Entre 1871 e 1918 duas províncias francesas - a Alsácia e a Lorena - estiveram integradas no Império alemão. Tal facto, que estará numa das origens da grande hecatombe europeia que foi a 1ª Grande Guerra, marcou profundamente o sentimento europeu - que se dividiu entre os simpatizantes da França, que Bismarck manobrara para ser o agressor vencido na guerra franco-prussiana (transformada em franco-alemã) de 1870-1871, e os admiradores da nascente nação alemã, forte, disciplinada, metódica, combinando sabiamente o reencontrado Espírito (o procurado
Geist) com o exuberante capitalismo industrial que até se podia dar ao luxo de ser ostensivamente paternalista e o infrene desenvolvimento cultural e científico que fazia a admiração e o receio dos povos mais próximos. O Império Alemão, nascido e aclamado na Galeria dos Espelhos de Versalhes, achava-se como um sol que iluminava o Mundo (e com tanta iluminação, acabou por queimar o Mundo e, com este, queimar-se). A bipolaridade que então se estabeleceu na Europa continental, enquanto a Inglaterra tratava dos seus negócios e impérios para lá do canal, a bicéfala Austria-Hungria (afastada em 1866 da liderança dos germânicos) arrastava a idade gotosa e desgostosa de Francisco-José, a Rússia ansiava por reformas que nunca mais chegavam, os Escandinavos exportavam emigrantes, os Balcânicos continuavam a entredevorar-se com ou sem Crescente, os Italianos em pleno processo unificador começavam a calçar a bota com sonhos romanos e os Ibéricos prosseguiam a sua vida de pantufas remendadas e meditavam nas "causas da decadência dos povos peninsulares", trazia reflexos e tensões. Já aqui se publicou (a 4 de Agosto de 2005) o revelador poema de Acácio Antunes "O Estudante Alsaciano" e até no tranquilo Barreiro de então, ainda nem arvorado mas já próximo da afirmação industrial hoje tão hostilizada por alguns mas que lhe vieram trazer aquilo que é, essa mudança teria repercussões, ao separar os Franceses dos Penicheiros, como ainda hoje separados continuam. Mas não é do Barreiro que se está a falar. Logo... adiante!
Num município duma das duas arrancadas províncias, poderia ser na então chamada
Elsaß, os alsacianos - de facto todos eram alsacianos - estavam fortemente divididos. Uns olhavam para Leste, então dominante, outros - os que não tinham abandonado o torrão-natal ante a presença alemã - olhavam esperançados para Oeste, certos que as dominações, quaisquer que sejam, acabam sempre dominadas, e outros havia que pintavam o meio ou que se não tinham ainda decidido a fazer qualquer coisa para qualquer coisa. O burgomestre, com a confiança de Berlim, era certamente dos primeiros - e dava-se o caso de ser pessoa atenta ao fulgor da doutrina que seguia. Dentro de um discurso que se tornara repetitivo, o entusiasmo oficial pela indústria e, nesta, pela química provinha de se considerar a Química como uma ciência eminentemente alemã, apregoando-se os sucessivos avanços que os cientistas alemães iam fazendo (esquecendo que alguns deles tinham andado por Inglaterra e feito algumas coisas por aí), olhando-se as fábricas de corantes (e não só) que cresciam entre altos fornos ao longo do Reno e quejandros rios centroeuropeus, menosprezando o papel dos franceses naquele caminhar de progresso. Exactamente a mesma orientação que, nos anos da II Guerra (1939-1945), faria a propaganda alemã pagar a bom preço, sob as marcas da Merck Darmstadt e da IG Farben, enormes e frequentes anúncios nos jornais de Lisboa e do Porto, laureando os grandes nomes alemães nessa ciência e o valor das suas descobertas.
Dava-se o caso de haver, numa das praças da terra, cerca do mercado, um monumento a Lavoisier (aliás de discutível qualidade estatuária) que anos atrás, quando o Francês ainda ali era a língua oficial, um então "maire", de faixa tricolor à cinta, inaugurara com aparato e que , num granítico pedestal, neste deixava ler algumas frases evocativas da homenagem, do papel transcendente daquela singular figura e até da própria terra que lhe dera honras. Escapara por certo à germanização, embora tivessem deixado o espaço sem conservação ou asseio durante longo tempo e até tivessem importado um urbanista magiar, com languidez tzigane, para dizer que, retirado o aparato, o plinto e as frases, reduzindo a estátua ao plano do terreiro e implantando neste uma espécie de quiosque, aquele recanto assim é que ficaria bem. Anónimo ficou o bronze, embora todos soubessem, pró-prussianos, francófilos e semis, quem o senhor era e o que significava.
Mas nova tensão iria nascer naquele "Clochemerle"
avant la lettre (neste caso avant le film ou avant Fernandel). Em 1893, ao celebrarem-se os 150 anos do nascimento de Lavoisier, a pressão dos que continuavam resistentemente a olhar a Oeste, dos d' "
A França está aqui", mesmo que afastados do poder, tornou insustentável o anonimato do monumento, como já insustentável tornara a ideia da sua pura e simples remoção. Era, para o burgomeste e o seu comprometido círculo uma situação complicada! Identificar um Químico francês? Por-lhe o nome, mesmo numa placa? Realçar-lhe o mérito que ultrapassara fronteiras? Osso difícil de roer! Por isso reuniram-se longamente baixo o retrato inspirador do Kaiser com o seu bigode revirado de gato, a estudarem alternativas. Até que, por fim, como num escrito de Liebig, numa síntese de Hoffmann ou numa ideia de Haber (antes de propor os gases asfixiantes, claro), a chispa brotou. Afastando a posição truculenta dos próceres que pensam matar a realidade de um valor universalmente reconhecido, gostem ou não dele, pela recusa da devida homenagem, aceitariam a placa identificadora. Até aqui, tudo bem! Mas...
... o sacolejo do poder, conjugado com a mais acirrada clientela que a esse poder se apegava exigiriam um preço por esse devido acto. Preço que residiria numa questão de escala: em afirmar algo que, não sendo mentira, fosse apenas "um mal menor" - sem entenderem que "o mal" que tanto os preocupava estava na obra, e que a obra se não apaga, e sem se aperceberem que, no limite, essa vocação igualitária conduzia a uma lógica pergunta: qual, pois, a razão de estar ali aquele senhor sozinho, sem a companhia dos implícitos "outros como ele." Por isso, admitindo que essa lógica ficasse encandeada na sua (deles) fulgurante centelha, deliberaram aqueles fazer constar da placa os seguintes e simples dizeres:
"Antoine Laurent Lavoisier (1743 - 1796)
Recebedor de impostos quando da Revolução Francesa".
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A TEMPO: Perguntaram-me se isto era facto verdadeiro ou se era parábola.
Em verdade, em verdade vos digo que de parábola se trata.
Mas que muitas destas coisas ainda sucedem por aí!
Isto das cónicas... ou das crónicas!!!