A "TERTÚLIA DO CINEMA, que nesta época calhava em JUNHO - Uma Postagem aberta [1]
Nota inicial: As chamadas a rodapé[1] remetem para o fim do texto.
Quando se considerou a utilidade de inserir nas “Tertulias”
um apontamento temático de Cinema, de
caracter bi-etápico – ou seja um primeiro dia destinado a visualização e reservado o dia
seguinte para apresentação por um convidado que de cinema soubesse, recebi com prazer o
encargo de participar na seleção do que iria ser apresentado e, por brevíssimas
palavras para, não “abafar” o resto, explicar antes da projeção o porquê da
seleção do filme que logo a seguir seria tratado. Amador preguiçoso de cinema que
sempre fui, e pouco mais que isso, entendi que esses introitos estariam à altura do pouco que sabia e
permitir-me-iam participar ativamente na razão que a todos os presentes (e a mim) qualquer
das Tertúlias representa e que é a de mensalmente trazemos e discutirmos temas do
nosso tempo e, nessa discussão e convívio, todos aprendermos mais. Além disso o
tema “Cinema” trazia-me à memória uma vivência anterior, dos meus 5º, 6º e 7º anos no Liceu de Alexandre Herculano,
no Porto - e a esta imediatamente passo.
Alargando-me um tanto nessa evocação, para além das tais "brevíssimas palavras" que o protocolo aconselhava, conto aqui o
que então ali se passou e que inclui o "achamento" do neo-realismo italiano, de
Vittorio de Sica e do “Milagre de Milão"[2] por um grupo de jovens liceais, como tema que iríamos este Junho debater, não fosse a inesperada pandemia que a todos
nos tornou testemunhas de um facto da História e que fez, desgraçadamente para muitos, à história passarem. Agradeço a compreensão e paciência de quem me leia, já que, para a prometida narrativa, teremos de deixar o atual, com todos os receios e
dúvidas que nos assistam, e viajar no tempo até ao primeiro período do último
ano do segundo ciclo liceal (o 5º) no ano letivo 1951-52. e no Liceu de
Alexandre Herculano, no Porto. Existiam 3 turmas, A, B e C e é na turma A que
vai então fervilhar uma verdadeira febre literária, de leitura e escrita, que
sugeria a criação de um suporte[3].
Metemo-nos nisso, manuscrevendo duas folhas de papel almaço, como exemplar
único e em princípio mensal e assim
fizemos nascer o “Patascrito” em que
cada um colocava algo de si e do seu gosto, poesia melosa, pequenos contos e
comentários jocosos, tratados de fintas e “driblings” futebolísticos, bonecada
ilustrativa a cargo de quem tivesse jeito para a fazer, neutralmente político
mas clandestinamente passado de uns a
outros por debaixo das tampas das carteiras e em que cada "assinante", tendo pago
uma c’roa, podia reter e ler o exemplar único num tempo limitado e mesmo acrescentar o
que quisesse em caligrafia legível, como se pedia. Por razões sérias de saúde
já não voltei ao Liceu após as férias de Natal desse fim de ciclo, pelo que
só participei em dois números dessa folha volante e nem sei
quantos houve e qual, a final, o seu
destino.
Com manifesto sacrifício familiar, consegui não perder o 5º
ano – embora deixando temporariamente o Liceu. Regressei, nédio e curado, no
Outubro seguinte e fui reintegrado na mesma turma, agora no 6º ano, nela reencontrando os que “para as Ciências” por
ali ficaram com mais algumas novas “aquisições” – já que , mercê da especialização
de programas através das famosas
alíneas, Letras e Ciências separavam-se após o 5ºano, migrando parte dos colegas
para o outro liceu masculino da cidade, o “D.Manuel II”[4]. Assim o efémero “Patascrito” acabaria por ser o ingénuo precursor de dois jornais escolares
já sob forma impressa, já constantes de previsão legal, já com professores orientadores designados: “O Prelúdio”, no
nosso Liceu [5], e “O
Mensageiro”no “tal outro[6]”.
Com alguns berbicachos, por vezes sérios – e que no nosso caso começaram logo no nº 2, se bem me recordo, com um
comentário a uma famigerada lei do Cinema que então apareceu e gerou controvérsia– tudo foi
andando. Reunindo os escreventes do “Patascrito” e acrescentando outros, o
grupo renovado que girava em torno do ”O Prelúdio” procurou dulcificar o esforço bisemanal das
tardes de 4ªs e sábados, com marchas no enlameado recreio grande, sugerindo
várias propostas de substituição, que se enquadravam nos chamados “Centros Especializados
da MP” então também criados e cujo funcionamento inicial era um bocado “a
feitio”. Um primeiro “Centro Especializado de Tiro” foi logo sugerido mas acabaria depressa, pelo
rápido esgotamento dos chumbos que podiam
municiar as duas "Dianas" velhas, de pressão de ar, que por ali andavam[7], pelo que audaciosamente se sugeriu um inédito “Centro Especializado de Cinema” cuja únicca finalidade… era, nessas duas tardes fastidiosas, ir ver
cinema “extra muros” com os inscritos a pagarem do seu bolso o próprio ingresso e trazendo como suporte documental a encafuar numa pasta velha os
programas impressos que os “arrumadores” ainda entregavam e que o pequeno grupo – ultrapassando
a gratuidade da distribuição – obsequiava com uma ou duas c’roas, que tal era o
complemento da escassa propina de um
“arrumador”de então.. Embora todos estivéssemos cientes de quão efémero o pomposo “Centro Especializado do Cinema”
poderia ser, e por isso não propagandeando o seu alargamento "para não dar nas vistas", alguns dos membros percebiam mesmo da poda das vides cinematográficas, liam revistas e as cv olunas de crítica das estreias e auxiliavam a restante malta, que não a entender a 7ª arte e o seu
desenvolvimento, bem para além das “cóboiadas” e “filmes de guerra” que íamos
devorando no Águia D’Ouro e , mais raramente, noutros “animas” porque eram mais
caros[8]..O
próprio Liceu tinha uma sala de cinema surpreendentemente
bem dotada, mas que, apenas servia para algumas regulares celebrações e avulsas
palestras e para quando o Reitor chamava a “malta” a capítulo, mormente para
nos passar um “caldo frio” por qualquer desmando funcional[9]. No tempo restante o espaço, que ainda hoje existe, estava literalmente "às moscas".
Esta combinação de circunstâncias iria conduzir a um inédito acontecimento
No 6º ano recebemos um novo professor de
Moral (Padre Alexandrino Brochado,
reitor da Capela das Almas e recentemente falecido) que era - ao contrário do que a malta avaliava do seu ar de "Bolacha Maria" - um pra-frentex entusiasta do
cinema e que, olhando a plateia vazia que nós tínhamos, contando com o apoio de alguns distribuidores que
conhecia, se lembrou de criar no Liceu um Clube de Cinema – a que o Centro Especializado
de Cinema imediatamente aderiu porque (a) ficava “em casa” e recorria a meios do
próprio Liceu, incluindo como operador - projetista o Senhor Fonseca, dos Laboratórios de Física e Química (b) era economicamente mais barato para os seus membros que os encargos semanais de ida ao Águia D'Ouro" (c) ocupava as ditas tardes e, sem risco, trazia ao Clube mais “malta” (d) dava acesso a filmes mais selecionados que as “cóboiadas” não
escolhidas que íamos “comendo” (e) tinha a aprovação de uma grande parte da
hierarquia docente e supria uma situação “periclitante" que semana sim, semana
não, se desenrolava “fora de portas “ e que (como no caso do tiro) poderia ser questionada e fechada de um dia para o outro, re-atirando-nos para as marchas enlameadas de que nos tínhamos afastado. Por outro lado, aprendida já a ameaçadora “aula
intensiva de iniciação política” (algo desproporcionada, digamos) que nos tinha
sido ministrada no 6º ano, quando do
incidente com o artigo do “ O Prelúdio”[10],
tínhamos adquirido prudência com a certeza de que algo vinha do “exterior”, que o assunto cinema nos poderia sair caro e que
o clube e o nosso jornal estavam sob os
olhos de uma invisível observação e reparo. Nada melhor para agradecer o
guarda-chuva que o Clube do Cinema nos vinha
proporcionar.
Mas é nesse Clube de Cinema, no ano letivo 1953-1954, em que
enfileiravam as gentes do Prelúdio” e alguns “sabedores da 7ª arte” e
conhecedores do meio, que surpreendentemente vão ser projetadas, com todas as bençãos, duas obras primas do neorealismo italiano,
então totamente atuais, o “Ladrões de
Bicicletas” (1948), e “O Milagre de
Milão”(1951), ambas dirigidas por
Vittorio de Sica. Tal foi a impressão
que esses dois filmes causaram nos “finalistas”e nos mais novos que a eles
asistiram que algumas reações familiares transpiraram logo e de tal forma transmitiram à Reitoria “ser pelo menos
estranha essa inclinação dos rapazes por aquele cinema italiano” que vieram motivar a introdução nos programas
subsequentes de projeções mais conformes com o gosto do regime vigente, tais como “Mulherzinhas” ou “Mulherezinhas”
como constava dos cartazes da época, “A
Carga da Brigada Ligeira” e assim por
diante- com excepção, claro, do “Aniki-Bóbó” que, por mérito próprio, até
passou duas vezes, se me não engano. Mas, porque calhou nada termos a ver com a inesperada chegada
desse “estilo novo”, nenhum ruído de
frente ou de fundo nos viria incomodar. Vimos, gostamos, compreendemos,
considerámo-nos (ou não ) fãs do
neo-realismo italiano e tudo não passou disso.
Do “Milagre de Milão” ficou-me a memória e a saudade. Tanto
que logo de início o propus e esteve para ser, nas nossas Tertúlias da Escola Augusto
Cabrita, o primeiro filme a apresentar.
Por circuntâncias diversas, todos os anos veio a ser proposto e todos os
anos foi substituído por outros filmes, mais de acordo com os conferencistas
convidados. Mas, como sou teimoso e como sentia aproximar-se o dia em que eu iria
resignar ao meu próprio papel e aconselhar que a escolha do filme fosse
entregue a outra pessoa, desejavelmente mais atualizada – posição que eu previa expor-vos precisamente em Junho deste ano – mantive “O Milagre de Milão”
e preparei-me para o apresentar nessa etapa projetiva com as
mesmíssimas palavras que agora aqui trago. Referi já o pesadelo que não se poderia prever e que, mais uma
vez, viria alterar o programa.
Apresentado em 1951 e logo prémio do Grande Juri no festival
de Cannes desse mesmo ano, o filme traz
aparentemente uma história muito simples, que pretende lançar uma mensagem
otimista sobre uma Itália frustrada e arruinada por uma participação desastrosa numa guerra que
então terminara há apenas 6 anos. Baseada numa novela de Cesare Zavattini (“Totó il buono”), reescrita para o filme por este e pelo diretor
De Sica, insere-se no pensamento e obra neorealista italiana que reflete fortemente sobre o social e as
bruscas mudanças que resultaram na guerra e da guerra. Foi aqui já visto, nas épocas anteriores das Tertúlias,
o “Roma Cidade Aberta” (de Roberto
Rossellini, 1945) que no cinema italiano inaugura essa corrente, e o português “Jaime” (de António Pedro de Vasconcelos, 1999
) que reune e representa identicas preocupações, como filmes que não escondem
nem se escondem da realidade.
No “Milagre de Milão” quer o autor da obra
inspiradora quer o autor do filme escolhem uma forma ousada e que poderia mesmo sugerir um contrasenso,
que é trazer o realismo através de uma
fábula, de uma história nada infantil mas de contextura mágica. Merece de facto
o reconhecimento como obra-prima. Ora
vejamos: uma anciã solitária, Lollota
(representada por Emma Gramatica) vai à sua horta e é alertada pelo choro de um recém nascido
que, todo nu, está estendido sob um repolho. Recolhe o bébé e leva-o consigo para casa já que, mais que
uma criança abandonada, o encontro é a realização fílmica do mito infantil, que eu
também ouvi sem em tal acreditar, de que os bébés nasceriam de uma couve. Começa aí a fábula. Totó[11]
se chamará o moço que a velha vai tratar
durante uns 9 a 10 anos como se fosse um filho, até que uma doença
grave leva a sua casa dois médicos … e que, na aparente discordância sobre um
diagnóstico, antecipam o prognóstico mais grave para qualquer doença. Assim a cena
seguinte mostra Totó, já sozinho, acompanhar
a pé a carreta funerária, que uma pileca
puxa e um condutor apressado dirige e que atravessa uma cidade vazia e desolada,
desencadeando atitudes e situações burlescas entre o respeito e o
“aproveitamento”. Recolhido num orfanato, Totó só dele sairá uns 8 a 10 anos
depois, acreditando cegamente na bondade
do mundo e das pessoas com que cruza ou a quem honestamente pretende ajudar de
bom grado, até que, aceite ao oferecer ajuda mas recusado ao procurar trabalho,
novas situações burlescas o levam a ingressar num espaço de desalojados sem
abrigo, como muitos que na época cresciam em torno das grandes cidades e que hoje,
de forma que se pensaria poder ser algo diferente, continuam a existir.
Peripécias diversas levam Tótó a participar ativamente na organização do campo e a confrontar factos sucessivos ligados à
propriedade do terreno e à promoção imobiliária deste, agravada primeiro com a descoberta de água e, de seguida, com
uma inesperada descoberta de petróleo.
Aí a parca economia de sobrevivência é manifestamente esmagada pelo peso da
finança que o petróleo atrai e, dentro do próprio grupo, crescem divisões e
divergências em que Paolo Stoppa (um grande nome do cinema italiano) interpreta
a figura antipática de um “torvo” e “vendido” Reppi. Misturando artistas profissionais e
figuras do povo, como foi característica dos filmes neo-realistas, a ação
prossegue até ao insuportável movimento para destruira aquele “pequeno mundo” e
é então que… mas fico-me por aqui deixando-vos
a “âncora” ou “chamada” ou mesmo “ligação” (que em lusoinformês se diz “link”) para que cada
um veja o filmr, de fio a pavio. E vale a pena ver.
Peço-vos desculpa do tempo que vos tomei ao falar muito de
mim, mas tinha mesmo de contar como conheci este filme, velho amigo que de
tempos a tempos fui revisitando, e de relembrar nele os que comigo o puderam ver e discutir há uns quase 70 anos, num
cinema de Liceu portuense hoje ameaçado de ruína.
E assim me despeço na Tertúlia de Junho, a última desta época
atormentada. Crente de que as Tertúlias
devem prosseguir e irão prosseguir, a elas voltarei sempre que possa e ainda me aturem. Ciente também da dificuldade dos
dias que passamos e dos dias que virão, considero que cada dia é um novo dia para viver com esperança
– agarrando a poesia e não a deixando
esmorecer. Que "O Milagre de Milão” e o intuito com que foi produzido, em 1951,
sirvam de exemplo.
Porém, para a suspensa Tertúlia de Cinema, cumprida que foi a
missão que de vós recebi, encontrem por favor quem receba o testemunho e a prossiga.
E não parem.
Eu, por mim, voltarei a essas gravações sempre que puder. Tenho os DVD's e persigo no celuloide, que só eufemísticamente o é, a figurinha gentilérrima da dona Claudia Cardinale, uma jovem da minha geração que me chamou a atenção em "La Ragazza di Bube" e que, a meu ver, fez o pleno no papel de Concetta no também incomparável "Gattopardo".
Porto, dia de S.João , 24 de Junho de 2020
[1] Se um
MCS pode publicar uma “carta aberta” por
que razão não poderá haver, num blogue, lugar para uma “postagem aberta"?
[2] Era assim o
título com que o filme foi apresentado em Portugal.
[3] Uma obra de
Maxence van der Meerch, “Corpos e Almas” iria circular pelo mesmo canal subreptício e
influenciar muitos da turma a seguirem Medicina. Não é opinião de todos os “contagiados”, mas,
a mim, ninguém me tira a ideia. Também se refere que essa obra só apareceu no
3º ciclo, i.e pelo menos um ano mais tarde - mas mesmo que assim possa ter
sido, o hábito das “leituras escondidas” já então estaria instalado na turma e não iria desaparecer.
[4] Rebatismo
que era de um “Liceu Rodrigues de Freitas”, cujo nome não era tão querido ao
regime de então.
[5] Com o Dr. Cruz Malpique, como Professor orientador. O Rui Abrunhosa, também um dos Fundadores conta, no seu blogue LAH-1954, edificantes histórias sobre esse período
[6] Com o Dr
Oscar Lopes como Professor orientador e os colegas . José Augusto Seabra, Vítor Alegria e Belmiro Guimarães, que nos haviam deixado por força das tais alíneas..
[7]
Disparava-se no recreio pequeno, vulgo “as Salésias”, sobre tudo o que mexia,
mas tal euforia merecia bem o comentário de uma novela indiana que na altura
circulava: “Atira divinamente, Sahib, mas Deus tem dó dos pássaros!”
[8] Começava a esboçar-se timidamente um o movimento
cultural cineclubista que acentuadamente marcaria os anos a seguir e que muito influenciou a sociedade portuguesa.
[9]
A esta distância há que reconhecer quanto o nosso Reitor procurou não obstaculizar
esses “disparos” de gente nova e
minimizar as suas consequências, reduzindo-as à dimensão devida, mesmo que mostrando uma frontaria rígida e severa., apesar dos
“falcões”, alguns de distintivo na lapela, que torciam o nariz àquelas “modernices”e que eu hoje não excluo pudessem pretender construir um “contra poder”, embora minoritário, na Sala
dos Professores..
[10]
Para além das aulas da OPAN, em que se aprendia muito do que se quereria que
fosse aprendido.e outro tanto do que
certamente se não quereria. Era o tempo da “guerra-fria”, do André Cayate no
cinema francês, etc. etc. O próprio movimento cine-clubista aproximava-se, como acima já se referiu.
[11] Não se confunda com um outro Tótó,
personagem cómico do cinema italiano, apresentado em vários filmes e sobre qual também haveria que falar – pois em
muitos deles o que parece ser ”exatamente
não é”!
S