I
Quando eu andava pelas fábricas - e nunca me poupei quanto a isso - anotei alguns bons episódios. Nunca aparecerão na literatura oficial, mas é interessante que a "malta da ferrugem" os possa recordar. O primeiro diz respeito à burocracia. Havia que formular qualquer encomenda sempre no mesmo modelo, fosse de uma porca sextavada, fosse de uma unidade fabril. A tramitação desses papeis era também sempre a mesma e todos transitavam por um senhor que, sentado numa escrivaninha, lhes apunha um carimbo que dizia "CONTROLO ORÇAMENTAL". A intenção teria sido certamente boa no seu início, procurando coordenar encargos com cabimentos, mas a verdade é que já quando da minha entrada para aquela "guerra" se discutia muito o interesse ou validade de tal CONTROLO e até havia quem dissesse que aquilo já não era controlo algum. E afirmava-se, já na secção de más línguas, que o controle tinha três velocidades: uma para os "amigos", outra para os "assim-assim" e uma gaveta de estacionamento para os que estavam tomados "de ponta" - mas isso vinha da secção das más línguas e eu nunca tive problemas por aí (ou então era dos bem-vistos). Um dia, numa das primeiras reestruturações que me recordo, acabou o "CONTROLE ORÇAMENTAL" - e nada se notou a não ser a aceleração de processos. Talvez que o carimbo esteja agora no Museu!
.
Bom, mas a piada não é esta: havia um engenheiro já não jovem mas relativamente "blagueur"que, para marcar o aspecto burocrático do acto de encomenda, emitiu formalmente uma, de que guardou cópia na cortiça do gabinete e que dizia apenas:
"1 (uma) instalação para a produção de sulfato de sódio
Instruções a dar no local."
.
II
.
Uma das "nossas" unidades fabris usava sucata como matéria-prima. E sucata chegava noite-e-dia dos quatro cantos do país (foi, por exemplo, o "fim" de muitas placas de destino dos "eléctricos" dos STCP quanto foram substituídos por "troley-carros", esses famosos "pantufas"). Um certo dia, ou melhor uma certa noite porque as coisas passam-se no render do turno da noite para o turno do dia, um chefe-de-turno criativo lembrou-se de armar uma partida aos elementos do turno seguinte. Premeditada, aliás, porque andou dias e dias a recolher moedas de uma "c'roa" até quase encher um actual saco de plástico de supermercado (ao tempo, um saco de enxofre ventilado, o tal cuja sarja servia depois para os clientes fazerem cuecas - e que motivou por isso um problema de "marketing" quando o material da embalagem foi mudado!). Quando do render do turno, o nosso homem estava sentado e contava laboriosamente as moedinhas de c'roa, pondo-as em montinhos de 20. "Que é isso?" - perguntaram os entrantes. "Eh, pá. Nem imaginas. A sucata que descarregou esta noite vinha carregada disto! Talvez refugos! Mas até parecem boas! O parque de sucata ainda está cheio!".
.
12 horas depois, ainda uma multidão de "pilhas" desmontava metodicamente o parque de sucata! O achamento de uma escassa meia-dúzia de moedas soltas (investimento semeado para dar credibilidade ao dito) mais avivou a "corrida ao pseudo.tesouro"!
.
III
.
Anos 50 avançados. A administração longínqua, na designada "fábrica de papel", saturara o jovem e brilhante sub-director fabril (que igualmente assumia uma destacada posição académica) com um longo ofício a propósito de um orçamento de conservação. Que não podia ser. Que já tinha sido refeito mas continuava inaceitável. Que o relatório justificativo enviado não era suficiente. Que etc. e mais etc. O nosso homem, farto da diatribe, respondeu por ofício. Nele, com a indicação funcional do destinatário, o "Amigos e Senhores" da praxe e a assinatura do emitente precedida do também costumeiro "Atentamente", uma só palavra: "Cientes".
.
(Usei já este salutar mas lacónico exemplo, em tempos próximos e nada fabris. Penso que me lixei com isso, mas a verdade é que gozei um pouco! Até com a polidez imerecida da fórmula!)
.
IV
.
Do mesmo. Tratava-se da reparação de uma chaminé de tijolo que ameaçava ruína. O ofício, vindo "do outro lado", era de idêntico estilo: que as verbas para conservação estavam já exaustas, que a chaminé não estaria assim tão má, que teria de aguardar a aprovação do novo orçamento anual, etc. Aí a resposta do mesmo sub-director foi menos sucinta que a anterior, mas igualmente sugestiva (o texto pode não ser literalmente este, mas o essencial reteve-se):
Recebido o vosso ofício nº xyz de tantos de tal, ele foi prontamente lido à chaminé. Mas, como esta o não entendeu, acabou mesmo por cair esta noite.Atentamente [assinatura]"
.V
.
Visava-se baptizar uma nova empresa do Grupo, dedicada à conservação frigorífica
e chegou uma indicação para que fossem consultados os "quadros" destas fábricas no sentido de lhe proporem um nome. As sugestões fizeram-se democraticamente, por voto secreto - mas a direcção das fábricas não ficou minimamente satisfeita com o resultado obtido. É que, sem nada ter sido combinado, mais de 40% das sugestões, construindo-o de acordo com a tradição do Grupo, apontaram humorística e quase unanimemente para
"CUF-FRIO".
Por "razões cacofónicas" a sugestão, ainda que maioritária, foi rejeitada e a empresa viria a chamar-se prosaicamente FRINIL.
.
VI
.
Toda a gente no Barreiro conhecia a "anedota dos leões e dos "chapas-brancas", ou seja, da tentativa de demonstrar (à La Fontaine camarro) a considerada redundância dos quadros superiores, os tais que usavam "chapas brancas" na lapela, em vez das chapas coloridas dos restantes e que, na instalação, causavam entre os operadores o sinal-mudo de "divisas" (a mão direita batendo no ombro esquerdo) quando estavam por perto. Não é inteiramente original, pois à chegada ao "outro lado" do "Trás-os-Montes", ou do "Alentejo", ou mesmo do branquinho "Évora", a mesma se contava no Terreiro do Paço. Bem, a primeira parte da história conta-se depressa: fugiram dois leões de um circo, no Barreiro, e encontraram-se ao fim de 15 dias. Um estava nédio como pode estar um leão de boa mesa, e o outro estava magrinho como um anacoreta alimentado a gafanhotos. E diz o gordo: Como estás assim? Responde o magro: Esta gente tem pouco de comer, são todos magrinhos. Andei aos restos pela Vila, pelo Bairro da Folha, até pelo Lavradio... e nada, mesmo nada! És burro, pá, fazes como eu e vais ali para o portão do Largo das Obras e quando estiver a entrar um gajo com uma "chapa branca" tratas de o passar logo à goela; não há problema: eles são tantos que ninguém dá pela falta dum."
.
Aqui acaba a história como me foi contada quando cheguei e desembarquei nesta terra, onde abundam pinocas ciosos do seu indigenato, todos esquecendo que a sua árvore tem ramos noutros concelhos pelo menos na segunda geração arriba, se não na primeira. Mas pouca gente do Barreiro sabe que a história tem uma continuação. É que passados 15 dias os leões voltam a encontrar-se: o gordo cada vez mais gordo, o magro cada vez mais magro. E diz o gordo: É pá, como é que continuas assim? Responde o outro: Olha, fiz como tu disseste... e nada! Nada? - voltou a perguntar o gordo com ar incrédulo - Como assim?. É verdade: logo que toca a buzina, às oito da manhã, ponho-me lá à porta... e nada! És uma besta, pá, não tens que te por lá quando toca a buzina: esses tais só começam a entrar pelo menos uma hora mais tarde, entendes?
.
Um aviso final...
E não me venham chatear dizendo que estou a contar histórias elitistas. É que eu, numa perspectiva interclassista, posso também contar histórias doutros protagonistas. E talvez não sejam tão apreciadas!
Aliás, a caminho já do Segundo Centenário das Fábricas da CUF no Barreiro, sugiro um tema inédito, mas tão caro aos intervenientes, para continuar a ser discutido na outra-face da outra-face dessa celebração: "Quais as profundas intenções do paternalismo industrial"?
.