Ressuscito um texto que escrevi não sei quando, mas que se situa por estes dias e não parece burro de todo:
Com estes dias caniculares (e quando eu era puto perguntava-me o que os cães tinham a ver com isto, até que alguém bem intencionado me falou nas constelações do Cão, Maior - estilo dogue danês - e Menor - estilo Fritz, numa Sirius que brilha por ali e da respectiva visibilidade nas noites quentes de Verão no Hemisfério Norte, calculando eu, na minha visão eurocentrista - embora no meu Continente dito civilizado e civilizador andasse então tudo à porrada - que os putos do Hemisfério Sul, que também previa fossem putos merecedores, deveriam ter outras estrelas a espreitar excepcionalmente acima da linha do horizonte e uma expressão que não "Canícula" quando fosse o Verão deles). Bom, mas ia eu dizendo "com estes dias caniculares" quando me despistei a reflectir no absurdo da frase, pois que deveria dizer "com estas noites caniculares", mas dias inundados de calor, com a necessidade de rever um texto que me surgiu inesperadamente cheio de erros e omissões, num "confiteor" de pensamentos, palavras, obras, actos, omissões, quebras de segredo de justiça, enfrentamentos de défice (mas que porra é o défice, quando afinal todos têm défice? o imodium não daria para resolver o défice? não passará o défice de um tigre de papel quando há economias que sempre viveram com o défice sem problemas, arigato, arigato, ou mesmo "in God we trust" escrito na folha de couve toda igualita, cor de Alvalade? e lá vou eu no despiste novamente), eu, que sofro com o calor tal como o meu jovem gato, que odeio o calor e a areia das praias - só suportáveis para bem-fazer à vista e barrar o sete na já velha anedota do "risca isso! risca isso!"- , passei a adoptar a vida de morcego, ou seja dormir de dia e procurar trabalhar de noite, porque de facto não trabalho já que tenho sono de dia e tenho sono de noite, numa perspectiva de Henri Murger, que foi o autor que, rapinado o livro na estante lá de casa, me encheu as noites de sonhos de Mimi, a tal que deu duas óperas pelo menos e corrompeu sadiamente a minha juventude, fazendo-me pensar que nas pernocas da lambisgoia loira que passava frente à minha casa - eu na altura não a via assim - havia um interessante ponto de convergência, exactamente onde aqueles rapazes perversos mas imaginativos de duas cidade que levaram uma bomba atómica avant la lettre viam dois.
Numa destas noites indormidas e insonhadas, em que o estupor da Mimi ou algumas mais adoráveis conhecidas poderiam vir visitara-me em Vale de Lençois, que se lhes dava o adequado tratamento no meio de um calor e de um suor de filme policial mississipiano (não sabia também que "mississipi" queria dizer "rio grande" quando "missuri" queria dizer "rio dos barcos grandes" o que me leva a duas dúvidas estranhas, uma sendo se "missi" significa "rio" ou "grande" e outra é sobre a validade da economia vocabular em certas línguas permite mesmo que com uma palavra mais pequenina se diga muito mais que com uma palavra grande ou então se tudo isto é patranha!), ligo a TV altas horas e eis que vejo e ouço, em entrevista, o nosso ex-Presidente Sampaio a dizer coisas muito sérias, mesmo muito sérias, de uma forma bem diferente do queixo afilado que agora estamos a habituar-nos a ouvir. E aqui muda o discurso e cessam os slaloms, que vamos, em poucas linhas tratar de coisas sérias.
Avisava o simpático senhor que "estamos sob escrutínio" e que não há nada que se diga, faça, escreva e murmure nesta terra de murmuradores que não vá de imediato ser transmitido a todos os poderes do mundo, democráticos, antidemocráticos, evidenciados ou secretos. E que portanto, amiguinhos, isto é como num tempo de guerra, as paredes têm ouvidos e toda a palavra pode ser usada contra nós. Salutar aviso, embora caindo em muitas orelhas moucas como ontem mesmo se ouviu. Há aqui, nesta cidade, dois espaços em que se descurou o aspecto acústico e o que sucede é que cada pessoa para se fazer ouvir tem de gritar mais alto que o ruído de fundo, contribuindo para que o ruído de fundo mais aumente e assim sucessivamente transformando zonas de convívio esperadamente agradáveis em insuportáveis gaiolas de araras. Pois o País está assim. E se olharmos para os de aqui ao lado, mesmo com uma autoestima em maré baixa, o discurso - quando se trata da "feição externa do discurso" - é consideravelmente mais composto, e não necessariamente apenas em futebol. Não me venham dizer que este teatro PT/Vivo não foi influenciado pelo desprestígio com que vimos recentemente discutir a roupa interior da PT, confundindo muitas vezes, e de forma quase indigente, o que são estratégias empresariais com cavilosas manobras políticas? Estamos de boca desmesuradamente aberta a cavar a nossa tumba, com tantas Lindas Lovelace da Política que andam por aí em todos os Partidos e não só. O desprestígio dos políticos é uma arma secreta daqueles que o não são (ou o não são ainda com a intensidade de poder desejada) e o aspiram a ser. Não há "golden shares" apenas (e que, se existem, é para algum fim - pois o problema de existirem ou não é diferente do problema de, quando existindo, serem ou não usadas), mas existem "trapézios dourados" onde se penduram escondidos figurões com a profissão única de cagarem postas e esperarem que os chamem ou chamarem-se a eles próprios [1]. São os tais 2000 ou 3000 que o Hespanha certeira e recentemente denunciava e que, qualquer que seja o poder, rodam sempre em torno das mesmas flores, umas vezes aqui, outras vezes acolá. Esses é que, como as fraldas da frase queirosiana com que o "i" nos mimoseia, precisavam de ser frequentemente mudados, e sempre pela mesma razão. Mas a entrevista do simpático Sampaio passou a horas mortas (embora possa ter sido uma repetição tardia). Talvez por isso.
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[1] As perguntas são duas: 1ª Votaste para o Governo do teu País? (e numa sociedade democrática a resposta será "Sim") 2ª Votaste na XYZ ou em qualquer outra agência de rating? (e a resposta será NÃO!, embora a XYZ ou quaisquer outras agências de "rating", em nome das chamadas "leis de mercado" em que tu também não votaste e com critérios que por ninguém são controlados, estejam hoje a condicionar a tua vida de uma forma mais forte e determinada que a de muitos Governos, eles também sujeitos aos ditames das ditas. Temos aqui uma verdadeira perversão capitalista da democracia que nos faz depender em considerável extensão de entidades que não elegemos, que se impõe a poderes legitimamente constituídos E ESTAMOS A VIVER COM ESSA PERVERSÃO, encolhendo os ombros e ouvindo mesmo alguns que nos aconselham a cegamente aceitá-la.
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