andou de cá para lá e de lá para acoli até se conseguir uma definitiva implantação e se proceder à habitual inauguração - que era sempre um acto soleníssimo e portanto pouco propenso a epigramas. Esse saltitar - visto em prosa - é dedutível de diversos e sucessivos apontamentos e notícias, mas o referido A.O., numa das suas Gazetilhas ultrapassa a dificuldade e faz, por todos, uma excelente síntese das várias peripécias que o posicionamento do padrão atravessou. Existe pois, nos vários relatos do A.O., sempre ligados a acontecimentos da época e à sua repercussão e crítica, um campo vastíssimo para futuros investigadores locais se deliciarem. Fica a ideia! Dá, pelo menos, mestrado...
A tempo (ou não): Chamam-me a atenção para não ser esta a única "Gazetilha" com o título "O baile". De facto uma outra há, a 30/3/1940 (DdA nº 739), celebrando outro baile que gentis senhoras de Arouca foram organizar no salão nobre dos Paços do Concelho e que teria tido lugar no sábado de Páscoa (23/3/1940?). Também convém este "a tempo" para fazer "mea culpa" de uma informação anterior, nesta mesma postagem, manifestamente ampliada pelo entusiasmo de uma leitura prévia. É que um trabalho sobre as "Gazetilhas" não poderá ter certamente a amplitude e o peso que se sugeriu. O dito lápis censório, que deixou "passar" a impagável descrição em verso das peregrinações do "cruzeiro da independência" (DdA nº 770, de 9/11/1940) - tal como iria suceder muitos anos mais tarde com o "Tourada", de letra de Ary dos Santos no Festival da Canção - deve ter levado um puxão de orelhas de um supervisor mais vigilante... e as "Gazetilhas a partir daí vão abrandar! Significativamente, a "Gazetilha" subsequente é publicada no número imediatamente a seguir, chama-se "Perdão de Acto", vem datada de fora de Arouca e é a tal que tem a assinatura com o nome e não com as iniciais A.O. do Autor (DdA nº 771, de 16/11/40) - o que revela a intencionalidade desse facto. Uma outra "Gazetilha" será ainda publicada na DdA nº 775, de 14/12/40, com o título também significativo de "A Morte". Até meados de 1941 há poemas de A.O. (com o seu verdadeiro nome), de natureza e forma completamente diferentes - e, até aí, não se detectou mais alguma "Gazetilha". Se posteriormente aparecerem, avisar-se-á! Mas o campo de estudo fica mais reduzido que o que se pensava - embora permita vislumbrar a praxis inexorável, à época, do exercício dos mecanismos do poder.
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