Abel Salazar Do meu peregrinar em textos velhos, retirei e transcrevo na íntegra a seguinte notícia da página 3 do jornal diário "O Século", publicado em Lisboa mas de difusão nacional (e abatido de "morte macaca" muitos anos mais tarde, por tentações anti-democráticas numa democracia reencontrada), de 28 de Novembro de 1944:
"Vai inaugurar-se no Porto o "CAFÉ RIALTO" que fica a constituir notável melhoramento.
PORTO,27 - Nos primeiros dias de Dezembro, vai inaugurar-se, nesta cidade, o novo café - o Café Rialto - que fica instalado num magnífico local, com fachadas para a rua Sá da Bandeira e praça D.João I, no edifício já conhecido por Arranha-Céus.
O novo café representa um magnífico empreendimento, não só pelas suas amplas e modernas instalações, mas também pelas suas características artísticas. É constituído por dois pavimentos ligados por uma imponente escadaria a mármore, em que a luz natural, conjugada com a colocação de es+elhos, lhe dá um ambiente alegre e acolhedor. No pavimento superior avulta um desenho-mural a carvão, da autoria do sr. dr. Abel Salazar, em que, a traço vigoroso, está simbolizado o esfôrço da Humanidade através da História. Junto á escadaria, vê-se um baixo relêvo - cerâmica policromada do escultor João Fragoso, que historia, por assim dizer, o Douro , da sua nascente à foz. Este artista assina também outro baixo-relevo, que tem por motivo o café.
No salão inferior, vêem-se três pinturas murais, a fresco: a central, da autoria do pintor Guilherme Canarinhas [sic], e as laterais, do mestre da Escola de Belas Artes desta cidade, sr. Dordio Gomes. Ao lado, no salão de chá, chamam a atenção do visitante quatro paineis pintados em contraplacado, igualmente da autoria de Guilherme Canarinha, tendo por motivo as quatroestações do ano. Os dois salões - ligados por uma e mesma harmonia de conjunto, a que um enorme painel formado por 44 espelhos, com 72 metros quadrados, dá unidade visual - estão apetrechados com luz indirecta e instalação sonora, dividida. A imponência deste estabelecimento é aumentada por mármores de Leiria, de ricas e raras tonalidades. O «café», com ar condicionado, tem capacidade para 130 mesas e a cozinha, completamente electrificada, possue, e pela primeira vez em Portugal, aparelhagem para esterilização de chávenas, capaz de esterilizar 600 em quinze minutos. Cada salão possue o seu balcão-frigorífico privativo, ligado por um elevador.
Esta noite, os empreiteiros e sócios da Empresa do Café Rialto, quiseram homenagear o arquitecto sr. Artur Andrade, autor do projecto e director da execução das obras, com um jantar, para o qual foram convidados os artistas que colaboraram com êle, assim como representantes da Imprensa do Pôrto e Lisboa. O banquete foi presidido pelo homenageado e servido na sala principal do «café», já concluída. Em primeiro lugar, usou da palavra o sócio-gerente sr. Abílio de Sousa que, depois de saudar a Imprensa, afirmou que o Café Rialto era uma obra que abria ao arquitecto Artur Andrade uma carreira segura e promissora, pois afirmava um real e invulgar talento de artista, e agradeceu depois a colaboração dedicada dos empreiteiros e operários. A seguir, falaram os srs. Santos Rodrigues, gerente do «café», que se referiu, com entusiasmo, às qualidades de trabalho e inteligência do arquitecto Artur Andrade; José Meneses, empreiteiro da instalação eléctrica, que saudou o homenageado e a organização «Forum»; Horácio Barbosa, autor da instalação sonora e, por último, Fernandez Cubeles, que rendeu homenagem aos artistas que colaboraram devotadamente com o arquitecto Artur Andrade, para tornar aquele «café» uma casa que há-de impor-se pela sua categoria artística.
Pela Imprensa, agradeceu as referências feitas o nosso colega Manuel Ribas, tendo também agradecido, no final, o sr. arquitecto Artur Andrade, que afirmou ter posto ali o melhor do seu entusiasmo e da sua dedicação."
Depois de representar anos de memórias na História do Porto e das tertúlias que acolheu, o "Rialto" teve o destino de muitos «cafés» das nossas cidades: passou a balcão de Banco. Resta saber para onde foram todas as obras artísticas que a notícia refere. Reproduzo com saudade, a de facto vigorosa obra de Abel Salazar, com as suas ceifeiras, que o regime odiava porque nela via, já em plena derrocada do Reich hitleriano, "ventos que sopram de Leste" (frase ouvida nos meus sete anos e que aqui ficou gravada). Mas não era a única: havia uma outra também, igualmente odiada. Receio mesmo que tenham sido "tapadas", como os desenhos murais do Cinema Batalha (já neste blogue também referidos [1] considerados "contrários ao espírito do Estado-Novo", frase também registada por um "puto" de boina vasca e calções de golf que, pelos vistos, andava atento a esses atentados). E o resto? Fica a memória - e a saudade. Daí o "caçar fantasmas" da minha deambulação - esquecendo-me tantas vezes do objectivo que a ela me leva e perdendo-me no caminho do que já fui.
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[1] Cinema Batalha, também do risco do arquitecto portuense (e activo político) Artur Vieira de Andrade (1913-2005), cuja biografia - com referências às obras citadas - pode ser encontrada no "portal" da Universidade do Porto em
Dado o perfil político do arquitecto Artur Andrade, encontro na presente notícia de "O Século" mais um exemplo da forma como aquele jornal sabia "tourear" o lápis grosso da Censura. Abordei um outro exemplo, já no mesmo jornal encontrado, ao mostrar, em sede própria, como o nele se descreveu de forma excepcional o "itinerário em Lisboa-Alcântara da greve de Julho de 1943", para além de ter recolhido e guardado no seu arquivo as excelentes fotografias da mesma greve que foram ali escondidas, de forma segura, onde o pós-25A as foi encontrar (e errada e temporariamente atribuir ao Barreiro), sabendo de antemão que nunca poderiam ser no momento publicadas. Mas já encontrei outras situações do mesmo tipo, que, a seu tempo, irei referir. Recorde-se ainda como o "Cinema Batalha" , ao albergar (aos domingos de manhã) as sessões do Cine Clube, propiciou outras alergias do regime, que as qualificava entre dentes de "missas vermelhas".
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